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1.2 A BAHIA DE OUTRORA: ASPECTOS SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

1.2.2 A falência do ensino na Bahia em finais do século X

Luís dos Santos Vilhena, também professor de grego, é quem oferece um retrato, com cores fortes, da Bahia nos finais do século XVIII. Como se sabe de sua biografia, Vilhena ensinou a língua grega em Salvador entre o período de 1787 a 1799. Ao longo da sua estadia na cidade, como professor, escreveu a amigos numerosas cartas em que descreveu, com riqueza de detalhes, a vida, não só na Bahia, mas em vários outros pontos do Brasil. Tais cartas, editadas em 1969 com o título de A Bahia no século XVIII, se constituem como fonte de pesquisa obrigatória para quem se debruça sobre a Bahia pretérita. Divididas em três volumes, é do primeiro que consta a Carta oitava, dirigida ao amigo Filipono,

...em que se dá uma breve noção dos estudos na cidade da Bahia, tanto antes, e no tempo da extinção dos jesuítas, como no tempo presente; mostra-se a causa da decadência, o número das Aulas que há na cidade e Capitania, com o ordenado dos respectivos professôres, fazendo ver o como é quase impossível a subsistência, principalmente dos que nada mais têm que os seus ordenados, e o mais que no breve contexto dela se verá. (p. 272)

De início, ressalta-se logo um dos motivos pelo qual a carta foi escrita: informar a decadência das aulas na cidade e na Capitania da Bahia. Vejam-se, sob a ótica do professor de grego, as causas da falência do ensino.

Na Bahia, à época de Vilhena, cabia à Junta da Real Fazenda acatar as ordens que diziam respeito aos professores da Capitania. A mais significativa delas era o recebimento, das

Câmaras, do Subsídio Literário, para que, com ele, se pagasse a todos os professores e Mestres ‘a quartéis adiantados’, uma vez que “aquela [era] a sua única subsistência, sem que jamais possam passar a ter outra por não lhes restar tempo algum para poderem agenciar alguma outra cousa de que vivam, e se tratem com a decência necessária” (p. 276).

A última ordem recebida pela Junta da Real Fazenda, segundo Vilhena, datou de 20 de junho de 1793 e instituía que se mandasse, primeiramente e em nome da Sua Magestade, pagar, de imediato, aos professores e, ao mesmo tempo, indagar “o modo por que os Mestres, e Professores cumpriam com os seus deveres para que não sucedesse andarem alguns distraídos, as suas Aulas ao desamparo, e Sua Magestade pagando a quem a não servia” (p. 276-77).

Se se lêem as entrelinhas dessa ordem recebida pela Junta da Real Fazenda, dois problemas em relação ao ensino na Bahia em fins do século XVIII parecem claros. A preocupação em se mandar, de pronto, pagar aos professores os seus ordenados revela que os seus vencimentos, talvez, não estivessem em dias. Além disso, indagar aos professores o modo como procediam demonstra haver, por parte da Junta da Real Fazenda, alguma desconfiança de que alguns mestres não estivessem cumprindo à risca os seus deveres. De fato, confirma isso Vilhena quando diz que, diante desse procedimento a ser levado a cabo, alguns ‘beneméritos’ exultaram, haja vista ter chegado a hora de se diferenciarem os bons dos maus professores.

Se Sua Magestade parece ter tido boas intenções, na prática as suas ordens não se cumpriram como esperado. Segundo o Professor de grego, quanto à primeira decisão, o vencimento dos professores, resultou dela que, de fato, apenas um, dos diversos ordenados em atraso, foi pago, “deixando-os [os professores e Mestres] passar pelas amarguras da indigência...” (p. 277). Aliás, em quadro onde constam os seguintes títulos: distritos, nomes dos professores, cadeiras que exercem, povoações onde residem, quanto vencem por ano, o que se lhes deve em dinheiro e quantos meses, Vilhena expõe com clareza a situação de atraso em que se encontravam

os ordenados dos professores em diversas comarcas da Bahia. Estão arrolados ali os nomes de 44 professores, inclusive ele próprio, que ocupavam as cadeiras de filosofia, retórica, grego, gramática latina e ler e escrever e os seus ordenados vencidos, que variavam entre 3 a 36 meses. Para a cidade de Salvador, 12 professores, quantos aos meses em débito, estavam assim distribuídos: 1, com 3 meses; 5, com 6 meses; 2, com 9 meses e 4, com 12 meses.

A principal fonte para o pagamento dos professores, como se sabe, provinha do que se designou de Subsídio Literário. Na Capitania da Bahia, por lei de 3 de setembro de 1772, segundo Querino (1946, p. 46), determinou-se um “imposto de dez réis por uma canada de aguardente da terra, e trinta e dois réis por arrôba de carne que se retalhasse nos açougues públicos”, para supri-lo. Vilhena, indignado, informa que, se, de fato, tais quantias fossem angariadas, dariam para cobrir as despesas necessárias para o pagamento dos professores, uma vez que só os alambiques vinham se multiplicando ao longo da Capitania. Contudo:

...a maior parte dos donos manifestam menos canadas do que pipas destilam nos seus alambiques, e pelo que pertence às carnes, não se manifesta a quarta parte dos bois que se matam vindo por isso a cobrar-se muito diminuta a coleta, e esta é a razão por que o seu cofre se acha em alcance e os filhos da Fôlha padecem, além de outras razões mais particulares que te não interessas saber, nem eu manifestá-las. (p. 287)

A sonegação, na terra em que a “lei que de ordinário se observa é a vontade do que mais pode” (p. 280), comprometia sobremaneira o Subsídio Literário e, por conseguinte, fazia padecer os professores. Padeciam ainda os filhos da Fôlha com o descompasso que existia entre o custo de vida e o valor dos ordenados:

...tudo está hoje pelo quádrupulo, e com boas esperanças de passar muito avante, segundo o govêrno político, e econômico que se pratica, sendo absolutamente impossível o poder passar com o seu simples ordenado um professor que gasta o dia inteiro na Cadeira sem que tenha nem possa ter um só real de emolumentos, nem proprinas e muito principalmente satisfazendo-se-lhe os quartéis do seu ordenado tão fora do tempo em que Sua Alteza Real lhos manda pagar. (p. 284)

Aliás, cumpre notar um outro aspecto registrado por Vilhena quanto ao despreparo dos professores. Segundo ele, na enxurrada dos que na Ámerica desembarcaram com o nome de mestre mereciam, em verdade, o título de discípulos. Por conta disso, conveniente seria que retornassem aos seus lugares de origem para servir a seus amos. Na Capitania da Bahia, sob o olhar do Professor de grego, não foi diferente. Reconhece que havia bons literatos, contudo eram muito poucos, prevaleciam os maus, que recebiam, como os bons, alguma insenção e privilégio dados por Sua Magestade, constituíam, por isso, a corporação de enteados.

No que toca aos principais interessados no ensino, a sociedade da Bahia de então, os olhos que se voltavam para os professores não eram dos melhores. É ainda Vilhena quem oferece um retrato em que se revelam a tensão entre sociedade e professores e o descaso com que eram tratados os principais agentes da escolarização. Segundo ele, “indizível é a aversão que nesta cidade há à corporação dos Professôres, gente de nenhuma entidade na Bahia, membros da sociedade para quem se olha com a maior indiferença, e disciplicência suma.” (p. 278).

Duas causas, consoante o Professor de grego, são as principais responsáveis por isso. A primeira delas diz respeito ao comportamento dos estudantes, em sua maioria rebeldes e malcriados, sem nenhum respeito à figura do professor, a ponto de adentrarem as aulas pelas janelas. Não prezavam esses estudantes também pela pontualidade. Vilhena registra os constantes atrasos das aulas, atribuídos a pais e tutores que não levavam os pupilos às escolas pessoalmente, por isso os alunos vadiavam e faltavam quando queriam. A segunda versa sobre o abusivo hábito de se recrutarem estudantes. Os soldados invadiam as escolas, arrancavam os alunos e, ainda por cima, diziam impropérios aos professores. Os alunos, buscando fugir de uma carreira militar, esvaziavam as salas de aulas. Veja-se o que diz Vilhena (1969, p. 279):

...como é pois de acreditar que sendo tal a despesa que a Real Fazenda tem com as cadeiras, queira o senhor delas e a da Fazenda que as duas Cadeiras Régias de Filosofia e Língua Grega sejam ùnicamente freqüentadas por cinco estudantes que saem de uma e vão entrar

na outra; que a de Retórica traga ùnicamente quatro tendo desertado dois com receio de serem nela presos; que pela mesma razão uma de Gramática Latina em que andavam 35 estudantes ficasse dezoito, que ficasse com dez uma em que havia trinta, que a terceira ficasse com seis, e a quarta com um único de forma que são quarenta, e três, todos os estudantes que freqüentam estas Aulas e isto muito interpoladamente, porque logo que há notícia de fazer recrutas só ficam nelas os meninos, que não passam de dez, ou onze anos de idade.

Diante do panorama descrito, a experiência de Vilhena (1969, p. 281) lhe mostrou, todos os dias, que, na cidade de Salvador, “o ser professor, e não ser nada, é tudo o mesmo”.

Pensa-se ter demonstrado, através do depoimento contudente do Professor de grego, que, a exemplo do que ocorreu para a cidade do Rio de Janeiro, também na Bahia, estava o ensino problemático em finais de setecentos. Atrasos nos vencimentos, defasagem dos ordenados em relação ao custo de vida na cidade, professores despreparados, descaso para com as aulas ministradas, baixa freqüência de alunos às aulas fizeram, dentre outras razões, com que o ensino baiano estivesse também ele em decadência.