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Contribuições de corpora baianos para uma história do português brasileiro

CONDIÇÃO SOCIAL

2.1 CORPORA EM FUNÇÃO DE UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

2.1.3 Contribuições de corpora baianos para uma história do português brasileiro

Os dois corpora nos quais se centrará a análise são: Cartas de homens ‘ilustres’ do século XIX, editadas por Zenaide Carneiro e Norma Almeida, e Cartas particulares do Recôncavo da Bahia, século XIX, editadas por Tânia Lobo.

O corpus editado por Zenaide Carneiro e Norma Almeida compõe-se de 208 cartas. 131 foram escritas no Brasil, a maior parte no Rio de Janeiro, e 48 no exterior, na sua maioria também escritas por brasileiros. São 125 os remetentes, dentre os quais 1 é francês, 1 é uruguaio, 4 são portugueses e os restantes são brasileiros que moravam em outras províncias do país ou estavam radicados no exterior. Segundo as autoras, o corpus, além de inédito, é também representativo de uma parcela da população do Brasil do século XIX. Ainda consoante as pesquisadoras:

o corpus é relativamente homogêneo. São cartas escritas, em sua maioria, por gente abastada, letrada, influente e ligada à política brasileira. Exerceram diversos cargos públicos. Doze, por exemplo, foram presidente de províncias, tanto do Primeiro quanto do Segundo Reinado. Muitos são portadores de títulos de nobreza vitalícios e não hereditários (condes, marqueses, viscondes e barões), concedidos pelo imperador D. Pedro II, como compensação financeira ou de outra natureza. Outros representam a classe média (juízes, advogados, médicos. (Carneiro e Almeida, 2002, p. 66)

Por conta desses fatores sociais, o corpus foi intitulado Cartas de homens ilustres. Ora, pode-se entrever nesses dados fornecidos pelas autoras sobre o perfil dos remetentes que se trata de ótimo corpus para o estudo do português culto do século XIX. Portanto, espelharia, segundo a proposta de Lobo (2001a, p. 109), uma das variedades cultas do português brasileiro, uma vez que, acrescentam as autoras, a maioria dos remetentes é composta de brasileiros e, além disso, quase todos possuíam curso de nível superior. As cartas escritas por portugueses, em menor escala, podem também constituir-se em uma pequena amostra do que seria uma modalidade do português europeu culto transplantado para o Brasil, haja vista escreverem esses remetentes daqui.

Outro dado relevante é que, dos 125 remetentes, três são mulheres e brasileiras. Elas, no total, escreveram oito cartas. Embora poucos, esses textos são extremamente significativos quando se sabe que a prática da escrita era bastante restrita entre as mulheres. Dessa maneira, o conjunto dessas cartas poderia dar uma pequena contribuição para o estudo do português escrito por mulheres que se situam em um estrato social elevado, mulheres da elite, por assim dizer.

Vêem-se, portanto, nesse corpus editado por Zenaide Carneiro e Norma Almeida contribuições para: a) o conhecimento de uma das variedades cultas do português brasileiro; b) o conhecimento de uma das variedades do português europeu culto transplantado para o Brasil e c) o conhecimento do português escrito por mulheres da elite.

O segundo corpus citado foi constituído por Lobo (2001a) e constitui o terceiro volume da sua tese de doutorado. Edita um conjunto de 158 cartas preservadas no Arquivo do Convento da Santa Clara do Desterro. Segundo a autora:

Trata-se de um convento de elite, criado, porém, não apenas por motivos religiosos, mas também por demandas de ordem econômica e social: na sociedade patriarcal baiana de então, a entrada como religiosa no Convento de Santa Clara dependia da doação do dote de freira, opção, para muitos pais, preferível, por ser o seu valor bastante menor que o do dote de noiva (Lobo, 2001a, p. 112).

Das 158 cartas editadas por Lobo, que cobrem um período que se estende de 1818 a 1886, 154 foram escritas na Bahia, predominantemente na região do Recôncavo Baiano. Dos 54 remetentes, 5 – autores de 56 cartas – são portugueses e 38 são brasileiros. Houve poucos casos em que não se conseguiu identificar os autores. O corpus de Lobo não apresenta a mesma uniformidade daquele constituído por Carneiro e Almeida. Destacam-se dois grupos de remetentes: de um lado, imigrantes portugueses e, de outro, brasileiros pertencentes à elite ou, no dizer da autora, ao grupo social que lhe é imediatamente próximo na hierarquia social. O corpus de Lobo é significativo – a autora já faz essa observação – no sentido de contribuir para o conhecimento de variedades do português para o Brasil transplantadas e também, a exemplo do de Carneiro e Almeida, para o conhecimento do português brasileiro culto do século XIX. Nota a autora que, embora em proporções menores, no sub-conjunto de documentos escritos por brasileiros, há também exemplares que se podem considerar representativos de variedades populares, o que ocorre, consoante ela, ou pelo fato de haver remetentes – poucos – pertencentes a estratos sociais inferiores ou ainda pelo fato de existirem indivíduos pouco escolarizados e/ou com baixo grau de letramento entre os brasileiros da elite. Também com poucos exemplares, Lobo ainda traz à tona textos escritos por mulheres, o que, indiscutivelmente, faz com que sejam preciosos, dados os motivos já referidos.

Observando-se os dois corpora acima vistos, percebe-se que eles, no que diz respeito ao século XIX, ganham importância no que toca, sobretudo, ao conhecimento do português brasileiro culto, ao conhecimento de variedades do português europeu para cá trazidas e, em menor proporção, também para algum conhecimento das variedades populares. Dentro daquela proposta de Lobo (2001a, 109), estariam ainda faltando, pelo menos no âmbito de documentos que se vêm editando na Bahia, corpora que pudessem refletir o uso do português por aloglotas e que pudessem também refletir um português mais próximo das variedades populares que no Brasil se iam formando.

Mattos e Silva (2001a e 2002a), conforme já se viu, sugere que seriam os africanos e os seus descendentes aqueles que mais de perto poderiam ser os utentes dessa variedade do português. A autora, contudo, por fatores socioculturais, vê a constituição de corpora escritos por esses indívíduos como tarefa desanimadora. Propõe, então, como já foi dito também, que o conhecimento do que teria sido o português vernáculo no passado terá de ser feito por aproximações através de um tipo de reconstrução que denominou arqueológico. Com o corpus que se apresentará neste trabalho, composto por 290 documentos escritos ao longo do século XIX por africanos e afro-descendentes, a situação, talvez, se inverterá quanto ao conhecimento do português popular no seu passado. Possibilitará ele uma aproximação não mais do tipo arqueológico, conforme sugere Mattos e Silva (2002a), mas calçada por corpus farto em textos raros, uma vez que, como a história testemunha, se trata de documentos escritos por componentes de grupos sociais subalternos. Mas que textos escritos por africanos e seus descendentes reflitam somente o que Mattos e Silva designou de português popular é afirmação que carecerá ser revista, mesmo que ligeiramente.

Claro está, a essa altura, que este trabalho nasce no âmbito do Projeto nacional Para a história do português brasileiro no seu 8º. ano de existência e, por isso, se valerá das inúmeras contribuições já surgidas, no que diz respeito à constituição de corpora em função da escrita de uma história do português brasileiro, com os seminários já realizados, em diversas cidades do

Brasil, cujos trabalhos vêm sendo publicados sistematicamente nos livros da série Para a história do português brasileiro. Para a apresentação do corpus que, a partir de agora, se fará, seguir- se-á a mesma estrutura, com adaptações, como não poderia deixar de ser, levada a cabo por Lobo (2001a), exposta no segundo volume da sua tese de doutorado, quando da apresentação das suas Cartas particulares do Recôncavo da Bahia do século XIX, porque, como já se disse, a autora, no que diz respeito à apresentação de seus textos, foi exemplar, na medida em que fornece um modelo norteador para outros, como é o caso deste, que sucessivamente vão sendo constituídos, por tentar dar conta de variáveis que hoje se têm como fundamentais quando se lida com textos do passado.

Hão de ser levadas em consideração, entretanto, as diferenças entre os documentos editados por Lobo e os que aqui serão apresentados. A autora, como deixa claro, trabalha com cartas escritas, em grande parte, pela elite baiana do século XIX, o que lhe permitiu determinar, “na ampla maioria dos casos, onde, quando, por quem e para quem os textos foram escritos” (Lobo, 2001, p. 110). A elite, por dominante, por ser privilegiada socialmente, deixou rastro possíveis de serem recuperados. No caso dos textos escritos pelos africanos e afro-descendentes, que compõem o corpus deste trabalho, as fontes consultadas para o controle das variáveis, sobretudo para os seus autores, não foram tão generosas assim, embora, como se verá, constituíssem eles, entre os seus, também uma ‘elite negra’ na Bahia oitocentista. Isso, de certo modo, já seria esperado, mas o fato de deixarem na escrita uma possibilidade para que a história de uma outra face do português venha a ser desenhada parece por demais animador num momento em que, com freqüência, não só lingüistas, mas também filólogos insistem nas parcas chances de que textos escritos por africanos e seus descendentes venham à tona. Isso não impediu, no entanto, que tentativas fossem feitas no sentido de se buscar, na medida do possível, desvelar um universo desconhecido, à margem, em que negros escreveram, e muito. Começa-se com o onde os textos foram escritos, porque, sobre a Sociedade Protetora dos

Desvalidos, há histórias e trajetórias, algumas com implicações diretas na formação do corpus, a serem narradas, por isso, para ela, uma seção à parte.

2.2 SOCIEDADE PROTETORA DOS DESVALIDOS (SPD): HISTÓRIAS E