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1.2 A BAHIA DE OUTRORA: ASPECTOS SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

1.2.1 Introduzindo a questão

Deve-se a Antônio Houaiss, no seu livro de 1992[1984], O português no Brasil, a entrada em cena do fator alfabetização como uma das questões fundamentais para a compreensão histórica do português brasileiro. Em tempos mais recentes, o tema, com freqüência, tem vez em trabalhos de lingüistas que se debruçam sobre a sócio-história do português em território brasileiro ao longo do período colonial e pós-colonial. Rosa Virgínia Mattos e Silva, em diversos textos seus, constantes das Referências bibliográficas, coloca a história da alfabetização no Brasil como crucial para se compreender a polarização presente do português, formulada por Dante Luchessi (1994), em normas cultas e vernáculas. Será ainda esse um fator articulado por Tânia Lobo (2001a, p. 40-41) como um dos marcos para a sua proposta de periodização para a história lingüística do Brasil.

Historiar o percurso da alfabetização no país não é o objetivo aqui. No entanto, para o que é objetivo central desta seção: hipotetizar sobre alguns possíveis caminhos pelos quais trilharam africanos e afro-descendentes para se alfabetizarem, sobretudo no século XIX, mas também com incursões pelo XVIII, há que se procurar um início. Para isso, algumas informações já disponíveis sobre o assunto hão de ser um bom caminho.

3 Segundo Marcuschi (2001, p. 21-22), “O letramento é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas, ou seja, letramentos ... Distribui-se em graus de domínios que vão de um patamar mínimo a um máximo. A alfabetização pode dar-se, como de fato se deu historicamente, à margem da instituição escolar, mas é sempre um aprendizado mediante ensino, e compreende o domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e escrever. A escolarização, por sua vez, é uma prática formal e institucional de ensino que visa a uma formação integral do indivíduo, sendo que a alfabetização é apenas uma das atribuições/atividades da escola.” Embora conscientes dessa distinção apresentada por Marcuschi (2001), tomar-se-ão, neste trabalho, os termos letramento e alfabetização como sinônimos, uma vez que só interessa, dentre os inúmeros significados cobertos por letramento, aquele que diz respeito à alfabetização, entendida aqui como uma habilidade na leitura e escrita em língua portuguesa, ‘mínima’ ou ‘máxima’. Quando ao termo escolarização, admite-se, como o autor, que esteja vinculado a uma prática formal e institucional de ensino, contudo interessa apenas uma de suas atribuições/atividades, a da alfabetização. Soares (2003) pormenoriza o que se entende por letramento, alfabetizaçao e escolarização na atualidade, contudo a transposição dos conceitos, tais como expõe a autora, para séculos anteriores é complicado. Mais um motivo para se tomarem como sinônimas as expressões letramento e alfabetização, e às vezes instrução, diferenciando-as apenas de

História da alfabetização?! Não é bem assim que pensa a historiadora da educação Ana Maria Araújo Freire (2001). Segundo ela, de acordo com o que os dados vêm informando a esse respeito, seria até mais prudente se falar em história do analfabetismo no Brasil. Veja-se, em poucas linhas, o porquê.

Sabe-se que, entre o período que se estende de 1549 a 1759, a educação no Império Luso, por conseguinte no Brasil, esteve a cargo quase que exclusivamente da Companhia de Jesus. O ensino oferecido pelos jesuítas aos que no Brasil habitavam, conforme Freire (2001, p. 32-43), sofre, já no século XVII, mudanças no que toca à população a ser por ele contemplada. Criadas as escolas jesuíticas para abrigarem, sem nenhuma distinção, os índios, os filhos de colonos brancos e mamelucos, já no século XVII, dirigem-se, de maneira quase que exclusiva, aos colonos brancos, filhos das elites agrárias. Sendo assim, de uma meta não excludente quando da sua criação, as escolas sob o comando da Companhia de Jesus vão, progressivamente, privilegiando os brancos da terra, ao que parece ricos.

Em 1759, quando da expulsão dos jesuítas do Brasil, tinham eles montado uma estrutura educacional que comportava, àquela época:

36 missões, escolas de ler e escrever, em quase todas as povoações e aldeias onde se espalharam 25 residências, além de dezoito estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários localizados na Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Paraíba, Santos, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis (Desterro), Paranaguá, Porto Seguro, Fortaleza, Alcântara, Vigia. (Piletti e Piletti, 2002, p. 135)

Está por ser feita uma história que tenha por escopo os efeitos da educação jesuítica na população do Brasil, no sentido de se saber quem, de fato, teriam sido os atingidos pelas escolas de ler e escrever espalhadas ao longo do espaço territorial brasileiro. Ao serem expulsos os jesuítas, em 1759, o Marquês de Pombal expede alvará, em junho do mesmo ano, para que as aulas régias substituíssem, em todos os pontos das capitanias, a estrutura

educacional montada pela Companhia de Jesus. É comum se ter como certo, em recentes estudos sobre o tema, que a política de educação posta a cabo pelo Marquês para a colônia teve pouco alcance entre a população do Brasil. Freire (2001, p. 46-47) informa que, no período que se seguiu a implantação dessa política, no Brasil deixaram de existir escolas. Mesmo quando as reformas já estavam sedimentadas, por volta de 1818, Barbosa (1999, p. 64) mostra que era bastante reduzido o número de indivíduos contemplados, para o geral do Brasil, pelas designadas aulas régias. Dessa maneira, era nos espaços privados que se ia fazendo a instrução na colônia, dada a ineficácia ou inexistência do ensino público no período pós-jesuítico.

Para além do fato de que o ensino público não atingiu de modo satisfatório a população do Brasil que ia se fazendo cada vez mais numerosa, mostra ainda Barbosa (1999) que houve outros aspectos, dentro da estrutura educacional, que contribuíram para a sua inoperância mesmo para os poucos que nela conseguiram se integrar. Disso trata um dos itens da sua tese de doutorado, intitulado A falência do ensino público no século XVIII (p. 64-76). É através de um documento depositado no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa que o autor apresenta a decadência do ensino no Rio de Janeiro sob a ótica de indivíduos que faziam parte ‘de dentro’ da estrutura educacional daquele lugar: os professores João Marques Pinto, de grego, e Manoel Ignácio da Silva Alvarenga, de retórica, que, em 28 de março de 1793, enviam à metrópole do reino uma carta em que “...relatam e analisam os motivos, para eles, da decadência do ensino público da colônia.” (Barbosa, 1999, p. 71). São sete, segundo os autores do documento, as razões pelas quais fracassava o ensino público ou semipúblico na cidade do Rio de Janeiro, dentre as quais a baixa remuneração dada aos professores, tensões entre o ensino eclesiástico e laico na cidade, a não obrigatoriedade da presença nas aulas de alguns segmentos sociais, como os militares, além de querelas pessoais.

Esse documento histórico trazido à tona por Barbosa (1999) espelha a situação, como já apontado, para o Rio de Janeiro, embora postule o autor, com base em outros textos, que a

falência do ensino se estendesse também a outras partes do Brasil de então. É com o propósito de confirmar que, na Bahia em finais de setecentos, também prevaleciam, mutatis mutandis, as dificuldades apontadas pelos já referidos professores de grego e de retórica na estrutura educacional as linhas que se seguem. Outro cenário, porém o mesmo tempo e a mesma situação de decadência do ensino.