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1.2 A BAHIA DE OUTRORA: ASPECTOS SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

1.2.3 Letramento na Bahia oitocentista

Nizza da Silva (1978, p. 131-141), em A primeira gazeta da Bahia: Idade D’ouro do Brasil, afirma que, ao adentrar o século XIX, houve na Bahia uma melhoria, tanto quantitativa quanto qualitativa, no ensino. Através de anúncios publicados na Gazeta Idade D’ouro no Brasil, que circulou na Bahia entre os anos de 1811 e 1823, mostra que aumentou substancialmente o número de aulas régias na cidade de Salvador e na Capitania da Bahia em geral. É também nesse século que, segundo a autora, começaram a proliferar as aulas particulares, eram, inclusive, gratuitas para aqueles que não podiam pagá-las.

Se parece não haver dúvidas quanto ao aumento do número de aulas que, na cidade de Salvador e na Capitana da Bahia em geral, passaram a ser oferecidas, há algum indício de que, qualitativamente, a afirmação de Nizza da Silva (1978) não pode ser generalizada.

Pertence ao Setor de Filologia Românica da Universidade Federal da Bahia um acervo documental intitulado Coleção Instrução Pública da Bahia. Escritos ao longo do século XIX, os documentos que o compõem são, em sua maioria, petições e declarações (de protecionismo, injustiças, salários, desvio de funções etc) que revelam o dia-a-dia da instrução pública na Bahia oitocentista. Ao sintetizar o conteúdo desses textos, veja-se o que verificou Almeida (1998, p. 90):

...um número elevado de documentos que tratam de jubilamentos de professores da Instrução Pública, o que caracterizaria também uma grande redução no quadro de professores. Paradoxalmente, encontram-se nestes documentos muitos pedidos para a convocação de professores substitutos. Sem recursos, contrata-se mão-de-obra temporária, sem vínculos empregatícios. Observaram-se também muitos pedidos de aumento salarial. Seriam esses pedidos sinais de insatisfação, indignação por parte dos lentes baianos.

Parece, então, que a melhoria qualitativa flagrada nos anúncios públicos da Gazeta por Nizza da Silva (1978) não encontra correspondência naquilo que expõem os documentos analisados por Almeida (1998). Esse desencontro se deve, certamente, à natureza das fontes estudadas por uma e outra. Vêem-se nos conteúdos dos documentos do século XIX réplicas de alguns dos problemas de que já se queixava Vilhena (1969) no fim do XVIII.

De fato, conforme já se disse, houve maior número de aulas oferecidas na Bahia ao longo do século XIX. Contava a Capitania, à época de Vilhena, com 18 aulas régias de ler e escrever, 19 de gramática latina, 1 de grego, 1 de retórica e 2 de filosofia; as quatros últimas, aliás, só existiam em Salvador. Portanto, somavam 41 as aulas de Humanidades. No ano de 1812, na Capitania, só as aulas de ler e escrever, ou seja, as de Primeiras Letras, aumentaram de 15 para 20 e, na cidade de Salvador, de 3 para 7.

De qualquer sorte, mesmo se demonstrando que o ensino não atingia com eficiência os que nele se integraram, o fato é que a alfabetização por meios formais no Brasil sempre esteve ao acesso de pequena parcela da população. O país, na sua história pregressa, sempre

foi pobre em escolas e, como diz Matta (1999, p. 85), em programas de ensino planejado. As pouquíssimas aulas e escolas existentes se dirigiam aos filhos dos senhores de terra ou da alta burocracia e objetivavam, com freqüência, apenas o ensino elementar da escrita e da leitura. Disso dá mostra Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992), ao se referir ao colégio dirigido pelo Padre José Xavier, do século XVIII para o XIX, e ao letramento no âmbito da sua família:

Esse colégio terminou com a morte do Padre, depois de prestar imensos serviços à população do recôncavo, difundindo ali a instrução naquele tempo ainda tão escassa. Limitava-se esta a um pequeno número de filhos de proprietários que podiam mantê-los na Capital, e, destes mesmos, alguns não se resolviam a entregar seus filhos a mãos estranhas, com receio de que não fossem bem tratados, e só os mais adiantados intelectualmente se abalançavam a um tal sacrifício. (v. 1, p. 38)

Aos dez anos foi que Pedro Caetano [avô de Anna Ribeiro Bittencourt] determinou dar aos sobrinhos um mestre de primeiras letras, a quem foi recomendado não tocasse no menino. Imagino quanto isso não custou àquele mestre, costumado, como era então usual, a fazer entrar o alfabeto à força de palmatoadas na cabeça das pobres crianças! Dotado de entendimento claro e memória fácil, o menino em pouco tempo aprendeu a ler, escrever e contar – as quatro espécies de conta –, o quanto era necessário a um moço rico que não precisava viver do que aprendera. Tal era a teoria em voga entre os proprietários rurais (v. 1, p. 24-25)

Completara eu [a escritora Anna Ribeiro Bittencourt] sete anos em 31 de janeiro, idade em que as crianças daquela época começavam a aprender alguma coisa. Os proprietários ou mesmo os lavradores que tinham certa abastança contratavam mestres de primeiras letras para os seus filhos. (v. 2, p. 27)

Havia meu tio contratado o Padre Lourenço Boaventura para ensinar português aos filhos pequenos e latim e francês aos maiores. O padre viera logo para celebrar as missas de Natal, abrindo em seguida as aulas. (v. 2, p. 38)

Os três últimos depoimentos da escritora é adendo a mais para o que já constatara Barbosa (1999, p. 59) e Mattoso (1992, p. 200): o importante papel da família na educação

brasileira. Ou seja, diante do reduzido número de escolas, muitos dos componentes da elite colonial e pós-colonial letravam-se no âmbito familiar.

Os números aproximativos que se têm a respeito da alfabetização no Brasil apontam para o fato de que, em fins do século XVIII, estava em torno de 0.5% a 1.0% o número de letrados no país (Houaiss, 1992[1984], p. 141). O professor de grego Luís dos Santos Vilhena (1968, p. 189) não deixou escapar, preconceituoso que foi, na sua Carta V, a situação na Bahia em fins de setecentos: “...são uns mulatos ou negros tão estúpidos, que eu não conheci ainda um que soubesse ler, ou escrever o seu nome, e se algum branco exercita a arte, nada difere daqueles quanto à instrução”. Fausto (1994, p. 237), com base no primeiro censo oficial feito para o Brasil, em 1872, relata o seguinte panorama:

Entre os escravos, o índice de analfabetos atingia 99.9% e entre a população livre, aproximadamente, 80%, subindo para mais de 86% quando consideramos as mulheres... Apurou-se ainda que somente 16.8% da população entre seis e quinze anos freqüentavam escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários. Entretanto, calcula-se que chegavam a 8.000 o número de pessoas com educação superior no país. Um abismo separava, pois, a elite letrada da grande massa de analfabetos e gente de educação rudimentar.

No que toca à Bahia, segundo Mattoso (1992, p. 200), as instituições religiosas monopolizavam quase que exclusivamente, até a Independência, a instrução, sobretudo no nível secundário. Só a partir do primeiro Império, surgiram, timidamente, cátedras – gramática, latim, grego e francês – desvinculadas do comando eclesiástico. No ano de 1834, no Segundo Império portanto, um ato adicional autorizou as assembléias legislativas das províncias a elaborarem leis referentes ao ensino primário e secundário, contudo, só em 22 de abril de 1862, se definiu a estrutura escolar. Na Bahia, foram criadas duas escolas normais: uma para moços e outra para moças.

Apesar dessa tentativa de laicizar o ensino, só conseguiam vagas nessas novas escolas os filhos da classe abastada que tinham nos seus horizontes o ingresso no curso superior de

Direito. Sendo assim, a entrada nas escolas públicas ou particulares que começaram a surgir na Bahia oitocentista continuava seletiva.

No trabalho anteriormente mencionado, intitulado Bahia século XIX: uma província do Império, de 1992, a exemplo de Fausto (1994), a historiadora Kátia Mattoso se baseia também no censo oficial de 1872 para apresentar em que nível estava a alfabetização na Salvador do período em questão. Contrariamente ao que Fausto (1994) informa para o geral do Brasil, a situação flagrada por Mattoso (1992) para a cidade na segunda metade do século XIX não parece demonstrar que houvesse um abismo tão profundo entre letrados e iletrados.

A cidade de Salvador, na primeira metade do século XIX, dividia-se em 10 paróquias ou freguesias. Seguem os seus nomes pela ordem em que foram criadas: Sé ou São Salvador, Nossa Senhora da Vitória, Nossa Senhora da Conceição da Praia, Santo Antônio além do Carmo, São Pedro Velho, Santana do Sacramento, Santíssimo Sacramento da Rua do Paço, Nossa Senhora de Brotas, Santíssimo Sacramento do Pilar e Nossa Senhora da Penha. Na segunda metade de oitocentos, mais uma é criada, a de Mares, passando Salvador, então, a ser composta de 11 paróquias. A designação de paróquia ou freguesia pauta-se, principalmente, em um modelo eclesiástico de organização e só pode ser entendida, segundo Andrade (1998, p. 59), no quadro complexo da administração portuguesa da época:

O fato de estar a Igreja em Portugal unida ao Estado pelo sistema do padroado, sob o qual a instituição religiosa era considerada entre as instituições políticas da nação, permitia que a Coroa tivesse grande ingerência nos assuntos eclesiásticos, inclusive nomeando e remunerando os clérigos. Por outro lado, o mesmo permitia que as diversas categorias da administração eclesiástica – capela, paróquia ou freguesia, bispado – fossem também utilizadas pelo governo monárquico para fins da própria administração pública.

Não foi à-toa, pois, que, em cada paróquia que se ia criando, uma igreja circunscrita em seu centro era elemento fundamental à sua legitimação. Essa ligação entre paróquia, noção territorial, e igreja, na cidade de Salvador, pode ser vista nos templos católicos que deram seus

nomes às freguesias. Assumia também paróquia ou freguesia um sentido político-administrativo, uma vez que era reconhecida como um dos limites do município. Em Salvador, as 11 paróquias assumiram características próprias, a depender da sua localização geográfica, da atividade econômica exercida pela maioria dos habitantes e da classe social a que pertenciam os seus moradores (Nascimento, 1986, p. 28-38).

Os dados do censo de 1872 apresentam a vantagem de distribuírem os números de alfabetizados por paróquia, o que possibilita desenhar um perfil quanto a esse aspecto em cada uma delas. Na tabela que se segue, apresentam-se os números referentes ao conjunto da população da cidade, distinguindo-se os homens das mulheres:

Homens e mulheres alfabetizados na cidade de Salvador, 1872

PARÓQUIAS HOMENS MULHERES