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A fala plena e a fala vazia no dispositivo de análise

5. A palavra em Lacan: palavra vazia e palavra plena )

5.1 A fala plena e a fala vazia no dispositivo de análise

Para Lacan, a importância da fala (parole) não é determinante apenas na sua trajetória como psicanalista e orador. No seu texto “Função e campo da palavra e da linguagem” (1953), ele diz que irá “falar da fala” (LACAN, 1998, p. 239), de uma fala que emerge em

dois circuitos, a fala plena e a fala vazia. O início do texto traz comentários de Lacan sobre a contemporaneidade da Psicanálise vista numa fenomenologia existencial, uma recuperação do caminho que foi sendo traçado por Freud, e da atenção que deve ter o analista, caso vá se enveredar pelo insensato abandono ao fundamento da fala (1998, p. 244).

Dessa forma, o dito é o momento de iluminação de Lacan na retomada da fala ou

parole em que a palavra torna-se fundante no dispositivo analítico com a volta a Freud, resgatando “o inconsciente estruturado como linguagem”, tendo como protagonista do processo o sujeito desejante.

A prática analítica tem seu elenco de conceitos, os quais só adquirem sentido ao se orientarem num campo da linguagem, ao se ordenarem na função da fala (1998, p. 247): “Ora, toda fala pede uma resposta. Mostremos que não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte, e que é esse o cerne de sua função na análise.” (1998 p. 248-9). A partir dessa premissa, inicia-se o processo da análise, nem mais, nem menos, com a fala do analisando — a partida para algum lugar que ele nem imagina existir, pois, ao falar, ele não sabe o que diz e, quando diz, se assusta na surpresa do dito.

A palavra é em princípio componente substancial da trama discursiva que permite emergir de forma cifrada – a qual o sujeito desconhece – e que está atrás do muro da linguagem. É como se, dentro das palavras (não sei se poderia dizer que há um dentro da palavra, falo como me senti neste dispositivo), coubessem outras versões que se acham ocultas do dito, articuladas em uma polifonia-subvertida que faz corpo entre as instâncias do consciente e do inconsciente pela via do discurso. “O dizer está debaixo do dito, é recoberto pelo dito”(MILLER, 2002). Nesse sentido, pode-se caracterizar a palavra vazia que, em princípio, carrega um invisível – o vazio que traz é aparente, como o silêncio que aparece numa parada —, a linguagem “sem som”, mas que está a inscrever um assinalamento incessante no percurso discursivo.

Nesse circuito, se evidencia a operação do dispositivo de análise que denota a fala

vazia, constituindo-se duplamente no discurso do analisante, no qual, podemos perceber a presença do outro que Lacan simbolizou pela letra minúscula “a” (referindo-se ao imaginário); e o Outro simbolizado pela letra maiúscula “A”(Grande Outro), que ele chama no Seminário II de o Outro verdadeiro, o Outro do Simbólico. Este é “instado a se inscrever” em presença de um espelho vazio, ou seja, corresponde ao terceiro que escuta a fala dita em associação-livre. No caso representado pelo analista em posição de Outro.

Lacan destaca que há momentos de silêncio e oralidade e, neles, o analista intervém pontuando o para-além que, da fala “escapole”, nos elementos surpresas, tropeços, nas meias-palavras, nos quais surge um sem-sentido que se torna sentido-mais, — ao retornar, como parada ao que fala desperta-lhe para o que ele “não diz”, pois aquilo que é dito censurado (recalcado) chega, muitas vezes, sob a forma de um estranhamento discursivo. É entre a falação da fala vazia que advirá a verdade, a fala plena sub-assumida no discurso.

Lacan, em seu retorno a Freud, vai buscar na fala os efeitos de linguagem pelo falar, rememorando os episódios vividos do analisando, quando ditos em associação-livre e, a partir desse processo o analisante fará sua construção de análise. É na fala que o analisante pode advir como sujeito, o que a Psicanálise destaca como sendo a sua maior contribuição ética.

Essa liberdade da fala que maneja a palavra disponível dos seres falantes revela o Outro de cada um, portanto, um ato singular que espera encontrar nesse Outro uma maneira de desangustiar-se de sua falta a ser, buscando completar-se, o que, no entanto, é algo impossível. Guiando-se por tal ordem, Lacan enunciou o célebre aforismo “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. A linguagem ocupará o lugar da lei, ao passo que a fala se distinguirá da linguagem por se localizar no campo do singular, já que é pronunciada pelo sujeito desejante e produzirá um efeito de sentido, um não-sentido que, no dizer de Lacan, seria a alíngua.

É nesse sentido que se deve entender que a fala é um ato e também uma produção de desejo, pois ela articula assim o sujeito à sua estrutura, que se sustenta ao mesmo tempo pelas leis da linguagem e pelo saber da língua do inconsciente. (KAUFMANN, 1996, p. 190)

Assim, a fala, entendida por vazia, assume a condição de uma fala enigmática, por conter em sua constituição um além a letra, mais que verdade, mentira e revelação; aquela que o “sujeito parece falar em vão de alguém que, mesmo lhe sendo semelhante, a ponto de ele se enganar, nunca se aliará a assunção de seu desejo” (1998, p. 255) e, pode surgir no momento de uma “pontuação oportuna” do analista.

“A palavra plena é a que faz ato.” (1986, p. 129) e emerge na situação em que o sujeito é falado, e não se trata da realidade, trata-se da “realidade que se define pela contradição” (1986, p. 304), da verdade subsumida no discurso falado. Aparentemente, nada “diz” no momento que tropeça o falante. Lacan (1986, p. 61) denominou “palavra verídica” àquilo que emerge “sem sentido” no discurso e, a essa afirmação, ele aduz: “Deus sabe quão

longe ela pode ressoar, essa palavra verídica”, a qual nos vem como uma ressonância semântica, como uma deformação (enstsellung). Aqui, a palavra plena (como revelação, e não, como expressão, posiciona-se por transcender o discurso) opera uma resistência no momento que trai o falante, escapando por entre os dedos da linguagem. É quando o analista se depara com o “ponto-pivô” (1986, p. 62) no dispositivo analítico, um momento de corte, para fazer dali emergir o que está velado ao sujeito e que, num só depois, advém ao que a pronunciou “na medida em que o homem é suporte de formações discursivas não fala, mas é falado por um discurso” diz Fiorin (2005, p. 44).

Dessa forma, o pensamento de Lacan, retomando o papel do analista no dispositivo de análise, destaca a importância do discurso no seu momento de parada: “[...] a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito até que se consumam suas últimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas.” (1998, p. 253). A fala plena está na disposição de uma “suposta-solução” ou, pelo menos, é a precursora de uma objetivação meio-dita no discurso, que é o do Outro (A), pois, “está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido ou até formulado com graça e que o lapso é a mordaça que gira em torno da fala, justamente pelo quadrante necessário para que um bom entendedor encontre ali sua meia palavra.” (1998, p. 269). O que dela o sujeito fará é o passo seguinte: “O que conta é o que disso reconstrói.” (LACAN, 1986, p. 22).

Palavra plena e palavra vazia estabelecem uma imbricação dialética que, aparentemente, está a instituir uma contradição semântica em meio a uma falação reconhecida com um erro, um equívoco, ou um lapso de linguagem. Mas, é essa complexidade que mescla estrutura e subjetividade, que permite uma transitividade115 nas palavras que as expande da mera significação linear. Ao estabelecer essa mântica116 binária, a palavra assume sua posição de enigma e quem lhe confere esse atributo é a presença de um corpo; dizemos que é aí que entra em cena o sujeito em análise, permanente surpresa que advirá da fala. O dispositivo de análise evoca o sujeito que fala e pede uma resposta, ou seja, evidencia uma demanda de saber. O sujeito fala, mas resiste ao que emerge de deu dito, cabendo ao analista uma “pontuação oportuna” ou a suspensão, para provocar ali o ponto de “báscula da palavra”. “E, a situação do sujeito – vocês devem sabê-lo desde que lhes repito – é essencialmente

115 No sentido de buscar conectividade entre mensagens que se inter-relacionam, sem que o fim seja uma

complementaridade mas, uma via outra que, no fora de sentido, revela um dizer subliminar, um significante novo.

caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico ou, em outros termos, no mundo da palavra.” (LACAN, 1986, p. 97). Assim, o simbólico tem o lugar de expressão e revelação na apresentação da palavra, o que não quer dizer que Lacan, em sua perspicácia, não se precavesse de alertar para os excessos que o simbólico entifica: “A palavra pode exprimir o ser do sujeito, mas até certo ponto, não chega nunca a isso.” (1986, p. 128):

Para Lacan, a troca da palavra humana se estabelece em dois planos:

“[...] — o plano do reconhecimento,— enquanto a palavra liga entre os sujeitos esse pacto que os transforma, e os estabelece como sujeitos humanos comunicando.— o plano do comunicado, em que pode-se distinguir todo tipo de patamares, o apelo, a discussão, o conhecimento, a informação mas que, em última instância tende a realizar o acordo sobre o objeto. O termo acordo está aí ainda, mas o acento é colocado sobre o objeto considerado como exterior à ação da palavra, e que a palavra exprime. Claro, o objeto não deixa de ter referência à palavra. (1986, p.129, grifos meus).

Desse raciocínio, depreende-se que o plano do reconhecimento ocorre na dimensão da alteridade, instituído no campo da fala que visa à fala plena. Neste espaço comparece a hiância, da qual, a palavra escapa. Desse modo, “um dos sujeitos se encontra depois, outro que não o que era antes.” (1986, p. 129).

O plano do comunicado é um campo discursivo ampliado, um campo da expressão, do saber sobre e da fala livre, que lembra fala vazia, em que o objeto emerge, “exterior à ação da palavra” (idem, ibidem), mas nela misturado.

Estabelecido o dispositivo de análise, instaura-se o “ato da palavra” (1986, p. 130), pois Lacan afirma haver uma transferência eficaz, no sentido de “experiência dialética”. Com essa fundamentação, ele pretende conferir à relação “sujeito a sujeito” uma qualificação diferente da idéia de transferência positiva, inicialmente usada por Freud, fugindo da análise intelectualista. A “palavra verídica” não nos chega pela observação, mas sim, pela interpretação no sintoma, no sonho e demais manifestações discursivas do inconsciente, não seguindo as leis do discurso. Para isso, ele destaca haver mais do que está na doutrina ou na intelectualização do processo, visto que a fala se inscreve de maneira “plurivalente em vários registros, o simbólico, o imaginário e o real” (1986, p. 134).

A complexidade de que se reveste esse fenômeno é tratada por Lacan no texto

Intervenção sobre a Transferência (1951). A partir de uma ilustração do caso “Dora”, focará questões que atravessam o dispositivo analítico, como o processo de “inversão dialética”,

vertido pelo discurso da “paciente” e que redunda num “desenvolvimento da verdade”, o qual se acha dialeticamente camuflada no dito, demandando uma engenharia de constructos.

Trata-se de uma escansão das estruturas em que, para o sujeito, a verdade se transmuta e que não tocam apenas em sua compreensão das coisas, mas em sua própria posição como sujeito da qual seus “objetos” são função. (LACAN, 1998, p. 217)