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A trajetória pela linguagem: periodizações ou outro percurso?

2. A linguagem em Paulo Freire: a trajetória de uma referência

2.8 A trajetória pela linguagem: periodizações ou outro percurso?

Procurei, ao longo dessa reflexão teórica, resgatar a relação de Freire com a linguagem desde a infância à vida adulta. Para tanto, discuti as periodizações que alguns de seus estudiosos teceram, demonstrando elementos significativos da ligação de Freire com a linguagem em sua obra ao evidenciar a singularidade que o marca como sujeito pela e com a palavra.

Ao partir da percepção de que as periodizações refletem semblantes de Paulo Freire, chega-se a uma primeira constatação: é possível construir um semblante a partir da eleição de um enfoque epistemológico, seja ele histórico, sociológico, político ou cultural. Isso não quer dizer que o enfoque escolhido seja suficiente para capturar o sujeito no que ele deixou transparecer simbolicamente de sua ação no mundo.

As contribuições da Psicanálise sugerem compreender que as posições estudadas refletem o eixo de captura da Sociologia, do posicionamento político, da História, da Cultura e das idéias referidas a um saber e, portanto, a um semblante. Dessa forma, pensei em apontar outra maneira de percepção, ao trazer para o debate o lugar do semblante como o saber suposto que vem nos fazer uma representação e explica que a “verdade” supõe algo, mas o registro do saber se mostra inconcluso59 como o próprio sujeito.

O saber é da ordem do semblante. Ele se encontra atrelado ao processo do sujeito. Não se trata mais de um saber universal. Ele se apresenta sob várias vestimentas. Todas são semblantes, nenhuma é a coisa. Por isso, é preciso que nós não confundamos saber e verdade. [...] Além disso, Lacan acrescenta que mesmo assim, o professor enquanto um semblante não é capturado enquanto tal. Isto porque todos os significantes, significados e sentidos vazam. Ou seja, todos eles escoam, sem ainda revelar o aluno, o professor, o saber, a verdade. Esta última, mesmo na análise, só pode ser entredita, dita pela metade. Vai sempre ficar faltando a outra metade. (MRECH, 1997)

59 Em uma percepção focada pela Psicanálise lacaniana, essa apreensão imaginária e simbólica do sujeito

(semblante) estaria no primeiro andar do grafo do desejo (Eu); o andar superior que seria aquele da leitura da palavra “plena” demonstraria um nível maior de verdade desse sujeito, expresso pelo Grande Outro (A), mas que não é limite para a revelação sobre o sujeito em questão.

Primeiramente, como decorrência das concepções da Psicanálise, é possível que os paradigmas assumidos pelos autores comentados anteriormente representem leituras imaginárias e simbólicas de Paulo Freire, pois recorrem a um conjunto de teorias e conceitos cruzados a um que fazer e explicados por um como fazer que, reunidos num pensamento organizado, traduziram-se por uma simbolização. Como bem percebe Mendonça, (2001, p.92) algo escapa “o saber científico não possui um ponto de basta, sempre permanecerá uma ‘sobra’ desse fenômeno que não se conseguirá teorizar.”.

Em segundo lugar, essas leituras apresentam-se como construções imaginárias e simbólicas, pois compõem um conjunto de dados que objetivam capturar o objeto Paulo Freire, valendo-se tão somente de percepções do que ele dissera ou escrevera, isto é, por meio da concepção que cada um dos autores estruturou.

Mas o Outro de Freire, que aparece nos equívocos, nos não-ditos, no redizer o dito e no erro está velado; há um resto não capturável, emergindo em pedaços e em detalhes discursivos “deixados de lado”.

Do ponto de vista do self ou do eu, o “Eu” é quem dá as cartas: aquele nosso aspecto que chamamos de “Eu” acredita que sabe o que pensa e sente, e acredita que sabe por que faz e o que faz. O elemento intruso – aquele Outro tipo de fala – é deixado de lado, considerado aleatório e, portanto, sem nenhuma importância. (FINK, 1998, p. 20).

É neste terreno árido que delineei meu plano de pesquisa e percebo que, neste investimento, torna-se fundamental esclarecer que a leitura psicanalítica contribui para demonstrar os limites próprios de qualquer construção imaginária ou simbólica. E, assim, é necessário reconhecer que tanto o exposto pelos autores quanto o empenho que fiz para apresentar uma outra leitura dessas contribuições estarão invariavelmente submetidos a esses limites, embora cada um revele aspectos que permitem conhecer um pouco mais desse grande educador.

As leituras simbólicas e imaginárias, na tentativa de capturar o objeto Paulo Freire, nem sempre reconhecem os aspectos que escapam, porque é impossível apreendê-lo nas dimensões do que ele viveu, do que ele foi e do que ele deixou como legado. É evidente que as percepções apresentadas neste trabalho transmitem uma idéia (semblante), mas não podemos tomá-la como rigor de verdade, capaz de definir o sujeito pela referida imagem de captura. A linguagem falha quando menos se espera e, assim, é preciso cautela ética diante do

discurso, pois pode ser que o sujeito não esteja no lugar da percepção daquele que fala, que lembra o cogito lacaniano: “[...] soy donde no pienso y pienso donde no soy” (LACAN, 1967).60

O sujeito na psicanálise lacaniana se acha dividido entre o que diz e o que não diz, mas que pulsa na fala e emerge em fragmentos ditos sob a forma de “enganos discursivos”, de equívocos etc. Ele se acha traído entre o que diz e a verdade velada de seu dizer, aspecto que veremos mais pormenorizadamente no Capítulo V, no esquema L de Lacan, no “muro da linguagem”.

Considerando essa condição que o saber ocupa – o lugar de saber suposto –, pensei na possibilidade de outra leitura da obra freiriana que se tecesse pela linguagem, mas não, pela linguagem do saber que delineou vários semblantes de Freire e, por esse motivo, pergunto: será que não haveria um outro modo de percebê-lo que se tecesse pela linguagem subsumida e que está nos “não-ditos”, nos equívocos, nos tropeços, (FREUD, 1901) que poderiam oferecer uma outra percepção de Paulo Freire?

Este é o meu intento: delinear uma outra maneira de percebê-lo, indo pelo caminho do não-saber, pelo que se escapou ao sentido, rastreando as impressões psíquicas, que Freire deixou contidas na linguagem de seu texto escrito e nas demais fontes catalogadas de sua passagem pela Educação.