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A visão de Vanilda Paiva: sem rompimentos bruscos

2. A linguagem em Paulo Freire: a trajetória de uma referência

2.5 A visão de Vanilda Paiva: sem rompimentos bruscos

A educadora Vanilda Paiva apresenta em seu livro Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista uma das críticas mais contundentes ao trabalho de Paulo Freire, ao afirmar que há pontos débeis (2000, p. 33) nos escritos produzidos até 1965. Segundo essa autora, há certa imprecisão teórica que se acompanha de um desdobramento das idéias (carências que

Freire buscou suprir em seu trabalho posterior a 1965) e essas características permitiram a cada leitor fazer de seus livros a leitura que mais lhe conviesse.

Em seus comentários, a pesquisadora explica que o trabalho de Freire tem seu nascedouro no nacional-desenvolvimentismo dos anos de 1950, época em que se reproduziu um modelo de populismo presente nas “reformas de base”, embora o trabalho de alfabetização não fosse “um instrumento colocado a serviço do populismo tradicional”, considerando que o isebianismo o traduzia no plano teórico. Ela afirma, porém, que a pedagogia e a aplicação do “método” eram tentativas de rompimento das amarras do populismo tradicional por parte das classes populares (op. cit., p.36) que o designam como afim ao “populismo indutivista” de inspiração calcada no existencialismo cristão. Nesse sentido, ela sente haver uma ambigüidade na pedagogia de Freire que não é menor nem distinta da que se encontra em Vieira Pinto (op. cit., p. 238).

Outro ponto controverso nos comentários de Paiva e que ela ressalta é o fato de Freire não demonstrar claramente uma opção socialista no seu pensamento, pois, para ela, ele leva muito pouco em conta os interesses de classe em suas análises e considera insuficientemente a estrutura e seu papel na evolução das sociedades (op. cit., p. 132).

Em outra obra (2005), a pesquisadora argumenta que, entre 1958 e 1964, houve no país uma ampla mobilização nas áreas de cultura popular e alfabetização, da qual Paulo Freire foi parte. O PNA – Plano Nacional de Alfabetização – do Governo João Goulart foi um campo de luta da UNE, sob a influência do Partido Comunista, do qual Freire participava. Trata-se de um momento em que o educador ainda não está tão próximo dos radicais do ISEB,45 representantes da influência metódica cartesiana associada ao marxismo da missão francesa.

A autora afirma vê-lo como um católico-escolanovista e explica que sua atuação transforma-se em ponto de aglutinação de correntes antagônicas do catolicismo e da ala liberal brasileira do período anterior a 1950. Posteriormente, recebe influência do maritanismo, mas avança seu pensamento pela influência do personalismo radical de Mounier (1973, p.100) “a ruptura e a reviravolta são categorias essenciais da pessoa” e, o “método pedagógico”, quando apareceu, tornou-se um porta-voz prático e bem sucedido de suas idéias. Destacam-se nos textos freirianos a influência de Oliveira Viana e de Gilberto Freyre no período pré-isebiano e, segundo Paiva, no fim dos anos 1940 e no início dos anos 1950,

45 ISEB é o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado em 14 de julho de 1955, por decreto do governo de

provavelmente, o pensamento de Freire foi fruto da mobilização intelectual da qual fizeram parte os isebianos históricos. É possível perceber sua simpatia pelo pensamento hegeliano de Corbisier46 e de Vieira Pinto, sobretudo, no que se refere às questões ligadas à consciência, bem como, pelo existencialismo cristão do pensamento de Jaspers.

[...] a síntese “existencial-culturalista” está presente não apenas na justificação teórica do método e na interpretação da realidade esboçada por Freire, mas desempenha um papel central no próprio método, determinando em grande medida suas características, seus objetivos e a forma da sua aplicação.

(PAIVA, 2000, p. 99)

Para Paiva, foi nesse clima que o educador pernambucano imaginou seu método e o testou em Angicos e, depois, em Brasília. E a autora esclarece que é importante lembrar da influência significativa do movimento Peuple et culture,47 quando Freire participou ativamente no Movimento de Cultura Popular (MCP) no governo de Miguel Arraes, em Pernambuco. Provavelmente, essa experiência seja a que lhe inspirou elementos teóricos para a criação dos Círculos de Cultura, uma metodologia que fazia parte de seu projeto de educação.

No campo pedagógico, Paiva esclarece que as teses de Anísio Teixeira relativas a regionalização do ensino, adaptação à cultura local e descentralização do sistema educacional se fizeram presentes no discurso de Freire. E, como exemplo, ela cita a questão da descentralização do poder na escola como um tema por ele defendido e que, uma vez levado a efeito, provocaria na comunidade uma experiência que propiciaria tomar nas mãos o controle do sistema escolar, bem como interferir nas decisões sobre o processo educativo (2000, p. 119). Tais fatores seriam fundamentais para permitir à população migrar da “consciência transitiva ingênua”48 para uma “consciência transitivo crítica”,49 aquela capaz de produzir

46. “A liberdade que representa um valor, uma idéia-força que sempre sublevou e galvanizou os homens, sendo

talvez a mola mais poderosa de todos os movimentos históricos, não é a minha liberdade ou a do meu partido apenas, e o sacrifício da liberdade dos outros homens e dos outros partidos, mas a minha e dos outros também, a coexistência, a afirmação simultânea da liberdade de todos.” (CORBISIER, 1950, p.23)

47 O movimento francês Peuple et Culture, braço da esquerda francesa, atuava vinculado ao movimento popular

francês e foi onde Germano Coelho fez passagem. Germano fazia parte de um grupo de intelectuais atuantes no Governo Arraes e ajudou a implantar o MCP - Movimento de Cultura Popular de Pernambuco. Freire participou também do MCP e pode ser que tenha se inspirado nele para criar os Círculos de Cultura.

48 Consciência transitivo-ingenua “é aquela que amplia o poder de captação e de resposta às sugestões que

partem do seu contexto... seus interesses e preocupações se alongam a esferas bem mais amplas do que à simples esfera vital.” (Educação como pratica da liberdade, p. 60).

49 Consciência transitivo-crítica - às vezes, chamada simplesmente de “consciência crítica” “se caracteriza pela

profundidade na interpretação dos problemas... por princípios causais” (Educação como pratica da liberdade, p. 60). (Ver consciência crítica).

transformação social decorrente da gestão decisória na escola como exercício democrático de poder.

Paiva acredita que Freire buscou também em Guerreiro Ramos fundamentações sobre a questão das consciências, embora discordasse parcialmente desse pensador. A autora acredita que Freire defendia a passagem da “consciência intransitiva”50 para a “consciência transitiva”51 como insuficiente para a formação de um sujeito crítico e, por esse motivo, entraria o trabalho educativo da escola com o objetivo de complementar esse processo. Assim, pela comunicação entre as consciências é que se criaria um intercâmbio dialógico, propiciando o surgimento da consciência crítica, estágio mais elevado de visibilidade da realidade.

Paiva pontua que não menos importante foi a influência do pensador húngaro Mannhein sobre a filosofia do “método” de alfabetização. Dele, Freire absorveu a concepção sociopolítica e a Psicologia Social, na relação que desenvolve com as “massas”, para resistir ao poder totalitário e se fortalecer a educação crítica. Tanto para Freire como nos ensinamentos de Mannheim, a reforma da educação e da sociedade eram partes de um mesmo processo. A visão era mais do que educação, era política na forma de se instituir, indo de uma instituição a outra e se delineando uma linha de decisão comprometida com a responsabilidade social em conseqüência de uma concentração de renda, fato que reproduz uma ética de exploração do outro, e com a política, na dimensão da relação dos sujeitos com o poder.

[...] Reforma que atingisse a própria organização e o próprio trabalho educacional em outras instituições, ultrapassando os limites mesmos das estritamente pedagógicas. [...] necessitávamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política. (FREIRE, 2002a, p. 96).

50 Consciência intransitiva - Escapa ao homem intransitivamente consciente à apreensão de problemas que se

situam além de sua estreita esfera biologicamente vital. É uma consciência em que não se percebe nem se pode perceber, claramente pelo menos, o que há nas ações humanas de resposta a desafios e a questões que a vida apresenta ao homem, ou melhor, a consciência intransitiva implica uma incapacidade de captação de grande número de questões que lhe são suscitadas (FREIRE, 2001c, p. 34, 35)

51 Consciência transitiva - Esta consciência transitiva é, porém, num primeiro estágio, predominantemente

ingênua; num segundo, predominantemente crítica. A transitividade ingênua, fase em que nos encontramos com tintas mais fortes aqui, menos ali, se caracteriza pela simplicidade na interpretação dos problemas; pela tendência a julgar que o tempo melhor foi o tempo passado; pela transferência da responsabilidade e da autoridade, em vez de sua delegação apenas; pela subestimação do homem comum; por uma forte inclinação ao “gregarismo”, característico da massificação; pela impermeabilidade à investigação, à qual corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas; pela fragilidade da argumentação; pelo forte teor de emocionalidade; pela desconfiança de tudo o que é novo; pelo gosto não propriamente do debate, mas da polêmica; pelas explicações mágicas; e pela tendência ao conformismo. (FREIRE, 2001c, p. 32-33). Educação e atualidade brasileira.

Paiva (2000, p. 155) reconhece que a obra de Freire agrega detalhes especiais no manejo dos conflitos entre grupos e aponta nesse aspecto a participação das idéias de Mannheim, que possibilitaram forjar uma “teoria da personalidade democrática”. A autora ressalta ainda que as concepções freirianas incorporam, mesmo que de modo superficial, alguns elementos de Psicologia e Psicanálise, os quais, articulados, buscavam atuar coletivamente, objetivando a abertura espiritual, a cooperação e a aceitação da crítica entre as pessoas.

Com esses conhecimentos, se esperava um avanço no manejo das relações que geram conflito entre os sujeitos, ao rejeitar as posturas autoritárias e a tolerância para com os desacordos comuns nas relações grupais, assim objetivando um comportamento integrador, próprio a pessoas conscientes e que conseguem transmudar seus diferentes enfoques, no intuito de cooperar com um sistema de vida coletiva. Para tal, Freire vale-se do uso de técnicas de “análise de grupo” para combate a “padrões irracionais”, bem como, o pensamento mágico, as idiossincrasias aos tabus que os geram.

[...] esses padrões irracionais desapareceriam à medida que, pela catarse, fossem sendo trazidos à consciência os mecanismos inconscientes que os produziam e que têm sua origem não somente na constelação familiar de cada um mas em toda a configuração das instituições sociais. (PAIVA, 2000, p. 157).

Percebo mais uma autora que traz na percepção do trabalho de Paulo Freire elementos que o aproximam de alguma referência da Psicanálise e vejo com singular atenção essa contribuição de Paiva, por ter sido ela uma das autoras que mais trouxe críticas ao trabalho de Freire, ao esquadrinhar sua obra.

Conforme Paiva, outro ponto fundamental de análise da trajetória de Freire refere-se à sua ida para o Conselho Mundial das Igrejas, o que, segundo ela, foi parte de um processo de fortalecimento da ala progressista católica romana que atribuiu uma dimensão planetária à pedagogia do “método”, o qual apresentou resultados aplicáveis em outros países e pôde estabelecer-se como uma força política planetária.

[...] ele foi instado a dar maior consistência a suas idéias e a reforçar o caráter católico-cristão progressista de sua pedagogia, pois essa era a condição para o lançamento e a propagação de suas idéias e de seus escritos em nível mundial. (PAIVA, 2000, p. 26).

No período seguinte, ela afirma que “o método” atrai simpatizantes de vários países: “Tudo é Freire” (PAIVA, s/d). A associação entre o pensamento do nacional- desenvolvimentismo, o existencialismo europeu e as expressões do nacionalismo africano forneceram a base para trabalhar com as díades opressor/oprimido, colonizador/colonizado.

Paiva entende ser necessário um estudo específico do trabalho de Freire a partir da segunda metade dos anos 1960. Em sua análise, não observa em Freire uma nítida opção socialista de discurso, capaz de tecer uma crítica ao isebianismo e ao maritainismo, correntes que o acompanhavam até aquele momento (PAIVA, 2000, p. 130). O fato de não ser um marxista nos moldes dos grupos que o apoiaram na década de 1970 não causava demérito algum. O que parecia ser sua debilidade tornou-se a força de sua proposta pedagógica, tendo em vista a derrocada do socialismo real na década de 1980.52

Com as profundas mudanças operadas nas últimas duas décadas do século XX, o fim do keynesianismo e a fragmentação das bases de sustentação do welfare state, o retraimento dos estados nacionais e o declínio do industrialismo, Paiva (s/d,) pergunta como se pode localizar a atualidade das idéias de Freire, se o eixo de sua base teórica se acha associado às demandas de mobilização política e estão estreitamente vinculadas a esses cenários em declínio na contemporaneidade?

Para a autora, é fato que Freire tem sobrevivido a muitas dessas transformações, nas quais, o liberalismo se expandiu e recriou novas formas de organização, atingindo, assim, os movimentos sociais e fortalecendo a vertente do solidarismo e da filantropia. São exemplos que se enquadram nessas práticas, os grass-roots movements,53 as ONGs, as organizações de luta contra o neoliberalismo cuja inspiração está nas idéias de Freire. Tais segmentos mais laicizados atuam na mobilização comunitária com o solidarismo, de modo a promover a articulação de bandeiras de luta, muitos dos quais cobrem serviços onde o Estado não chega, porém em formatos diferentes daqueles praticados nas décadas 1960 e 1970. Entretanto é evidente que Freire jamais apoiaria a substituição do papel do Estado nas ações de atenção às demandas sociais básicas defendidas por ele historicamente.

Em termos da contemporaneidade, Paiva acredita que o legado de Freire poderá sobreviver no início do terceiro milênio, seja pelo eixo teórico do “método” seja pela produção do período seqüente à sua volta, sobretudo, considerando-se o crescente processo de

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Vanilda Paiva “Paulo Freire e o pragmatismo americano: os riscos das afinidades na história das idéias”, s/d, (mimeo) texto cedido pela autora.

expansão do liberalismo que sufoca as economias periféricas, em detrimento dos núcleos de poder e de exploração econômica dos países ricos. Mas, sobretudo, é importante que Freire seja “entregue a ele mesmo, pois continua tendo força para atravessar o longo período que nos empurra para uma sociedade mais desigual, mais desprotegida, mas, também, mais dotada de meios de difusão do conhecimento e das tecnologias sobre as quais tal difusão se apóia”.54

Na análise que Paiva faz, o pensamento de Freire se mantém sem mudanças expressivas, sem rompimentos bruscos do tempo em relação ao “método” e à volta do exílio. Há dois aspectos se fazem notar: primeiramente, o cenário político-social da experiência de alfabetização estava sintonizado com estratégias e núcleos de poder peculiares àquele contexto histórico mundial, diferente da direção que tais núcleos tomaram a partir dos anos 1980 para cá, pois os movimentos sociais modificaram suas estratégias de atuação.

Em seguida, no que se refere ao discurso de Freire, a autora afirma haver um redirecionamento que se dirige primeiro à educação popular e, posteriormente, no retorno do exílio, volta-se para toda a educação. A autora, ao fazer sua crítica a Freire, demonstra haver no “método” algo que é o destaque de Freire. Ela aponta a influência de Mannheim, absorvendo elementos de Psicologia Social e, mais a seguir, fala de uma psicanálise ligada aos conflitos dos grupos sociais; depois, sinaliza que Freire pode tornar-se uma referência para as novas formas de articulação e militância social na contemporaneidade. Para minhas análises, são intrigantes as pontuações que ela faz, trazendo Freire dos anos 1960 para movimentos sociais tão diferentes como os atuais.