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Beisiegel contesta: não há fases

2. A linguagem em Paulo Freire: a trajetória de uma referência

2.6 Beisiegel contesta: não há fases

O professor e pesquisador da Faculdade de Educação da USP, Rui de Celso Beisiegel (1982) conviveu em momentos importantes com Freire e realizou uma minuciosa pesquisa nos anos 1980, tendo recuperado vários aspectos da obra e da atuação do educador.

Os elementos encontrados na pesquisa desse professor valorizaram a percepção de conjunto sobre as contribuições e o conhecimento freiriano, demonstrando sua face de complexidade e expurgando simplificações redutoras de alguns de seus críticos.

54 Vanilda Paiva “Paulo Freire e o pragmatismo americano: os riscos das afinidades na história das idéias”, s/d,

O autor diverge da concepção do trabalho de Freire em fases e assevera que “não há essas fases” e que, ao contrário, a obra freiriana se constitui em um processo continuado de “enriquecimento de posições”, nas quais Freire defende o tempo todo o respeito ao outro e à cultura do povo, bem como, toda temática teórica envolvida nas polêmicas entre marxistas, sobre os papéis das “vanguardas revolucionárias” (BEISIEGEL, 1982, p. 277).

Sobre as aproximações de Freire com o pensamento marxista, o estudioso defende que “foram sempre cautelosas”, havendo mudanças no pensamento do educador, mas não o colocando em contradição com as afirmações anteriores a propósito do homem e do processo de humanização, em que o sujeito é visto como um ser inacabado, limitado e aberto.

Assim, o que mudou, e muito, ao longo de sua atividade foi mesmo a compreensão dos modos de organização do social. Foi aqui, no que respeita à organização da sociedade e, por extensão, às articulações do social com a educação e com os destinos dos homens, foi exatamente nos temas aí abrangidos que o educador passou a apoiar-se mais largamente, na bibliografia de orientação marxista. (BEISIEGEL, 1982, p. 279).

Beisiegel declara que a mera interpretação dos significados das teorias em que Freire se apoiou não pode ser um critério suficientemente completo para julgar sua obra, mesmo porque as “ingenuidades” pelas quais Freire foi criticado foram superadas ao longo de sua prática. Sua leitura ressalta a dimensão redutora do modo funcionalista empregado para interpretar o pensamento do educador e sua base teórica. Essa perspectiva torna-se fundamental para compor uma leitura ampliada da grade conceitual freiriana.

O próprio Freire não declara em momento algum sua experiência como acabada, antes, ele revê suas posições continuamente, num processo dialético. Beisiegel assevera que “as explicações para esses movimentos da prática e do discurso são inegavelmente mais complexas” (1982, p. 283).

Reiteradamente, encontrei nesse detalhe do seu texto algo que tem a ver com o caráter incompleto de uma elaboração simbólica – via teoria – para demonstrar o conjunto multifacetado de um fenômeno social: a prática de Freire e sua relação com as teorias que alimentam essa prática ocorreu numa perspectiva dialética e, portanto, aberta a uma superação ou a novidades sobre o teorizado.

Pela análise que fez da obra de Freire, o pesquisador entendeu que não seria coerente uma periodização definida em fases, dado o caráter de fragmentação que essa poderia gerar. Ele é resistente a qualquer possibilidade nesse sentido e sustenta que existe, sim, uma progressão dialética do pensamento freiriano, fruto de uma ação praxiológica recorrente, sobre a qual o educador teorizou e aplicou suas experiências. O próprio Freire reconhece que existem mudanças, mas reitera uma determinação dialética que as engendra e as filia sempre no processo de sua história. E Beisiegel acentua que as “ingenuidades” cobradas pelos seus críticos tinham na prática educativa uma contrapartida que respondia em si mesma pelas determinações ausentes na teoria e, daí, decorre um relativo distanciamento percebido e questionado por Freire:

[...] Se eu tivesse tido uma prática idealista no Brasil, não teria sido encarcerado, nem demitido da Universidade, nem minha leitura proibida até hoje, oito anos depois. É que houve uma distância entre a teoria e a minha prática. (FREIRE, apud BEISIEGEL, 1982, p. 282).

Beisiegel (1982, p. 283) defende a inexistência dessas fases, ao enfatizar a dificuldade de se tentar compreender e explicar as razões que determinam mudanças e orientações do pensamento de um autor. A natureza dos trabalhos escritos está vinculada à própria prática educativa que dá o seu testemunho inequívoco e o que não se percebe nos livros é confirmado na aplicação de suas idéias. Dos posicionamentos questionados por alguns críticos, não se pode dizer que geram assimetrias teóricas graves e a atuação do autor é o melhor testemunho daquilo que ele se propôs a fazer.

Por que não reconhecer que Paulo Freire, em sua própria história, talvez tenha sido o melhor testemunho da validade de suas idéias a propósito das relações entre o educador e o educando, no processo de mútua explicitação dos fundamentos da realidade social? (BEISIEGEL, 1982, p. 287).

O que percebo na pesquisa de Beisiegel sobre o trabalho de Freire é o destaque de um sujeito singular, na gênese de seu projeto; um caminho que se delineia pelas próprias idéias e que, ao serem vivenciadas na prática educativa, transformam-se dialeticamente. Ao questionar a periodização do pensamento freiriano em fases, fragmentando-o, o professor defende toda a obra como um conjunto processual em que os momentos se superam de forma interligada e geram novas posições, sem assimetrias teóricas importantes.

Em entrevista concedida na USP, o professor Beisiegel afirmou-me que o trabalho de Paulo Freire decorre de um processo inovador que se alinha com a práxis: “Freire colocou uma criatura no mundo e a criatura o recriou, entre fases ou práxis, eu fico com a práxis, a maneira mais honesta de se perceber Freire”. 55