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Aspectos significativos das periodizações

2. A linguagem em Paulo Freire: a trajetória de uma referência

2.7 Aspectos significativos das periodizações

Ao percorrer as abordagens dos autores destacados, eu pude escutá-los e situá-los em suas posições, de modo a perceber nas argumentações propostas a construção do olhar de cada um. E avaliar as posições discutidas com um olhar investigativo implica esquivar-me de um circuito de dualismos do tipo certo / errado que me levaria a divagações sobre polêmicas inúteis. Escolho outro caminho e recupero um conceito da Psicanálise para me apoiar ao que entendi das visões dos autores comentados, as quais apresentam semblantes56 que tentam capturar Freire numa determinada direção.

No entanto, como a apreensão de seu pensamento é complexa, torna-se difícil capturá- lo unicamente por meio de recortes históricos, psicológicos, sociológicos ou pedagógicos. Tal dificuldade, porém, não invalida o trabalho construído pelas visões desses autores, cujo valor é circunscrito a um enfoque que apenas reforça a complexidade de uma determinada ação humana, ou seja, o projeto de Paulo Freire.

É importante ressaltar a insuficiência do saber como paradigma de definição de um juízo, em conseqüência da incompletude, a qual ele reconhece que o acompanha. É, portanto, o diálogo na pauta inter-relacional que dará caminho para o processo de “saber mais” – uma operação infindável – que não quer dizer nem saber tudo, pois a inconclusão humana não o permite, mas, curiosamente, se alimenta dessa angustiante incompletude, uma pulsão para o saber mais.

Penso também que se preocupar com imobilizar o diálogo é falhar na compreensão de que a linguagem escrita tem a aparência, mas apenas a aparência, de tornar imóvel o dinamismo da oralidade. Na verdade, a

55 Rui de Celso Beisiegel – depoimento concedido na FE-USP, coletado em mar./2004, em fita de áudio cassete,

por este pesquisador.

56 O conceito de semblante é usado por Lacan e se define a partir do lugar em que a fala se exprime. O semblante

ocupa o lugar que se supõe como uma verdade que comporta a distorção entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Ver também no item 2.8 deste Capítulo.

linguagem escrita não torna nada imóvel, mas em certo sentido ela fixa a força da linguagem oral. É por isso que a leitura do texto escrito deveria ser a reinvenção do discurso oral. [...] A incompletude do texto pode ser tão importante quanto a completude em um momento histórico determinado, pois é a incompletude que envolve o leitor num processo de reinvenção continua do texto no contexto cultural e histórico próprio dele ou dela.

(FREIRE, 2001b, p. 72-3)

Haverá sempre algo que escapará daquilo que se tenta simbolizar. Talvez, seja tal prerrogativa um importante cuidado que se deve ter ao estudar um pensamento. Um excesso de certezas sobre aquilo que se lê, que se vê, ou que se ouve dizer pode afastar o pesquisador de dados importantes que o sujeito, às vezes, não demonstra, pois o processo de estruturação de uma idéia delineia-se entre fragmentos imprecisos e se constitui numa ordem gnosiológica que é complexa que pode implicar ou não o sujeito na elaboração do pensamento que pretende objetivar – são sinais de sua singularidade e, Freire diria, de sua incompletude.

Essa reflexão me remete à proposição de que, ao tratar as diferenças do sujeito na educação, é imprescindível perceber a singularidade que envolve os processos educativos. Tal temática é discutida por Mrech (1999, p. 7), quando aborda a escolarização de crianças: “não basta apenas trabalhar com as crianças em geral, é preciso escutar uma a uma”.

A propósito entendo que a eleição de um único parâmetro de análise sobre determinada obra, reduz a amplitude do trabalho e compromete a percepção de fundo que ela pode conter. Parece-me interessante o fato de que Freire tivesse se valido de um amplo espectro de escolas de pensamento para a construção de suas idéias. Alguns críticos acreditam que se trata de um “sacrilégio” epistemológico e de uma conduta tautológica57. Um exemplo é o fato de Freire tomar o Cristo e Lênin como “camaradas”,58 referindo-se a eles em contextos distintos de seu trabalho e absorvendo-lhes uma teleologia que em nada desmerece sua proposta.

Entendo como traduções fundamentalistas aquelas que erguem barreiras ao exercício do pensamento plural, fechando-se às diferenças, pois recordam a pretérita escolástica do século XII ou até mesmo o disfarce da roupagem positivista que entifica o saber legitimado pelos cânones da ciência. Essa postura decorre de um entendimento que vai na direção dos

57 (LALANDE, 1.996, p. 1.108), c. Sofisma que consiste parecer demonstrar uma tese repetindo-a com outras

palavras.

58 Ver Cintra (1998, p. 79, 110): “A erótica interior à ética, sua autenticidade religiosa: e(ró)tica! A todo instante

o ‘teísmo’ do amor não elide o ateísmo da liberdade. (...) nem a base cristã desaparece nem a base marxista parece modificar substancialmente os princípios da sua pedagogia.”

fundamentalismos, ou seja, a simplificação, quando faz a opção por um único olhar que pretenda recobrir o trajeto percorrido por Freire.

Verifiquei essa contradição e seus impasses nas próprias experiências com educação, quando me ancorei nos “modismos” teóricos, os quais direcionam muito da “prática” a uma tal “receita de bolo” que pretende dar as respostas. O contraditório é ver professores que apelam para um discurso inovador e estão sempre à procura de algo diferente do que vêm fazendo, mas, às vezes, quando algo diferente chega às escolas, logo dizem o tradicional: “já fazemos assim há muito tempo, mas não adianta com esses alunos”.

[...] O discurso técnico retirado dos modelos acaba funcionando como ‘fala- competente’ disposta a justificar a ação dos educadores, a eximir as responsabilidade do sistema educacional e a transferi-las para o indivíduo, para o aluno. (BELINTANE, 1997, p. 10)

Percebi que a temática da linguagem se faz presente de forma especial em todos os autores estudados e é o eixo substancial para materializar os aspectos enfocados nas diversas argumentações do discurso freiriano.

Como visto anteriormente, a abordagem de Beisiegel recusa qualquer idéia relativa a fases ou períodos. Destaquei de suas afirmações, uma relativa dificuldade confessada para “compreender e explicar” as razões que determinam mudanças e orientações do pensamento de um autor. Tal assinalamento é um dado significativo, tendo em vista que esse testemunho deixa portas abertas na amplitude interativa da obra, esquivando-se de ortodoxias que possam velar novos encadeamentos nos escritos de Freire.

Beisiegel menciona em seu trabalho um processo de utilização da linguagem que passa pela oralidade: a escrita e a leitura do mundo aplicadas à prática educativa marcam a configuração representativa de um trabalho de criação que não se pretende totalizante, mas sim, práxis. Metaforicamente, percebo que a explicação do pensamento de um autor pode se achar sob uma hipotética “cortina de fumaça”, que não possibilita a apreensão da sua totalidade nos processos de “compreender e explicar”, já que ficará um resto, uma sobra inapreensível.

Como pesquisador experiente que é, Beisiegel conviveu com Paulo Freire e reconhece com cautela epistemológica o perigo dos reducionismos. Ele analisa em seu livro (1982) a trajetória de Freire, após perscrutar minuciosamente depoimentos e de cruzá-los com autores

lidos pelo educador pernambucano, desse modo, fugindo de precipitações imaginárias conclusivas sobre a práxis freiriana.

Com base nesses apontamentos, entendo que Beisiegel vê Freire numa complexidade pós-moderna que supera uma primeira imagem simplificadora e permite percebê-lo de um lugar que é móvel e, por isso, difícil de apreender, fato que acarreta uma dificuldade para amarrá-lo a um ou outro enfoque semblamático. A própria linguagem, concebida como meio para expressão das idéias de um autor, tem limitações ao fazer a ponte entre o pensado e o realizado pelo sujeito. Nesse sentido, é possível recordar que a Psicanálise considera existir uma óptica exclusivamente simbólica, a qual não abarca a dimensão completa de uma determinada ação do sujeito, uma vez que há algo que sempre escapa e não é apreendido.

O outro aspecto da argumentação de Beisiegel implica reconhecer o trabalho do educador em sua própria história, na qual ele se constituiu como sujeito histórico em contínuo processo de ação e reflexão.

Freire não deve ser considerado apenas pela proposta da educação de adultos, mas como um sujeito constituído num mundo de contradições, lutas e linguagens, revelado em um discurso que é a marca de sua história. Sua trajetória de criatividade revela inúmeros traços criativos, uma habilidade no manejo da palavra ao simbolizar o pensamento que tem como fim resgatar o ser mais pelo dizer a sua palavra. Ele passou pelas experiências da escola informal e da formal; pôde vivenciar cada uma e construir seus próprios juízos, para, finalmente, sonhar com um projeto de educação peculiar. Foi perseguido, recusado pelo governo de seu próprio país, mas teve chances para desenvolver suas idéias, experimentando- as em distintos contextos, sendo bem mais que um fenômeno localizado.

O olhar de Beisiegel o vê como um sujeito em processo dialético permanente e, por isso, em sua trajetória, “houve um enriquecer de posições” (1982 p. 292), características peculiares ao seu modo de pensar numa base plural de apreensão contextual, motivo pelo qual atingiu objetivos tão significativos em sua jornada.

Por sua vez, Gadotti mostra um Freire composto por uma latinidade (sua cultura) aliada a uma dialogicidade, (sua expressão cultural) aspectos enfatizados na sua abordagem e que interessam pela ligação de cultura e linguagem. A fala que é libertária para os povos da América oprimida, não o poderá acontecer sem o diálogo, um meio para os povos latinos se constituírem povo livre. A relação educativa pensada na sua materialidade, um pensar-fazer- pedagógico que pressupõe um educando, um educador e a transferência que os aproxima e,

quiçá, os distancia, dependendo de onde se enuncia. Tal lugar pode ser mais que uma medida espacial: pode ser uma condição oral e falar nisso é mais que expressão, é dito singular. O conhecimento dialogado pretende tecer um saber que vincula processos emergentes na dialética educativa. Há um intercâmbio de saberes, de lugares diferentes e semelhantes, de pluralismos, em que a linguagem se faz mediadora.

Scocuglia menciona as polifonias de Paulo Freire que é onde vejo destacar a relação com a discursividade plural que se desloca entre as dimensões das três fases que o autor defendeu: as vozes de Freire se interpenetram criando um campo de politicidade. Ele, transitando nas teorias dos autores os quais se baseou, sem justapor uma idéia a outra e, delas, fazendo a sua, essa é a característica do pensar singular e plural de Freire, impossível de se capturar na totalidade.

Vejo nas contribuições críticas de Vanilda Paiva uma abordagem de Paulo Freire sobretudo, focada na alfabetização e na educação popular, período que indica momentos de diretividade e de não-diretividade circunscritas à ação pedagógica que ela nomeia como postura autoritária.

E, ao comentar a aproximação de Freire com autores que o influenciaram no período da criação do “método”, a autora salienta um posicionamento marginal e ingênuo mantido em relação a tais idéias, embora não negue que algo foi capturado. Esse destaque à insubstancialidade do diálogo de Freire com os autores tanto pode ser percebido como uma fragilidade, como ela afirmou, como também pode ser reconhecido – sob o meu olhar – como a marca de singularidade que Freire imprimiu em sua obra, sendo esse um outro modo de análise de sua trajetória. Paiva afirma que “Freire deve ser deixado por si mesmo” e, mais uma vez, o que poderia desmerecê-lo é o que o torna singular na sua práxis.

Enfim, cada autor estudado nesta análise trouxe na sua interpretação abordagens distintas que, em certa medida, escoram suas periodizações nas linguagens de Freire, ao apresentar a visão que tiveram do educador. As periodizações estudadas colaboram para delinear a complexidade do processo de construção da obra freiriana, sobretudo, porque a linguagem atravessa os comentários, enquanto as abordagens passam por diferentes esquadrinhamentos teóricos que guardam entre si aproximações, divergências e retomadas, mas, invariavelmente, transitam das palavras à palavra, esculpindo pensamentos dizíveis e indizíveis.