A fonte direta e remota do Direito Processual Penal brasileiro, quase que na
totalidade, foi a legislação portuguesa
420, de cunho estritamente inquisitorial à época,
reflexo de um sistema jurídico europeu pavimentado em bases sólidas decorrentes
notadamente do século XVI
421.
As Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446, não chegaram a vigorar no
Brasil-Colônia, uma vez que no reinado de D. M
ANOELI houve a edição das
Ordenações Manuelinas, estas que formalmente tiveram aplicação juntamente com
o Código Sebastiânico à época das Capitanias Hereditárias e dos primeiros governos
gerais. Como anotado alhures, as Ordenações Filipinas tiveram maior aplicação no
Brasil, principalmente com a criação do Tribunal de Relação da Bahia
422.
Conforme estabelecido, o sistema abrigado no bojo das Ordenações
Filipinas, como primeiro encarte de um pensamento processual vigente em terras
brasileiras, preconizava, em sua essência, o modelo inquisitório, observando-se
traços dos padrões acusatórios quando era permitido a qualquer do povo, ao
próprio ofendido ou, ainda, ao Ministério Público apresentar a acusação em juízo
423.
Outro ponto decorrente do sistema fixado nas referendadas Ordenações
Filipinas era o que dizia respeito aos meios de obtenção de prova. Em seu bojo
permitia-se a utilização da tortura como meio de prova, sendo registradas várias
420 “Nosso direito nasceu das instituições lusitanas, cujas raízes se prendem aos primeiros tempos da
monarquia portuguesa” (ALMEIDA, 1973, p. 46).
421 “Devemos buscar as origens do nosso judiciário no sistema vigente em Portugal no período
imediatamente anterior ao descobrimento” (MALCHER, 1980, v. I, p. 38).
422 “Das Ordenações do Reino, foram as Filipinas as que tiveram uma maior aplicação no Brasil,
principalmente após a criação do Tribunal de Relação da Bahia. [...] a sua execução atingiu o ano de 1832, eis que por Lei de 29 de novembro desse mesmo ano, foi promulgado o Código do Processo Criminal de Primeira Instância. Sua aplicação, porém, estava limitada aos pontos em que não tivessem sido revogados pela Constituição de 1824 e pelas leis anteriores e posteriores à sua promulgação ou pelas leis seguintes à Constituição de 1824 e pelas leis anteriores até a entrada em vigor do Código de Processo. Após a nossa independência, a aplicação das Ordenações Filipinas foi determinada pela Lei de 20 de outubro de 1823” (PIERANGELLI, 1983, p. 70).
modalidades para a aplicação daquela, além é claro de algumas penas degradantes.
Esse meio de prova foi extirpado da legislação em solo brasileiro somente no
período da independência nacional, a partir das destacadas influências
proporcionadas pelos movimentos revolucionários europeus
424.
Com a aplicação em terras brasileiras dos procedimentos estabelecidos pelas
Ordenações Filipinas para o processo criminal, para qualquer tipo de delito, após a
investigação de suas circunstâncias e agrupados os pressupostos de autoria e
materialidade, seguia-se a pronúncia como uma decisão que, acatando a acusação
formulada, sujeitava o acusado a julgamento. Estabelecia-se, no âmbito das
Ordenações, um controle na admissibilidade acusatória.
O livre arbítrio de vários juízes criminais e, principalmente, o abuso de
autoridade de alguns governantes levaram D. P
EDROI
425, em 23 de maio de 1821, a
expedir em terras brasileiras decreto regulamentador da matéria de processo
criminal
426, admitindo o direito de a defesa intervir em determinados atos
instrutórios e de tomar ciência quanto ao interrogatório do acusado, exceto em
casos de urgência, assegurando, ainda, a liberdade como regra e a prisão como
medida excepcional, devendo ser precisamente fundamentada pelo magistrado e,
também, legitimando a prisão em flagrante por qualquer um do povo
427.
Em linhas gerais, tal decreto inovou no sentido do direito probatório, uma
vez que declarou que todas as provas produzidas no processo seriam públicas,
facilitando a manifestação da defesa. Procurou humanizar o sentido do cárcere,
424 Cf. GRECO FILHO, 2009, p. 192-193.
425 D. PEDRO I (1798 – 1834) – o libertador ou o Rei-soldado – educado em letras, conhecedor de vários
idiomas, músico e religioso, foi um monarca de hábitos simples. Austero na administração, agiu com vigor no âmbito legislativo, renovando o sistema jurídico nacional. Em seu reinado o Brasil ganhou a sua primeira Constituição, em 1824. Nesse sentido: ARMITAGE, John. História do Brasil: desde o período da chegada da família de Bragança, em 1808, ate a abdicação de D. PEDRO I, em 1831, compilada à vista dos documentos
públicos e outras fontes originais formando uma continuação da história do Brasil. São Paulo: USP, 1981, p. 25-52.
426 “Ora, um esboço de legislação processual, em materia criminal, foi tentado durante o primeiro império;
mas tratava-se, evidentemente, de leis avulsas, destituidas de sistematica, nem conexas. A Constituição consignára normas fundamentais para a nova organização da justiça e do processo” (TRÍPOLI, César.
História do Direito Brasileiro – Ensaio (Época Imperial). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1947, v. II, t. I, p.
231).
impedindo o confinamento de seres humanos em lugares insalubres e hostis,
abolindo o uso de algemas, correntes e outros dispositivos violadores da integridade
física e moral dos presos que ainda não tivessem sido julgados e condenados com
sentença da qual não coubesse mais nenhum recurso
428.
D. P
EDROI havia convocado por Decreto, em 03 de junho de 1822, uma
Assembleia Constituinte para o Reino do Brasil, como forma de demonstrar
resistência às pressões exercidas pela Corte portuguesa. Era considerada penosa a
tarefa de construir uma unidade de poder segundo os princípios que resguardassem
as liberdades individuais
429sem, no entanto, ferir os ideais absolutistas
430.
A partir daí se desencadeou um grande movimento reformador legislativo,
sob as luzes do poder centralizador monárquico. Ao mesmo tempo tornaram-se um
grande contratempo para o Império as manifestações públicas de oposicionistas,
principalmente as veiculadas através da imprensa.
Em decorrência direta do
temor advindo da proliferação das manifestações oposicionistas, D. P
EDROI por
Decreto, em 18 de junho de 1822
431, criou o júri no Brasil
432, instituto com gênese
nas primeiras épocas da humanidade, havendo destacados traços dessa instituição
no processo penal acusatório romano
433.
428 Cf. ALMEIDA, 1973, p. 58.
429 “Nas vésperas da Independência, por reflexo do movimento liberal europeu, a legislação portuguesa
aplicável ao Brasil passa a estabelecer garantias para o acusado, abolindo-se a tortura a certas penas infamantes. Tais reformas, porém, não eram satisfatórias para o novo país de após 1822, que queria reagir firmemente contra as leis propiciadoras do arbítrio” (GRECO FILHO, 2009, p. 67).
430 Cf. SILVA, 2005, p. 74.
Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Júri – princípios constitucionais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 36-
47.
431 O Decreto de 18 de junho de 1822 –crêa Juizes de Facto para julgamento dos crimes de abusos de liberdade de
imprensa – levou a assinatura de JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1763 – 1838), Ministro do Reino
e dos Negócios Estrangeiros do Brasil.
432 Ao instituir o júri, D. PEDRO I, sob o fundamento de procurar “ligar a bondade, a justiça e a salvação
publica, sem offender á liberdade bem entendida da imprensa, que desejo sustentar e conservar, e que tantos bens tem feito á ‘causa sagrada da liberdade brazilica’, creava um tribunal de juizes de facto composto
de vinte e quatro cidadãos, ‘homens bons, honrados, intelligentes e patriotas’, nomeados pelo Corregedor
do Crime da Corte e Casa, que por esse Decreto era nomeado juiz de direito nas causas de abuso de liberdade de imprensa” (ALMEIDA JÚNIOR, 1911, v. I, p. 144, grifo do autor).
433 O júri é considerado como um “‘vetusto instituto de inspiração mosaica, e que encontra sua origem, nos
moldes atuais, nas quaestiones perpetuae do processo penal acusatório romano’; e, outrossim, ‘sempre se
apresentou, em nosso direito positivo, como órgão competente para o julgamento de causas penais especificadas, atribuído não a profissionais da toga, mas aos cidadãos comuns, aos pares do acusado’” (TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3. ed. rev., atual. e ampl. São
O Decreto de 1822 determinava que vinte e quatro pessoas deveriam
compor, em cada caso, o Conselho de Sentença como jurados. Com as recusas dos
réus, oito juízes de fato
434seriam suficientes para integrarem o conselho de
julgamento
435. Este conselho tinha a competência para o julgamento dos delitos de
abuso da liberdade de imprensa
436, competência essa mantida no Decreto de 22 de
novembro de 1823
437.
Quanto à instituição do júri, cumpre destacar em sua historicidade a
existência de três modelos, quais sejam: o júri romano, o júri medieval e o júri
inglês
438. Grande parte dos países ocidentais adotou o modelo do júri inglês, a partir
de uma experiência bem sucedida na França
439. Essa foi a vertente pela qual o Brasil
também se orientou, mesmo sob intensas críticas quanto à adoção dessa instituição
secular no ordenamento pátrio
440.
O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
441assistiu a Proclamação da
Independência do Brasil ocorrer no dia 7 de setembro de 1822. Tal se deu pelas
434 Cf. TUCCI, 1999, p. 31.
435 E mais, o júri brasileiro “elevado à categoria de ramo do Poder Judiciário, pela Constituição de 25 de
março de 1824, teve esse tribunal atribuições amplíssimas no Código do Processo Criminal, superiores ao grau de desenvolvimento da nação que se constituia” (MARQUES, José Frederico. O Juri e sua nova regulamentação legal. São Paulo: Saraiva, 1948, p. 31).
436 “Êsse Júri era composto de 24 ‘Juízes de Fato’, cidadãos escolhidos ‘dentre os homens bons, honrados,
inteligentes e patriotas’, cabendo sua nomeação ao Corregedor e Ouvidores do crime, ‘nos casos ocorrentes
e a requerimento do Procurador da Coroa e Fazenda, que será o Promotor e Fiscal de tais delitos’. Da sentença do Júri só cabia apelação para o Príncipe” (MARQUES, 1963, v. I, p. 15, grifo do autor).
O júri instituído no Brasil para julgar os crimes de abuso de imprensa reuniu-se “pela primeira vez, a 25 de junho de 1825, no Rio de Janeiro, para julgar o crime de injúrias expressas” (FRANCO, Ary Azevedo. O Júri e a Constituição Federal de 1946. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 12).
437 Cf. p. WHITAKER, Firmino. Jury. 4. ed. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1923, p. 13.
438 Cf. FERRI, Enrico. La sociologie criminelle. Trad.: Leon Terrier. Paris: Felix Alcan, 1905, p. 533-534.
439 Cf. DONNEDIEU DE VABRES, Henri. Traité de droit criminel et de législation pénale comparée. 3. ed. Paris:
Recueil Sirey, 1947, p. 705-715.
440“LOUBET, em seu trabalho A Justiça Criminal, apontando as causas que têm produzido a decadencia e a
desmoralização do Jury, quando classificou-as em numero de cinco: a) a organização defeituosa da lista de
jurados; b) a influencia indébita e perniciosa da imprensa; c) o modo espectaculoso dos debates; c) as
doutrinas modernas da psychiatria sobre a responsabilidade actual das recusas, – procura sanal-as, mas infelizmente é impossivel de prompto cuidarmos disso em nosso meio. A sua existencia é uma affronta á sociedade, verdadeiro embuste social; de um tribunal de repressão, tornou-se um factor energico de criminalidade” (BASTOS, José Tavares. O Jury na Republica. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor,
1909, t. I, p. 10-11).
441“Embora somente a partir de 16 de dezembro de 1815, o Brasil tenha sido elevado a categoria de Reino
Unido a Portugal e Algarves, em conseqüência do Tratado de Viena de 8 de abril de 1815 onde as quatro potências reconheceram a D. JOÃO o título de Príncipe-Regente do Reino de Portugal e do Reino do Brasil, já a partir da chegada ao Rio de Janeiro da Família Real portuguesa, as instituições judiciárias começaram a tomar nova feição” (MALCHER, 1980, v. I, p. 45).