Com o advento da doutrina pregada pelo Galileu J
ESUSC
RISTOe seus
discípulos, estabeleceu-se o Cristianismo no Império Romano, logo no século IV de
nossa Era. Embora seus seguidores estivessem sofrendo forte perseguição pelos
ideais que pregavam em toda a extensão do Império Romano, abarcam uma
crescente legião de seguidores. Nesse período surge o denominado direito canônico
143Acerca desse marco destaca-se que “a Constituição Criminal Carolina (ou Constitutio Criminalis Carolina) é
considerada o primeiro código penal da Idade Moderna e foi a base do direito penal alemão durante três séculos. É um código completo, ordenando o procedimento, regulando as provas, ditando regras para a prolação das sentenças e, por último, incluindo uma completa parte penal” (GOLDSCHMIDT, 2002, p. 103).
144 Registra-se que “ao tempo da célebre Constitutio Criminalis Carolina, promulgada em 1532 por CARLOS V,
expressamente se advertia que deviam ser empregados tormentos no processo, mesmo que se tratasse de fato manifesto” (GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu mundo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1993,
p. 33).
145Infere-se daí que “no Santo Império, a Constitutio Criminalis Carolina [...], promulgada por CARLOS V em
1532, é um primeiro esforço de codificação do processo criminal, no qual o direito penal é largamente representado; obra de Johann von Schwarzenberg (cerca de 1465-1528), deve muito a precedentes, sobretudo à Constitutio criminalis de Bamberg, mas também à doutrina romano-canónica” (GILISSEN,
1995, p. 310).
entendido como o direito da comunidade religiosa dos cristãos, mais especialmente o direito da
Igreja Católica
147, paralelamente ao direito romano.
Nos primórdios da Igreja
148o cristianismo ganhou os desígnios de uma
verdadeira religião, pautado na universalidade dos homens e nos respeito a Deus e
aos semelhantes. A Igreja Católica iniciou uma jornada doutrinária por entre outras
culturas difundindo o direito canônico.
Com interpretação exclusiva a cargo do papado
149, o direito canônico
compreendeu todos os problemas jurídicos que interessavam à moral católica
150. Sua
rápida difusão para os padrões da época deveu-se, em grande parte, a ser
praticamente todo escrito
151. Dessa forma congregou uma extensa coletânea de
doutrina jurídica permanecendo por grande parte da Idade Média como uma das
mais importantes e únicas fontes escritas de direito
152.
Com o apego ao rito formal, dividido nitidamente em fases, utilizando-se a
escrita para registrar os principais atos realizados perante o juízo, uma das
substanciais introduções do direito canônico na época foi o modelo inquisitivo para
147 Cf. GILISSEN, 1995, p. 133).
148“Tendo iniciado sua trajetória terrena com pouco mais nas mãos do que os Evangelhos e as Epístolas, a
Igreja nascente, como toda sociedade humana, logo passou a sentir a necessidade de um Direito próprio, isto é, de um conjunto harmônico de normas que lhe regessem a vida. Houve tentativas incipientes de São PAULO nesse sentido, mas de fato foi no século II que começou a formação do que se veio a designar
Direito Canônico (a palavra grega Kanon significa regra). As fontes se encontravam nas decretais
pontifícias, nos cânones oriundos de concílios, nos mais variados estatutos promulgados por bispos e nas inúmeras regras monásticas, com seus livros penitenciais. Com o passar do tempo, foi-se constituindo abundante massa de textos, que acabou por tornar-se caótica, de difícil consulta e, às vezes, até contraditória. Assim, por volta de 1140 ocorreu a sua primeira consolidação, por decreto de Graciano; e esta, mais os acréscimos posteriores, veio a formar, no final do século XV, o chamado Corpus Iuris Canonici” (GONZAGA, 1993, p. 85).
149Cf. GILISSEN, 1995, p. 134. 150Cf. BATALHA, 1981, p. 512.
151“Aos poucos, porém, a Igreja estendeu sua jurisdição, acabando por ocupar-se, objetivamente, de qualquer
matéria que concernisse à fé, ainda que prevista por leis comuns, e, subjetivamente, também de leitos que de qualquer forma tivessem relação com a Igreja. [...] Tal sistema, que surgira na jurisdição eclesiástica para punir heresias, desenvolveu-se e se ampliou, abrangendo, de início, apenas as ofensas à moral ou à religião; mas a utilidade de um procedimento que consentia ao poder temporal dupla ação, sem qualquer impedimento, se revelou de imediato, provocando sua extensão a processos que não tinham como objeto aquelas ofensas” (GRINOVER, 1982, p. 33-34).
152“A Igreja, mandatária de Deus, uniu-se ao poder secular e passou a ter influência decisiva nas questões de
Estado. Entre os séculos VIII e XV, o cristianismo se estabeleceu em toda a Europa ocidental e o direito canônico foi praticamente o único escrito durante quase todo o período medieval” (MARQUES, O.,
o procedimento criminal, dividindo-se em dois estágios
153: no primeiro, havia uma
pesquisa acerca da materialidade do fato, sem preocupar-se com a autoria; no
segundo, uma vez apurado o fato, passava-se para a investigação da
responsabilidade do suspeito
154.
Embora formal, ainda era possível observar traços de religiosidade com
visível apoio na doutrina católica, a qual foi revestida de envergadura científica,
buscando-se justificar através de uma modelagem técnica os rígidos métodos para a
obtenção e avaliação da prova, bem como, a aferição da culpabilidade do acusado
155.
Apesar da grande influência exercida pela Igreja sobre o governo
156, os
magistrados eclesiásticos primavam pela aplicação da legislação procedimental
porque eram estudiosos do sistema canônico e para decisões mais intrincadas ou de
grande complexidade recorriam à orientação do papado
157.
Dessa forma ganhou corpo o método escolástico. Em sua gênese observa-se
o empenho de um árduo trabalho da Igreja para compilar os costumes até então
utilizados nas culturas conhecidas e adaptá-los a uma nova realidade imersa no
âmbito da doutrina católica. Com o passar do tempo e o constante aperfeiçoamento,
153“El lenguage del proceso inquisitivo es la escritura, con su secuela de mediación y fraccionamento del
proceso en fases, rigiendo plenamente el principio de oficialidade, tanto en la iniciativa como en el impulso procesal” (RUBIANES, 1978, p. 21).
154Assim, “o processo inquisitório de origem eclesiástica, articulado à base do mais absoluto segredo: segredo
no recebimento da denúncia, segredo no início das investigações, segredo na instrução e, posteriormente, também nos debates. [...] Mas o juiz, longe de satisfazer-se com a verdade ficta, buscava conhecer os fatos como haviam ocorrido, ficando investido dos mais amplos poderes de investigação. [...] A instrução secreta foi a arma mais poderosa desse procedimento” (GRINOVER, 1982, p. 33-36).
155 “O direito canônico foi-se formando, como que insensivelmente, segundo as contingências e vicissitudes
do desenvolvimento da Igreja Católica. Não resultou, pois, de um código, nem de uma disciplina arbitràriamente preestabelecida. Os primeiros documentos de conteúdo jurídico da Igreja tendem a condensar as tradições constantes da verdade revelada segundo as sagradas escrituras do Novo Testamento, os Evangelhos e os escritos apostólicos. E, daí por diante, aos poucos, constituiu-se em verdadeiro corpo sistemático de leis” (RÁO, 1952, p. 173).
156“O direito canônico tem origem disciplinar, sendo sua fonte mais antiga os Libri poenitenciales. Em face da
crescente influência da Igreja sobre o governo civil, o direito canônico foi aos poucos estendendo-se a pessoas não sujeitas à disciplina religiosa, desde que se tratasse de fatos de natureza espiritual” (FRAGOSO, 1995, p. 32).
157Nota-se que os magistrados eclesiásticos eram “verdadeiros magistrados, julgando conforme a lei; também
não é a mais simples convição que devem seguir: uma apreciação jurídica da prova dicta-lhes a sentença; e emquanto os papas procurão dar-lhes instrucções especiaes, os doutores em direito canonico guiados cegamente pelo methodo escolástico, então dominante, erigem uma multidão de regras, construem um systema, combinando-as com as próprias expressões dos livros bíblicos [...] e de certos textos dos jurisconsultos romanos” (MITTERMAYER, 1871, p. 37-38).
o modelo canônico introduziu novos institutos afetos ao procedimento criminal,
com feições próprias, decorrentes da reiterada aplicação das regras escolásticas,
atingindo uma real sistematização de leis.
Destarte, é de se notar que as regras processuais do direito canônico
desenvolveram-se paralelamente às da justiça comum
158com grande influxo daquele
nesta
159. A consolidação do método inquisitivo no sistema canônico mostrou que o
procedimento criminal encontrava-se cravado em duas etapas: investigatória e
judicial.
Na fase investigatória os fatos eram apurados com base nos testemunhos e
confissão. Não havia nesse momento procedimental um maior rigor científico na
busca do aclaramento dos fatos criminais. No encerramento dessa fase formulava-se
uma denúncia, a qual era conduzida ao magistrado eclesiástico para que pudesse
analisar quanto à sua viabilidade e, principalmente, se cumpria todos os desideratos
estabelecidos pela legislação
160.
Essa análise acerca da procedência da denúncia revestia-se de um verdadeiro
sistema de controle da acusação, além de servir como um seguro sistema para que
abusos fossem evitados e garantir menos gastos em julgamentos temerosos, vez que
a Igreja não queria correr o risco de ter questionados os seus métodos até então. Tal
comportamento influenciou outros sistemas à época
161.
158Em se tratando de regras processuais, observa-se que o “Direito Canônico evoluiu paralelamente à Justiça
comum. [...] a antiga Igreja sempre foi radicalmente hostil à utilização de violências nas investigações criminais. Muito citada é a carta que o papa NICOLAU I escreveu, no ano 866, a BORIS, príncipe da
Bulgária” (GONZAGA, 1993, p. 87).
159“Era sob a inspiração do direito canônico e pelas mãos do clero que se redigiam as leis e os códigos,
introduzindo-se aliás as penas mais severas e cruéis, como as penas corporais, inclusive a pena de morte [...]. Impregnou-se assim a legislação penal com princípios e nomenclaturas do direito canônico, como arrependimento, confissão, pena, absolvição, perdão etc.” (SOARES, 1977, p. 68).
160 “Deve-se ao direito canônico a criação e a sistematização do processo denominado inquisitório. Foi
Inocêncio III quem, no século XIII, ampliou os meios de instauração do procedimento criminal, incluindo, além da acusação, que era a forma usual entre os romanos, o inquérito e a denúncia” (BUZAID,
1972, v. 1, p. 220, grifo do autor).
161“Com a recepção do direito germânico, a partir do século V, nota-se um nôvo espírito profundamente
supersticioso a influir no processo penal. O acusado tinha direito de purificar-se por meio do juramento, sendo que os conjuradores lhe prestavam apoio, decidindo os juízos de Deus e o duelo, sôbre as fundamentos da acusação. As provas se tornaram meramente formais, tendo importância a flagrância do delito para sua escolha” (BARROS, 1969, p. 54).
Com a formulação da denúncia e sua consequente aceitação pelo juízo, uma
nova fase era inaugurada no âmbito do procedimento criminal no direito canônico.
Tratava-se da fase do julgamento, na qual o acusado tomava ciência das acusações
que pesavam contra si e poderia minimizar o desgaste de um julgamento
confessando o crime.
Para a formação de seu convencimento, o magistrado invocava um sistema
de avaliação de provas calcado em modalidades probatórias de cunho mais lógico e
racional, afastando as provas advindas do sacrifício, imolação e ainda aquelas que
oriundos de rituais abominados pela Igreja. Isso representou uma verdadeira ruptura
do sistema escolástico com aqueles que utilizavam os julgamentos pautados nas
meras probabilidades ou cultos pagãos
162.
A nova forma de se conduzir o julgamento criminal convergiu para a
utilização de princípios atrelados a regras procedimentais mais seguras,
principalmente no que tange ao descobrimento científico da verdade
163, colocando-
se contrário às provas de forma
164. Houve sensível valorização no entendimento da
pena imposta ao acusado, vez que considerava a possibilidade de arrependimento
deste para atingir a consciência social da conduta julgada
165.
162Assim “o movimento expansivo do pensamento escolástico, cujas inspirações aristotélicas – e, portanto,
empírico-racionalistas – importavam reação ao irracionalismo de semelhantes procedimentos. Nos juristas-teólogos do século XVI já se admite a possibilidade de silêncio do delinqüente sobre o que não lhe for perguntado e até se interrogado sem observância das formas legais” (BAPTISTA, 2001, p. 56-57).
163 Percebe-se que “ya en la Edad Media las fuentes canônicas habían dado las primeras nociones de las
pruebas legales, nociones que fueron desarrolladas por nuestros jurisconsultos de los siglos XIII y XIV, que construeyron una compleja teoría de dicho sistema probatório” (MANZINI, 1965, p. 267).
164“A influência do direito canônico foi benéfica. Proclamou a igualdade de todos os homens, acentuando o
aspecto subjetivo do crime, opondo-se, assim, ao sentido puramente objetivo da ofensa, que prevalecia no direito germânico. [...] Opôs-se também o direito canônico às ordálias e duelos judiciários e procurou introduzir as penas privativas de liberdade, substituindo as penas patrimoniais, para possibilitar o arrependimento e a emenda do réu” (FRAGOSO, 1995, p. 33).
165“A Igreja também contribuiu para o declínio das ordálias e outras práticas supersticiosas trazidas pelos
povos germanos. [...] A Igreja, contudo, contribuiu para o abrandamento da vingança privada e para o fortalecimento do poder central, reagindo contra o individualismo do Direito Germano” (MARQUES, O.,Fundamentos da pena, 2000, p. 30).
Em complemento às pautas do direito canônico atesta-se que “a Igreja instituiu ainda a inspeção das prisões, a correição dos processos, o contraste das detenções, a fiscalização dos juízes e regulou o regime penitenciário. Contra o hábito de tratar os encarcerados com requintes de crueldade, pronunciou-se o Concílio de Tolosa, em 1229. [...] Particularmente a respeito dos juízos de Deus, são inúmeros os atos não
só da hierarquia eclesiástica como dos príncipes cristãos que lutaram contra eles” (TORNAGHI, 1978, p. 425, grifo do autor).
Imprimiu-se no juízo eclesiástico a pauta da análise e verificação mais
detalhada da culpabilidade do acusado através de métodos mais claros no trato da
prova
166e das circunstâncias dos delitos
167, inclusive com a sempre denodada
liberdade do magistrado para perquirir a verdade acerca dos fatos
168, em bases mais
racionais.
Com um sistema de direito conduzido pela racionalidade das provas, a
formalidade excessiva e pela doutrina católica, o direito eclesiástico decidiu admitir a
tortura como meio de prova. Sua introdução nessa sistemática ocorreu por volta de
1252, por expressa autorização do Papa I
NOCÊNCIOIV, através da bula
Ad
extirpanda, como uma carregada reação contra as heresias
169que ainda desafiavam a
Igreja
170. Como se amenizasse os desgostos do método, a tortura
171foi um divisor
de águas entre o direito canônico e o direito comum.
Não há como negar que com tantas inovações a jurisdição eclesiástica
ganhou rapidamente terreno, ampliando-se por várias culturas ocidentais, pregando,
166Assegura-se que “a avaliação desses meios probatórios no processo canônico leva com recepção deste, à
liquidação do sistema das provas formais” (GOLDSCHMIDT, 2002, p. 103).
167“A inquirição procedia-se espontaneamente: foi, a princípio, um meio de reformar os costumes do clero.
Tinha lugar ‘nulo acusante, vel judicialiter denuntiante’; era investigação do crime, ou nos primeiros tempos, de qualquer insinuação clamorosa. Especial, instituia-se por ocasião de crime determinado; geral, para
verificar os facínoras de uma província; e mista, quando, estabelecida a existência de um assassínio, o juiz
procurava descobrir o seu autor, ou quando buscava conhecer os antecedentes de determinada pessoa. [...] Os bispos serviam-se da inquisitio, a princípio, nas pesquisas contra os clérigos em casos que pediam
segredo de instrução” (ALMEIDA, 1973, p. 50, grifo do autor).
168 “La Iglesia, que elaboró un cuerpo propio de derecho penal, construye también un tipo especial de
proceso, que, trazado primero sobre los elementos imperecederos del proceso romano, adquiere después una fisonomía propia. La Iglesia fué quien construyó y fijó el tipo de proceso inquisitorio, [...] e introduce los princípios, que llegan a ser fundamentales, de la inquisitio ex officio y de la independencia del juez para la
investigación de la verdad” (FLORIAN, [1934?], p. 28).
169“Heresia é uma palavra grega que significa opinião, boa ou má, e, em sentido derivado, seita, filosófica ou
religiosa. Falava-se, antigamente, em heresia peripatética e heresia acadêmica, para significar a orientação de ARISTÓTELES e a de PLATÃO; heresia cristã para designar o movimento de opinião dos seguidores de
CRISTO. [...] Com o tempo, entretanto, a palavra heresia foi tomando sentido pejorativo até significar o êrro
voluntário e obstinado a respeito de um dogma de fé. Êrro, na opinião de quem fala” (TORNAGHI, v. II, p. 569, grifo do autor).
170 “Esse recurso já se tornara usual no Direito comum, de sorte que, observou-se, seria injustificável
conceder tratamento privilegiado aos hereges. Se, ponderou o papa, tal medida se aplica aos ladrões e aos assassinos, o mesmo deverá ocorrer com os hereges, que não passam de ladrões e assassinos da alma” (GONZAGA, 1993, p. 88).
171“A tortura passou a ser considerada não mais meio de prova, mas sim um método para confirmar ou para
eliminar uma prova semiplena, uma série de indícios; e o valor que se lhe atribuía era tanto, que se, no caso de tortura, o réu resistisse sem confessa a sua culpa, verificava-se uma espécie de improcedibilidade em seu favor, pelo que, mesmo diante de novas provas, não mais poderia ele ser julgado pelo mesmo fato” (GRINOVER, 1982, p. 36).