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EU SOU CABO-VERDIANO

2.3 A matriz identitária

2.3.6 Os ritmos e a musicalidade

2.3.7.2 A Festa da Bandeira e os Canizades

Num povo católico como o de Cabo Verde quase todas as festas tem um cunho religioso e obedecem a um calendário litúrgico. Têm em comum o facto de misturarem de forma natural o lado sagrado com o profano e de, em todas elas, o som dos tambores ecoar de maneira frenética e permanente. No Fogo, entre abril e junho, assiste-se a uma dinâmica cultural que se inicia com a

Festa da Bandeira, havendo quem a considere o maior evento festivo do calendário anual.

Culmina no dia primeiro de maio com a componente religiosa e atrai milhares de cidadãos, emigrantes e turistas.

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A Catchorrona é uma assombração com a forma de um cão pequeno que quando se enfurece cresce, até ficar gigante. Se for bem tratado, acompanha a pessoa a casa e não se transformará. Deve-se entrar em casa de costas, dizendo a frase: “já me trouxeste a casa, agora podes ir”. Depois deve-se fechar a porta e fazer o sinal da cruz. A Canelinha, cujo nome vem do português “canela”, é um esqueleto com uma perna, que sai de noite, aparece sem cabeça, caminha dando largas passadas em linha recta, assusta os desprevenidos e deixa-os mudos. A Capotona é um gigante com uma longa capa, com unhas enormes e sem rótula, o que limita os seus movimentos. O Massongue é um ser maligno associado à maçonaria, tradição com longo historial no arquipélago. E, finalmente, o Gongom, o rei da fealdade, ser maligno, que se pode apresentar como um monstro com várias cabeças ou como um pássaro noturno. Persegue os noctívagos aventureiros, principalmente aqueles em busca de proezas amorosas e aqueles que abandonam a casa paterna durante a noite. (Espírito Santo da Silva cit. Branco, 2004:377).

54 Por ocasião desta festa, à qual foi dado o nome do padroeiro desta ilha, São Filipe, a simbologia secular e eclesiástica unem-se na figura da Bandeira, o adereço protagonista, que é batizado no mar e abençoado durante uma missa especial na igreja. A bandeira serve de prémio nas corridas de cavalos e a família que a conquista organizará e pagará a próxima festa. O orgulhoso representante da família vencedora mostra a bandeira durante uma procissão que atravessa toda a cidade de São Filipe, maior centro urbano da ilha do Fogo, acompanhado pelo som dos tambores que passaram por um prolongado ritual de preparação. Durante este ritual, três mulheres pisam milho num pilão, acompanhadas por três ou quatro percussionistas que batem um ritmo parecido com o do batuque. Aqui se juntam os ingredientes básicos das artes cénicas: enredo, personagens, adereços, rituais, cerimónia e público.

O maior símbolo da teatralidade das festas foguenses são os Canizades, mascarados que criam um espetáculo cénico típico das festas de São João daquela ilha. Com máscaras de papel e longas saias de palha, dançam ao som da coladeira 28, com movimentos dramáticos, fazendo soar os chocalhos que carregam para anunciar a noite de antevéspera de São João. (Dias, 1015) Um grande mastro ornamental é levado em cortejo pelos populares e Canizades, que percorrem as casas dos festeiros, levando, já noite dentro, o mastro a batizar nas águas do mar. “Em todos os dias da festa, é constante o rufar dos tambores e os cânticos das coladeiras, que são quadras plenas de crítica social.” (p.41)

Figura 3: Os Canizades, da ilha do Fogo

Imagem Televisão de Cabo Verde

28 Apesar de partilhar o nome, a coladeira do Fogo não é o mesmo género musical que a coladeira descrita

55 2.3.7.3 Kola San Jon: entre o sagrado e o profano

Além da Festa da Bandeira, da ilha do Fogo e da Tabanca, de Santiago e Maio, as festas em honra a São João celebram-se a 24 de Junho, em São Vicente, Santo Antão, S. Nicolau, Maio, Boavista e na ilha mais a sul, a Brava. São rituais populares, resultantes de um sincretismo religioso, que incorporam missas católicas e ritmo de tambores, desfiles coreografados e cânticos sagrados, saltos a fogueiras e rosários no pescoço, jogos tradicionais e pedidos de proteção divina. Nas peregrinações caminham, ombro a ombro, devotos bebendo grogue e pagadores de promessas, gente que dança com outros que rezam, em torno de um santo adorado pelo povo cabo-verdiano. Os protagonistas destas festas são os tamboreiros, que tocam horas seguidas, embalando os capitães de navios de madeira em miniatura enfeitados com bandeiras e fitas coloridas. Numa coreografia cheia de simbolismo, que representa uma viagem marítima, o navio assume figura central, incorporado pelo dançarino, que atua como seu comandante (figura 4).

Nas ilhas do norte, utiliza-se a expressão Kola San Jon para designar a festa, embora a palavra Kola se refira à prática performativa que acompanha o rufar dos tambores: no ato da dança, os corpos movimentam-se para a frente e para trás, para a esquerda e para a direita e, concretizam a umbigada, um tipo de movimento que se caracteriza pelo “choque, ou toque, das zonas ventrais dos dois dançarinos […] extremamente apreciado pelo público pela sua conotação sexual” (Ribeiro, 2012:114). Por vezes um dos elementos levanta os braços ao mesmo tempo que o seu par, coloca um dos braços por detrás da cabeça e o outro na anca, enquanto os ombros executam um movimento de rotação.Apesar do seu carácter profano e sensual, a festa era tolerada pelas autoridades coloniais desde que fosse realizada longe dos centros das cidades e das Igrejas.

Figura 4: Desfile de São João, em São Vicente (2015)

56 2.3.7.4 As Santaninhas, da ilha Brava

Na ilha da Brava, isolada a sul do arquipélago, durante o verão, tem lugar um evento cénico e popular cujo nome varia conforme a localidade: a Santaninha de Mato Grande,

Santaninha de Baleia e a Conakri da Furna. Envolvem personagens, enredo e cenário definidos

e assumidos pelas comunidades, transmitidos de geração em geração desde o século XIX. O centro da trama é a emigração. Todo o espetáculo – porque é disso que se trata – dramatiza a saída dos naturais rumo aos EUA. O clímax do acontecimento teatral acontece num belo cenário no alto de uma colina, um navio de cimento construído no local da representação, decorado com mastros, velas e outros artifícios de navegação e com a proa apontada ao mar (figura 5).

As personagens pertencem ao universo marítimo: comandante, tripulação, vendedores, polícia, enfermeiros e, por ironia, clandestinos tentando viajar ilegalmente. Entre os viajantes encontramos várias tipologias sociais: bêbados, loucos, emigrantes, doentes, saudosistas, medrosos, donzelas e cavaleiros.

Figura 5: Santaninha de Mato Grande, ilha Brava (2014)

Autor desconhecido

Trata-se de um evento teatral de rua que celebra a emigração, um dos pilares temáticos da literatura cabo-verdiana, incluindo a dramaturgia. São os mais velhos que assumem as personagens principais, as tarefas de maior responsabilidade, com destaque para o comandante do navio. O guião retrata uma viagem que começa no final da tarde, com todos os atores e figurantes vestidos de branco, desfilando ao som dos tambores. Os passageiros percorrem a aldeia, despedem-se da família e amigos, choram pela partida e pela pobreza que os impede de

57 ficar. Uma vez terminado o desfile, inicia-se a admissão dos passeiros para o navio. Outros são presos, só podendo ser libertados se contribuírem com algum dinheiro para a festa. Chegados ao local, os que viajam entram no navio, os restantes populares assistem de perto à aparatosa encenação, o apogeu do dia: içam-se as velas, recolhe-se a âncora e a viagem começa. Logo chegam os enjoos e vómitos, o mar alto e as tempestades. O naufrágio é o ponto alto da trama, o momento em que os viajantes entram em pânico, gritam frases sem muito sentido, enquanto outros incentivam os tambores a tocar mais forte produzindo um poderoso efeito dramático. Finalmente, conseguem “atracar” o barco em segurança e regressam todos à aldeia, dançando num novo desfile, em sentido contrário. Toda a cena da viagem dura, em média, cerca de duas horas e a festa no seu todo, um dia inteiro. Após o regresso dos náufragos, a teatralização continua: montam-se postos que simulam serviços públicos como o tribunal, a fronteira, a guarda, os correios e os restaurantes destinados a receber a colheita dos fundos destinados ao banquete final. Toda uma localidade brinca ao teatro.

Estas festividades contêm, em suma, um desfile, um enredo fixo, personagens bem definidos, cenografia elaborada, efeitos sonoros permanentes, figurinos concretos e um público cúmplice. É um teatro de rua, pouco conhecido dentro do próprio país, que vai resistindo à passagem do tempo e que continua a ser apresentado, no último domingo de cada mês de julho, em várias localidades da ilha Brava.