• Nenhum resultado encontrado

EU SOU CABO-VERDIANO

2.1 Um debate infindável

O tal milagre da crioulização, de que Cabo Verde é para alguns o representante ideal, não consegue diminuir as divisões identitárias sentidas no arquipélago, nas mais diversas ocasiões e enquadramentos. A discussão sobre identidade(s) continuará de ser um tema debatido, de forma transversal, em ambientes informais, em trabalhos académicos, sejam artigos ou dissertações, de mestrado e doutoramento. Nos jornais, blogues ou redes sociais, com frequência somos confrontados com artigos de opinião, comentários e debates sobre a identidade cabo-verdiana que, não poucas vezes, resvalam para o campo da irracionalidade.

Como definiu Boaventura de Sousa Santos (2003:29) “as identidades são o produto de jogos de espelhos entre entidades que, por razões contingentes, definem as relações entre si como relações de diferença e que lhes atribuem relevância. As identidades são sempre relacionais mas raramente são recíprocas.” Assim, admitir-se-á que a identidade, longe de ser uma categoria, é sobretudo uma dinâmica, uma construção permanente, que é fonte de ajustamentos e de contradições, assim como de conflitos, manipulações e disfuncionamentos (Abdallah-Pretceille, 1999:14), expressões que sumariam com acerto o debate cabo-verdiano em torno da sua própria identidade.

Pode-se dizer que uma das razões que tem provocado toda esta celeuma é a confusão epistemológica existente entre identidade e identificação, dois conceitos que podem ser complementares, mas que são distintos. De maneira simplificada, dir-se-á que enquanto a identidade se relaciona com um conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma certa comunidade do ponto vista étnico e/ou cultural, a identificação refere-se às confluências e semelhanças, com um sentimento de pertença e proximidade cultural, física ou geográfica com os outros povos e/ou locais. (Pereira, 2012:37)

Cabo Verde vive, sem o assumir inteiramente, uma identidade-em-processo, termo emprestado de Chamoiseau (2008), um dos precursores do pensamento crioulo. Quer isto dizer que estamos perante uma identidade composta, em parte, por recognições que se estabelecem de maneira transitória, para serem apagadas e suplementadas por outras.

27

Portanto, a viagem, a errância, a mobilidade é um elemento sumamente importante como também o é o seu contrário: a imobilidade, as raízes culturais, o lar. A arte da vida e a sobrevivência é juntar os dois, misturá-los sem exagerar nenhum lado para, neste processo, (re)criar as i nti s ultur is.” (Chamoiseau cit. Walter, 2008:104)

Essa dinâmica identitária, recorrente no percurso histórico cabo-verdiano, pode ser dividida em três períodos, correspondentes a outras tantas gerações fundadoras da intelectualidade cabo- verdiana (Anjos, 2002; Fernandes, 2005; Silveira, 2005; Brito-Semedo, 2006):

1. A Geração de Eugénio Tavares que, com a primeira crise sociopolítica vivida em Cabo Verde (1856-1932), provocou o aparecimento de um nativismo que exprimiu a percepção de os naturais das ilhas terem valores culturais que os identificavam singularmente, reclamando, em consequência, um estatuto jurídico e sociopolítico de igualdade, face aos portugueses da metrópole. É a geração que busca vincar as raízes culturais à capital, mas que, em simultâneo, reclama uma especificidade regional e mais atenção das autoridades centrais para o arquipélago 11.

2. A Geração de Baltasar Lopes viveu a segunda crise (1932-1958), o que provocou uma consciência regional expressa num interesse e amor pela sua região, reivindicando a especificidade de Cabo Verde. São conhecidos por geração da Claridade, numa alusão à revista literária fundada em 1936, na cidade do Mindelo. Assumem uma linha identitária mais europeia, reclamando uma especificidade mestiça.

3. A Geração de Amílcar Cabral, enfrentou uma terceira crise sociopolítica (1958-1975) que viria a desencadear uma consciência da Nação e uma afirmação nacionalista. Foi a única a compreender que a elite cabo-verdiana vinha, até então, a laborar num profundo mal-entendido. “Impunha-se impulsionar o renascimento cultural cabo-verdiano e exigir de Portugal uma autonomia enquanto „pessoa colectiva‟, processo que veio a atingir a sua plenitude na Independência Nacional, a 5 de Julho de 1975.” (Brito-Semedo, 2006:377-8)

Em termos de construção da identidade nacional, as duas primeiras gerações pós-Seminário, Claridade e Certeza, inventam e consolidam a identidade mestiça do arquipélago, enquanto as gerações seguintes mais vinculadas à luta de libertação nacional, colocam acento numa reformulação revolucionária da identidade que vincula Cabo Verde à África. (Anjos,

2002:141)

11 A dissertação de Ana Cordeiro (2009), dedicada à representação identitária cabo-verdiana nos textos literários

do século XIX, tem como principal título a expressão “Nós, cabo-verdianos”, utilizada por Luís Loff de Vasconcelos em alguns artigos publicados nessa época. Este foi, juntamente com Eugénio Tavares e José Lopes, dos intelectuais mais influentes da sua geração.

28 Como defende Fernandes (2005), nos três casos expostos verifica-se que, no âmbito das lutas político-identitárias travadas acima de tudo em torno da afirmação/legitimação das nações, ao cabo-verdiano não foi dado o direito de ficar “com as suas mornas, os seus bailes, a sua cachupa”. Ou seja, parecia não haver espaço para um autocentramento crioulo, de que pudesse resultar uma autodeterminação, definida em torno de um novo pais independente.

O resultado primeiro dessa sucessão de acontecimentos é o facto de se viver até hoje em Cabo Verde num estado de esquizofrenia identitária, termo utilizado pelo sociólogo Cláudio Furtado Alves (2013:625). Ainda que tenha como ponto de partida uma dicotomia entre a Europa e a África, esta tem-se mostrado insuficiente para um pleno entendimento do dinamismo identitário crioulo que explique, sem equívocos, as tensões que surgem em torno destes debates.

“As identidades”, diz-nos Victor Barros, “enquanto construções históricas e sociais nutrem e suscitam sempre uma dimensão fantásmica e alucinatória.” (2013:168) Essas tensões identitárias instalaram-se no arquipélago para nunca mais dele sair. Quase que poderíamos dizer que o próprio debate, interminável e inconclusivo, não poucas vezes manipulado por interesses políticos, regionais e jogos de poder à escala arquipelágica, sobre as diferentes matrizes a partir das quais se forja a identidade cabo-verdiana, faz por si só parte dessa mesma identidade. Não saber quem somos, sabendo apenas que somos crioulos, parece fazer parte do que somos. Tudo é produzido a partir da articulação de um lugar ou de uma temporalidade própria: “Algo se dá sempre num enquadramento: o lugar, o tempo e o contexto se ritualizam e se legitimam de forma pleonástica como coordenadas imanentes a todo e qualquer ato de produção discursiva.” (Barros, 2013:142) As ilhas constituem-se, deste modo, em espaços de ambiguidade, que tanto podem ser réplicas de territórios vizinhos como reflexos de espaços longínquos.

Apesar da incontestável natureza crioula de Cabo Verde e da sua população, a busca por uma identidade nacional tem sido marcada por contradições. O movimento cultural e literário

Claridade, do período colonial tardio, procurou defender uma identidade cultural e linguística

crioula única, mas com a mestiçagem a ser apresentada como uma expressão da “portuguesidade cultural do arquipélago”. (Vale de Almeida, 2007:10) Logo após a independência do país, ocorrida a 05 de Julho de 1975, as políticas do governo visaram a recuperação da então proclamada herança africana, em parte através de uma revalorização da cultura do interior da ilha de Santiago. Como veremos, são recorrentes os exemplos destas tentativas – da parte de elites culturais e instituições governamentais – de definir o que é “autenticamente cabo-verdiano” no sentido de determinar a força das diferentes componentes da crioulização nas ilhas.

29

Há também a tendência entre essas definições de cabo-verdianidade autêntica de observar o passado, de essencializar a identidade cabo-verdiana através de uma busca por raízes. Assim como ignoram a história dinâmica C bo V r su „crioulização profun ‟ (Spitzer, 2011:44), que na verdade implica uma ausência de raízes V rg s 00 . Tais discursos sobre autenticidade também desprezam a influência poderosa da diáspora cabo- verdiana, que, se incluídos emigrantes de segunda ou terceira geração, está quase em maior número que aqueles residentes das ilhas. (Cohen e Sheringham, 2014:125-6)

Se a linha entre o passado e o presente fosse traçada de outra forma, o que é entendido como “intrusões” na cultura cabo-verdiana poderia ser visto como contribuições aos processos em andamento de produção cultural. (Challinor, 2005) Assistimos nos últimos anos a uma inflexão paradigmática nos estudos sobre a construção da nação e a sua identidade, que foge da perspectiva até então homogeneizadora, essencialista, orgânica e hegemónica. Como tem sido realçado pela nova sociologia cabo-verdiana pós-colonial, representada por Gomes dos Anjos (2002) ou Gabriel Fernandes (2005), fica claro que além das versões “autênticas” de identidade cabo-verdiana patenteadas pelas elites culturais ou pela política oficial do Estado, há processos dinâmicos de mudança cultural em curso, que são visíveis, por exemplo, nas diferentes manifestações da criação artística contemporânea, nomeadamente: na literatura e na poesia, com Arménio Vieira ou José Luiz Tavares; na música erudita de Vasco Martins ou no movimento urbano de hip-hop crioulo; nas pinturas de Tchalé Figueira ou Mito; nas coreografias de Mano Preto e em muito do teatro que se produz na cidade do Mindelo.

Todos estes exemplos referem-se a artistas que, sendo fortemente ligados às ilhas, não renunciam a uma forma de estar cosmopolita e universalista. “Sou pós-moderno e faço parte de um círculo de escrita e de leitura pós-moderna, de uma sociabilidade a nível global”, disse-me uma vez o poeta Filinto Elísio, em entrevista (2010:11), um enunciado que sintetiza essa abertura para o mundo e uma libertação das amarras identitárias que procuram dominar o centro dos debates em Cabo Verde. Continua, no entanto, a ser patente a existência de dois lados, um acusando o outro de querer amputar à caboverdianidade a sua dimensão africana, e este contrapondo a denúncia de que a excessiva valorização africanista se deve a motivos políticos e regionalistas, dado que se atribui à ilha de Santiago o estatuto de herdeira da matriz africana inserida na identidade cabo-verdiana – um modelo linear que ignora, por um lado, as múltiplas influências atuais oriundas do Brasil, EUA e mesmo da Ásia e, por outro, esquece a importância da diáspora cabo-verdiana. Espalhada pelo globo e com praticamente o dobro de nacionais do que aqueles que vivem no arquipélago, esta é portadora dos mais variados ingredientes que contribuem para que se possa considerar o caso cabo-verdiano uma demonstração cabal do

30 quanto as identidades – sobretudo as nacionais – são fluidas, “de como se desmancham e se recompõe no tempo, do quanto mudam, retornam e desaparecem. (Anjos, 2002:273)

Ou seja, a história social e cultural, concebida como tráfico de identidades é, como bem lembra Canclini (2003), um labirinto de confusões em que cada lado escolhe as características que bem entende naquilo que o outro teatraliza como a sua identidade. Numa sociedade como a crioula é inevitável que se reflita sobre essas narrativas e metáforas identitárias, configuradas a partir de trocas sociais e simbólicas, sob o signo da porosidade e interpenetração de culturas. (Fernandes, 2005)

Quando Baltazar Lopes anuncia, num contexto concreto, em 1956, a sua famosa proposição “nem africano nem europeu; sou cabo-verdiano”, talvez não imaginasse que durante tanto tempo esta continuasse a ser utilizada como bandeira identitária. Ora, como sublinha o historiador Daniel Pereira, esta expressão tem sido “campo para muita ambiguidade, política, cultural e sociológica, cuja elasticidade tem, naturalmente, os seus limites, dificultando, e de que maneira, a nossa identificação enquanto africanos de parte inteira.” (2012:36) Na verdade, Baltasar Lopes lançou essa missiva como resposta ao sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, que após uma curta visita por três ilhas do arquipélago, escreve na sua obra Aventura e Rotina, entre outras conclusões, não ter encontrado no território nenhum vestígio de “uma arte popular que seja própria do cabo-verdiano e marque, em sua cultura, uma sobrevivência africana cultivada com algum carinho” (Freyre, 1999:276), situação que classificou de “incaracterização cultural”. Dois dos principais indícios desse vazio seriam, ainda segundo o autor, “o uso generalizado, pelos ilhéus, de um dialecto; e a ausência de artes populares que exprimissem uma saudável interpenetração das culturas que neles se cruzam.” A língua cabo-verdiana, tão querida pela elite intelectual vigente, foi reprovada, sem qualquer espécie de reserva: “repugna-me o dialecto cabo- verdiano”, escreveu então o ilustre visitante. (idem: 274) E não se ficou por aqui:

Das origens africanas o cabo-verdiano já perdeu, talvez, o melhor; e quanto às sobrevivências africanas em sua cultura, a atitude do maior número tende a ser uma atitude de pudor que faz de muito cabo-verdiano mestiço um envergonhado daquela sua origem [...], uma gente que, procurando ser europeia, repudia suas origens africanas e encontra-se, em grande número, em estado ou situação precária de instabilidade cultural e não apenas económica (ídem:276-277).

Foram, pois, estas as circunstâncias que provocariam a reação de Baltasar Lopes, dando origem a uma expressão – “não somos africanos nem europeus, somos cabo-verdianos” – que é

31 comummente utilizada no debate identitário, como uma síntese e conclusão. Daniel Pereira desmistifica esta utilização, colocando a nu a sua fragilidade epistemológica:

Desde logo, essa frase é, em si, redundante e tautológica. Trata-se, ao cabo e ao resto, de uma repetição inútil de uma mesma ideia em termos diferentes. O cabo-verdiano é cabo- verdiano, como o senegalês é senegalês, o sueco, sueco e o português, português. Nem por isso deixam de ser, simultaneamente, também africanos ou europeus. Depois, ela encerra no seu bojo uma tese isolacionista, agregando maiores dificuldades ao isolamento físico intrínseco que caracteriza o fator ilhéu; ela é, igualmente, excludente, já que parte da nossa identidade e autenticidade próprias para se excluir ou afastar-se das culturas de origem; parte, ainda, do princípio falacioso de que existe unicidade cultural na África ou na Europa, uma asserção desmentida pelos fatos e pela realidade. Aliás, para sermos mais sinceros e precisos, unicidade cultural é coisa que não existe. (2013:38-39)

A frase de Baltasar Lopes, não por culpa do autor, tem permitido todas as extrapolações possíveis e imaginárias, “a maioria delas ilegítimas e sem substância. (...) Para nossa melhor afirmação enquanto povo, melhor seria assumirmos a nossa História na sua integralidade, sem complexos de superioridade ou de inferioridade”. (idem:39)

Faríamos bem melhor se, em vez de contestarmos a nossa maternidade, já que foram as mulheres africanas, na sua esmagadora maioria, que deram à luz as crianças crioulas, nos reconciliássemos com a nossa História e tivéssemos orgulho naquilo que os nossos antepassados negros, brancos e mestiços foram capazes de construir ao longo dos séculos, contrariando a natureza ignara. Faríamos bem melhor se, ao contrário de tentarmos, permanentemente, reescrever o nosso passado, ao sabor dos tempos e da conjuntura, o conhecêssemos mais e melhor, sem processos de intenção de julgar ou corrigir a própria História. (idem:40)

Muito crítico da tentativa, velada ou assumida, de diluição de África da matriz identitária, Daniel Pereira defende que as ilhas não podem ser arrastadas ou deslocadas, qual “jangada de pedra”, mais para norte: “o código genético cabo-verdiano encerra marcas que não podem pura e simplesmente ser apagadas”. No entanto, na esteira destas representações, deparamo-nos com manifestos em torno do mito de Cabo Verde como uma espécie de África especial, o que aumenta a confusão. O debate resvala, não poucas vezes, para o campo do regionalismo, do oportunismo político, do bairrismo defensor de interesses locais, afastando-se do rigor científico que o tema exige. Continua-se, com isso, a alimentar uma dicotomia identitária pró-África versus pró-Europa, insuficiente como epítome da identidade crioula contemporânea.

O que parece inquestionável é que a modernidade fragmentou essa identidade. Basta ter consciência da diversidade arquipelágica ou da localização geográfica do arquipélago, entrelaçado entre três continentes. O antropólogo João Vasconcelos defende a existência de

32 “nove micro-sociedades insulares que constituem o arquipélago, e que resultam de processos de formação social bastante distintos e desfasados no tempo.” (2008:8).

Os debates acerca da cultura cabo-verdiana são quase sempre debates acerca de origens culturais. De onde veio a morna? E o machismo? E a família matrifocal? E o gosto pelo desporto? Não são apenas debates de intelectuais; são conversas que se ouvem nos cafés, nos botequins, nos mercados, nas esquinas da Rua de Lisboa e em casa. (idem)

Há quem defenda, por isso, que a identidade do ilhéu crioulo será, em síntese, uma identidade atlântica, embora esta afirmação seja encarada por outros como uma tentativa de apartar a componente africana do todo identitário. “Mas isso também se enquadra no contexto poético que nos diz que o Atlântico é todos os oceanos. Como escrevi algures, o Oceano Atlântico é o matrimónio da Humanidade. (...) Cabo Verde pertence a todos os continentes”, escreveu Mário Lúcio Sousa (2014:7), numa clara alusão a essa vocação atlântica, entendida por alguns como um voltar de costas ao continente africano. Germano Almeida lembra, com alguma ironia, que “em termos geográficos Cabo Verde é tido como fazendo parte de um conjunto denominado Macaronésia e que engloba os arquipélagos dos Açores e da Madeira, as ilhas Selvagens e as Canárias” e que o arquipélago se dispõe no espaço do mar em forma de uma ferradura com a abertura para o ocidente, “como se propositadamente tivesse sido feita de costas voltadas para uma África com a qual até hoje não aprendeu a conviver.” (2003:22) 12

Cabo Verde será, em suma, como lhe chamou Luís Hoppfer Almada, um arquipélago africano, macaronésico, saheliano e atlântico. “O cabo-verdiano é, em todas as ilhas, portador de uma idêntica cultura crioula, miscigenada na sua substância e formas de expressão.” (2007:28) Urge, pois, como defende Gabriel Fernandes (2006), uma desnacionalização estratégica, seguido de um projeto de renacionalização, com uma base cosmopolita, em que deixaria de causar desconforto sustentar uma integração europeia e, ao mesmo tempo, reiterar o vínculo africano. Onde deixaria de fazer sentido negar as múltiplas influências e contribuições, oriundas de uma diáspora espalhada pelo mundo. Veríamos, então, um “Cabo Verde crioulo, insular, diaspórico e cosmopolita.” (p. 269)

12

Na revista Artiletra, de Abril/Maio de 2015, encontra-se um extenso artigo de José Carlos Mucanga, intitulado “Subsídios para a caboverdianidade (2): Qual é a origem do Arquipélago? Faz parte de África?”, em que o articulista defende que, “o estudo da geologia, geoquímica e geofísica só tem comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence à litosfera oceânica e não faz parte de continente nenhum. Está fora do continente africano e da sua estreita plataforma.” Deste exemplo, bem recente, se comprova que as discussões identitárias mantêm-se intensas e vão além das ciências sociais ou das discussões politicas.

33 2.2 A questão da língua, entre o bilinguismo e a diglossia

Sabemos afirmar, com desmesurado orgulho, que somos cabo-verdianos mas, como se viu, em cada um as razões dessa identidade variam. Outrossim, há uma matriz comum que passa, inquestionavelmente, pela língua cabo-verdiana, o nosso crioulo. No entanto, apesar de materna e indiscutível, a língua crioula navega entre uma oficialização adiada e uma gramática discutida e/ou recusada por sectores da intelectualidade cabo-verdiana. Segundo os críticos, estas regras tendem a conduzir a língua rumo a uma padronização inevitável, numa estratégia discriminatória em relação a certas identidades regionais desta ou daquela ilha.

Não há dúvida de que em Cabo Verde “a vida decorre em crioulo”, como referiu Jorge Amado aquando da sua visita ao arquipélago. (cit. Duarte, 1998:21). O crioulo, ou como formalmente é designado, a língua cabo-verdiana, é o que todos falam desde o berço, sendo utilizado em todos os contextos de interação social. É a língua materna. A língua nacional. Nos lares, nas ruas, nos cafés, nas conversas informais, nos namoros, nas festas, nas lutas, nas letras das músicas e em muito do teatro produzido, é a língua usada. É o principal instrumento da efetiva materialização da emoção crioula. É a língua da comunicação oral por excelência, o principal elo de ligação entre todos os cabo-verdianos e o seu melhor instrumento identitário. Como sublinha Onésimo Silveira "foi a língua crioula, como veículo essencial do conhecimento e da comunicação, que sedimentou a coesão nacional e a identidade cultural" (2005:101), uma opinião unânime entre os estudiosos da realidade sociocultural e linguística cabo-verdiana.

Foi o crioulo que tornou viável uma densa rede de relações que se desenvolveram nas ilhas vários nív is onstituin o m v í ulo omuni ç o omum. …. O rioulo tr nsformou- se, assim, em instrumento de resistência cultural através do qual os cabo-verdianos se