• Nenhum resultado encontrado

EU SOU CABO-VERDIANO

2.3 A matriz identitária

2.3.6 Os ritmos e a musicalidade

2.3.7.5 Carnaval, um evento crioulo

Entretanto, outro evento anual tem lugar do lado oposto do arquipélago e concorre com a

Festa da Bandeira como maior acontecimento popular do ano: o Carnaval. Embora se festeje

em todas as ilhas, é no norte, em São Vicente e São Nicolau, que se destaca enquanto manifestação cultural que constitui um rico manancial de exteriorização colectiva popular, em que participam pessoas de todas as idades e estratos sociais, residentes, emigrantes e turistas. Almada Dias não tem dúvidas em considerar o Carnaval do Mindelo “o maior momento de cultura popular de Cabo Verde” (2015:12) Há aqui dois aspectos a considerar: por um lado, a componente teatral e cénica das manifestações carnavalescas e por outro, a participação direta de grupos e agentes teatrais no evento. “O Carnaval do Mindelo sempre teve desde os seus primórdios uma íntima ligação ao teatro, aonde ia buscar os seus artistas.” (idem)

O carnaval das ilhas reflete a história da crioulização do país e, tal como aconteceu com o surgimento dos géneros musicais, pode ser visto como “um palco da identidade complexa de

58 Cabo Verde e de sua posição como uma encruzilhada entre a Europa, a África e as Américas.” (Cohen e Sheringham, 2014:135) O Carnaval do Mindelo pode assim, na senda de outras manifestações culturais cabo-verdianas, ser encarado como parte de um longo processo histórico de cruzamentos e trocas culturais entre três continentes e, na sua última fase, entre dois territórios crioulos, Cabo Verde e Brasil.

No Carnaval, em Cabo Verde, nada se mantém igual ao que era dantes. A mestiçagem dos elementos vindos do exterior (considerando os períodos da sua formação e povoamento; as épocas de tráfico de gentes; a passagem e a presença de estrangeiros; os comércios que se instalaram tanto nos períodos de desenvolvimento como de insucesso; os fluxos migratórios que levam muitos e trazem alguns de retorno) expressam a dinâmica da cultura que a população foi capaz de construir. (Rocha-Trindade, 2012:6)

Ainda que o Carnaval do Mindelo possa ser acusado de sofrer uma excessiva influência do Brasil, com escolas de samba locais, desfile oficial com carros alegóricos, instrumentos rítmicos brasileiros e vários adereços de fantasias importados daquele pais, este não deixa de ser um acontecimento cabo-verdiano no seu âmago, nos ritmos tocados, nas canções compostas para os desfiles por músicos de craveira, na maioria dos materiais utilizados e no talento artístico colocado ao serviço quer da competição oficial quer da narcísica vontade de desfilar pelas ruas.

Estamos perante um gigantesco palco para a manifestação de uma criatividade sem par que abrange múltiplas formas de expressão artística – o teatro, a dança, a música, a performance, as artes plásticas, etc. – numa democrática festividade popular que se alimenta de uma paixão pelo Entrudo, que é transversal a todas as idades e camadas sociais.

As ruas do Mindelo, para todos esses atores e atrizes acidentais e de ocasião, são local de exorcismo. Fantasmas são libertos dos corpos sujos e suados e, mais do que nunca, fazem eles dessa forma e sem o saberem, a grande homenagem aos desfiles milenares que então tinham lugar em homenagem ao Dionísio, com a mesma loucura inusitada, com os mesmos espíritos transtornados, com a mesma energia orgiástica, mostrando-nos, afinal, que estamos muito mais próximos da Grécia Clássica do que alguma vez ousamos imaginar.

(Branco, 2013:47)

No carnaval do Mindelo há ainda traços de africanidade e ecos diaspóricos, fazendo jus ao facto desta urbe se encontrar inserida num contexto de absoluta hegemonia crioula (Agualusa, 2015). Os Mandingas, grupos constituídos por pessoas que pintam os seus corpos de preto, vestem saias de palha, utilizam adereços construídos com ossos de animais e que dançam balouçando um bastão com uma cabeça de boneca na ponta, são um caso emblemático. O seu aparecimento data do final da primeira metade do século passado, depois de uma atuação no

59 carnaval local de um grupo de dançarinos guineenses que estaria de passagem pelo Mindelo de regresso à Guiné, após participar em Lisboa na Exposição do Mundo Português. A figura dos

Mandingas, que o investigador Moacyr Rodrigues (2011) assegura serem Fulas, acabou por ser

adotada e recriada pelo povo, o que se percebe pela dança contagiante e pela indumentária fácil e barata de fazer, sobretudo para as camadas mais pobres da população. Um estranhamento de África em relação a si mesma, mais do que uma eventual busca das raízes africanas:

A essência do Carnaval é essa – imitar e satirizar tudo. Várias pessoas ficam desapontadas com essa explicação tão simples. Há quem me tenha dito que pensava que se tratava de uma homenagem a África! Outros julgavam que se tratava de reminiscências das culturas dos nossos antepassados africanos. Dificilmente se poderia arranjar explicação mais rebuscada. Mindelo seria o local menos provável para subsistir qualquer reminiscência africana – os cabo-verdianos livres vindos das ilhas e que fundaram esta cidade atlântica, eram crioulos cujas lembranças de África eram já inexistentes, porque a ligação com o continente tinha sido cortada havia séculos, devido em parte às proibições pelas autoridades de tudo o que fosse rito africano. (...) O crescimento deste fenómeno pode ser interpretado sim como uma homenagem às nossas raízes africanas. Afinal África não é o continente da música alegre, das danças empolgantes e sensuais, dos sorrisos rasgados?! (Almada, 2015:12)

Figura 6: Os Mandingas de Ribeira Bote, Mindelo (2013)

Fotografia de Cecílio Lima. Gentilmente cedida pelo autor

Os Mandingas, inicialmente, visavam acirrar o medo e pregar partidas. As memórias de quem se recorda dos primeiros que vestiram esta pele, testemunham o terror que sentiam em crianças, quando estas sinistras figuras passavam. Hoje, dançam e animam, num fortíssimo movimento colectivo, que anuncia a chegada do carnaval um mês antes, organiza vários desfiles aos domingos e promove o enterro do mesmo, no final. Sempre em festa, com um número crescente de seguidores, uma multidão de gente de todas as idades, sexos, crenças religiosas e

60 classes sociais. Unidos e contagiados por uma energia que resulta num frenesim indescritível, provocada por uma batucada tocada em instrumentos improvisados e por uma dança tribal de inspiração africana, com passos próprios e um ritmo identificável.

Pode-se afirmar que a evolução desta figura carnavalesca simboliza parte do processo de construção identitário em curso, expressão da mudança na formação demográfica do arquipélago – incluindo uma migração crescente de países africanos continentais – e da mudança de práticas quotidianas, levantando pertinentes questões sobre a identidade, a relação com África e o poder elusivo que cresce através do jogo criativo dessa personagem crioulizada. (Cohen e Sheringham,

idem) Os Mandingas, reavivados num dos bairros mais típicos da cidade do Mindelo, Ribeira

Bote 29, têm assumido um protagonismo e conduzido multidões, num fenómeno social e cultural que justifica um estatuto especial. Tudo o que envolve a construção desta personagem permite reinventar por algumas horas uma identidade colectiva e incorporar o papel de guerreiro que conquista um território, não sendo de estranhar que o percurso seja feito da periferia, onde se encontram os mais desfavorecidos, para o centro, onde estão os mais abastados, o que se afigura como uma brincadeira transformada em metáfora social.

Concluindo, o Carnaval do Mindelo reflete um património cultural que incorpora elementos novos todos os anos, reciclados e integrados: “Uma festa de bufões e loucos, de inversões, que deve ser interpretada como um mecanismo de libertação social.“ (Rodrigues, 2013:25). As ruas e avenidas tornam-se arenas de espontaneidade, de resistência e as regras quotidianas são subvertidas. É um espaço-tempo onde tudo acontece: são centenas de grupos com inusitadas dramaturgias, vestimentas, maquilhagens, máscaras, adereços e cenografias ambulantes. É um espaço criativo onde se torna possível desenvolver novas formas e práticas culturais, novos ritmos, novas plasticidades, novos jogos performativos que combinam dança, teatro e música, todo um campo artístico, cultural e social que aponta o carnaval como um exemplo de crioulização, criatividade cultural em processo. (Baron e Cara, 2011:3) O carnaval é, em suma, “uma apresentação, um tornar visível, uma performance criativa e ainda espontânea dos processos contínuos de crioulização no „fazer‟ da cultura dinâmica de Cabo Verde.” (Cohen e Sheringham, 2013:137)

29

Ribeira Bote, é conhecido pelo povo como Zona Libertada, dado ter sido o primeiro bairro da cidade a opor- se à entrada de tropas portuguesas após o 25 de Abril, no dia 23 de Setembro de 1974, bloqueando as entradas do bairro e defendendo-se com cocktails Molotov. O termo é uma alusão às regiões da Guiné-Bissau libertadas pelo exército comandado por Amílcar Cabral, no período da guerra colonial. Este episódio histórico reforça o estatuto do bairro, de gente corajosa e criativa, de onde saíram algumas conhecidas figuras do carnaval da cidade, além dos Mandingas, que hoje existem espalhados por vários outros bairros periféricos.

61

SEGUNDA PARTE