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EU SOU CABO-VERDIANO

2.3 A matriz identitária

2.3.2 O sentimento de pertença

Apesar do difícil e tantas vezes trágico percurso histórico, o sentimento de pertença é uma importante componente da matriz identitária cabo-verdiana. O orgulho de afirmar-se “eu sou cabo-verdiano” revela, por um lado, um amor à terra, seja pela sua ilha em particular, seja por Cabo Verde no seu todo, e por outro, um orgulho de ser aquilo que é, cabo-verdiano. Na realidade, este nunca abandona o arquipélago, mantendo um contacto estreito com a terra natal – uma ligação que se herda e não se limita a quem tenha nascido nas ilhas, pois pode ser assumida pelos filhos nascidos no estrangeiro. Mesmo longe, esta é uma ligação que se mantém por diversas vias, através da língua materna ou das manifestações culturais que continuam a fazer parte do dia-a-dia de qualquer emigrante, como é o caso da música, das danças, da culinária ou do próprio modo de vida. Não será por acaso que a composição mais conhecida do universo musical cabo-verdiano seja Sodade, saudade em crioulo, popularizada a nível global por Cesária Évora. Neste sentido, a caboverdianidade pode ser vista como a expressão máxima de uma elevada autoestima de um povo espalhado pelos quatro cantos do mundo, em esforço contínuo pela afirmação de uma identidade em permanente construção. É um orgulho tal que há quem afirme ironicamente que o cabo-verdiano vê o arquipélago como o centro do mundo ou, como escreveu Germano Almeida, “com os olhos fixos no próprio umbigo.” (1998:13) É o que o poeta Corsino Fortes designa, na mesma linha de pensamento, de bazófia grande: “ele tem consciência da sua pequenez, mas é nessa consciência que vem a sua grandeza.” (cit. Santos, 2009:422) Este mesmo poeta escreveu num dos seus poemas que se as dez ilhas de Cabo Verde se juntassem dariam um golpe de Estado no Paraíso, o que simboliza o amor-próprio que o cabo-verdiano tem pelo seu arquipélago.

Pedimos a Deus

Que não nos ajude a unir estes dez pedaços Porque se unidos: amalgamados

Ossos com ossos rochas com rochas Estes dez pedaços

41 2.3.3 A importância da(s) diáspora(s)

Uma consequência bem visível das dificuldades sentidas ao longo do processo histórico cabo-verdiano foi o intenso fenómeno migratório, que é uma das componentes mais antigas e estáveis da história do arquipélago. (Pereira, 1998:81) A emigração espontânea dos ilhéus remonta aos finais do século XVII e início do século XVIII, tendo como destino a América do Norte, numa aventura ligada à atividade dos barcos baleeiros norte-americanos. Foi sobretudo nas ilhas do Fogo e Brava que foram contratados crioulos para trabalhar nesses navios, dando-se início a uma autêntica ponte migratória que culmina no surgimento de uma das maiores comunidades cabo-verdianas, com uma intensidade maior entre 1900 e 1920. Foi a forma quase providencial, que se encontrou para alguns fugirem dos efeitos nefastos das secas que assolavam as ilhas, que haviam de provocar enorme mortandade, de forma cíclica, durante vários séculos.

Além desta, é preciso ter-se em conta a corrente migratória para S. Tomé, iniciada no século XVIII, marcada por suplício, miséria, deficiente alimentação e condições de trabalho duríssimas. Na segunda fase migratória, que compreende o período entre 1927 e 1945, países como Brasil e Argentina começam a ser escolhidos por causa da dificuldade de entrar nos EUA. Na África, nações como Senegal, Guiné e Angola começam a receber muitos emigrantes, além de Portugal que nesta época se destaca como destino migratório. A partir da segunda metade do século XX, dá-se um êxodo marcado por uma mudança dos destinos dos emigrantes, voltado agora para os países da Europa. É interessante verificar que conforme o país considerado assim a origem dos emigrantes é diferente. Por exemplo, na Holanda, com destaque para Roterdão, e em Itália, a emigração dá-se sobretudo a partir da ilha de São Vicente; em Portugal, com epicentro em Lisboa, a maioria é oriunda de Santiago; no Luxemburgo, encontramos sobretudo crioulos de Santo Antão; e os EUA continuam a receber, em maior número, naturais do Fogo e Brava 19.

Como outras comunidades emigradas, a cabo-verdiana transporta o seu país de origem para todo o lado. Quem conhece ou visitou estas comunidades já vivenciou a impressão de que não se saiu do arquipélago, seja pela língua que ali se fala, pela comida que se come, pela música que se ouve ou pelos ritmos que se dançam.

19 Não se sabe ao certo quantos cabo-verdianos existem espalhados pelo mundo. Um estudo publicado em

Setembro de 2010 pela OIM (Organização Internacional para as Migrações) apontou para a diminuição dos números da emigração desde a década de setenta. De 1970 a 1975 a taxa estava em torno de 19% da população cabo-verdiana; no período de 2005 a 2010, a mesma foi reduzida para 5,1%. Segundo dados da Organização, 700.000 cabo-verdianos viviam fora do país em 2010 (com 260.000 nos EUA e pelo menos 100.000 em Portugal). Estima-se que, em 2015, possam haver cerca do dobro de cabo-verdianos a viver fora do arquipélago, entre crioulos de primeira e segunda gerações, ou seja, o dobro da população residente, que em 2014 atingiu, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde, a fasquia dos 500 mil habitantes.

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Ao ponto de chegada, este homem cabo-verdiano, fruto dos séculos da sua própria história, que ele também desconhece, tem consigo uma arma – vontade de vencer, logo suportar clima, língua estranha, gente de outros modos, trabalhos difíceis, solidão. Essa vontade cimenta-se num dado, ele é cabo-verdiano. Assim, a língua perpetua-se no seu grupo a que se aferra para ter raízes e se sentir mais forte; acompanhado a sua música que serve de comparação entre todos os ritmos; mune-se da sua religião – uma existência difusa de crenças e fés, que ele afirma ser catolicismo, que expressa nos casamentos, baptizados e mortes; a cozinha com os seus sabores específicos a perpetuar os ritos e festejos da nação.

(Pereira, 1998:82)

Esta “interiorização” dos países de destino como se fossem parte do território é, segundo Grassi (2006), uma particularidade identificável da diáspora cabo-verdiana. Existe a percepção de que a nação não é limitada às ilhas do arquipélago mapeadas pelas suas fronteiras naturais. A pátria cabo-verdiana, tendo o mundo como território, é uma percepção que está ancorada na história do arquipélago e, portanto, vai muito além da perspectiva económica.

O investigador Rui Cidra defende que a experiência social da música, dança e poesia nos contextos da diáspora cabo-verdiana constitui um veículo central de relação emocional e intelectual com o território de origem:

A experiência social da música, poesia e dança no âmbito de redes comunitárias, de parentesco e de amizade nos contextos da diáspora cabo-verdiana, constituiu um veículo central de relação emocional e intelectual com o território de origem. Em destinos migratórios preferenciais como Buenos Aires, Rio de Janeiro, Boston, Dacar, Luanda, Bissau, Lisboa, Roterdão ou Paris, migrantes abordando instrumentos musicais e interpretando os repertórios do arquipélago, audiências participando activamente na performance através do canto, da dança ou da escuta silenciosa, mas subjectivamente significativa, constituíram a música e dança como práticas culturais centrais para as suas identidades e para a reconfiguração das suas memórias em contextos de separação e desestruturação ditados pela migração. (2008:106)

Cabo Verde encarna um espaço diaspórico desde sua origem. As suas ilhas inabitadas foram povoadas por povos deslocados das suas terras originais, de forma forçada ou voluntária. (Cohen e Sheringham, 2014). Por outro lado, seriam as ondas de emigração de cabo-verdianos a partir do começo do século XX que originariam esta transnação desterritorializada (Sieber, 2005:123), com uma grande maioria que mantém profundos laços efetivos com a sua terra natal. São laços para os que emigram e para os que ficam, o que faz da nostalgia uma expressão habitual do imaginário crioulo.

43 2.3.4 A heterogeneidade arquipelágica

Em Cabo Verde, quase que se pode dizer que encontramos um país diferente em cada ilha, e a disparidade não é apenas paisagística. As populações das ilhas mostram-se diferentes, nas suas múltiplas facetas, sociais, culturais e até psicológicas. Não cabe, no âmbito deste estudo, uma análise aprofundada da história de cada ilha e das suas respectivas matrizes identitárias, nem sequer aprofundar as suas singularidades geográficas. Mas é importante sublinhar que destas diferenças nasce a rivalidade entre a ilha de Santiago, historicamente mais ligada ao início do povoamento, ao fenómeno da escravatura e ao início da miscigenação, herdeira dos traços culturais oriundos do continente africano; e a ilha de São Vicente, a última ilha a ser povoada, muito mais tarde, já por nascidos no arquipélago e que, com a sua ampla baía, o seu Porto Grande e a indústria carvoeira, assume um carácter cosmopolita com ampla influência britânica.

São facilmente identificáveis, por exemplo, as diferenças existentes entre a ilha do Sal, com as suas extensas praias de areia branca, que fizeram dela o maior centro turístico de Cabo Verde, e a ilha de S. Nicolau, que viu nascer o Seminário Liceu, em 1866, transformando-a no berço da intelectualidade cabo-verdiana na primeira metade do século XIX, início do século XX. Consegue-se entender que falar da ilha Brava, é falar da mais pequena e isolada ilha de Cabo Verde, situada a sul do arquipélago, povoada a partir da violenta erupção da ilha do Fogo em 1680, por gente desta ilha vizinha, à qual se juntaram pescadores oriundos dos Açores, dando-se início a uma ligação à pesca que esteve na origem da corrente migratória dos habitantes desta ilha para os EUA. As ilhas de Santo Antão e Boavista, completamente diferentes na paisagem – a primeira tem as montanhas mais majestosas e a segunda é a detentora das mais belas praias – tem em comum o facto de terem acolhido vagas de migrantes chegados de Marrocos, parte da população judaica sefardita, que procuravam escapar à perseguição, sendo possível encontrar traços e vestígios deste facto histórico, mormente nos cemitérios locais, numa e noutra ilha.

Uma das maiores riquezas de Cabo Verde reside, pois, nesta heterogeneidade arquipelágica. Apesar de toda esta diversidade, a acrescentar à inexorável insularidade que confere a cada ilha características peculiares no folclore, nas tradições, nos modos de vida e no crioulo falado, o cabo-verdiano mantêm-se detentor de uma notável consciência nacional, apesar das rivalidades regionais, inevitáveis tendo em conta as imensas diferenças que se encontram em cada uma das ilhas. Por exemplo, apesar desta diversidade social e cultural, nunca houve nenhum movimento visando a independência ou autonomia de uma ilha ou de um determinado conjunto de ilhas, apesar dos apelos por uma maior regionalização estrutural no aparato administrativo.

44 2.3.5 A língua crioula

Depois de tudo o que já foi escrito sobre a língua cabo-verdiana, importa neste contexto reforçar o crioulo como um fascinante produto resultante do encontro de culturas: “Nós inventamos uma língua!”, constatava com emoção Gabriel Mariano, pensador e ensaísta do Cabo Verde moderno. (cit. Spínola, 2004:183). A fala crioula, nascida das bocas de negros e de mulatos, acabaria por se alastrar a todos os naturais do arquipélago, “impondo-se como o facto mais eloquente e mais decisivo da nossa especialização cultural” (Mariano, 1991:69) A língua crioula é um factor de unidade e tem presença capital nas manifestações culturais cabo-verdianas, na música, no teatro e nas tradições populares.

O crioulo é realmente o suporte insubstituível da identidade cabo-verdiana: na comunicação corrente, na vivência de hábitos e costumes rurais como citadinos. Mas também numa aproximação aos ritmos tradicionais de texto, música e dança; para captação e expressão de emoções estéticas tanto no campo da poética como da narrativa (Peixeira, 2003:162)

Onde estiverem dois cabo-verdianos, certamente que se ouvirá a peculiar sonoridade do crioulo de Cabo Verde, e se há algo que o estrangeiro que se quer integrar tem de fazer é aprender a falá-lo rapidamente porque o certo é não aparecer ninguém a fazer qualquer esforço de tradução, mesmo em meios sociais amigáveis. Entender e saber falar o crioulo torna-se uma espécie de prova definitiva da vontade do forasteiro de se integrar na comunidade, seja nas ilhas ou na diáspora. Só assim poderá um dia ouvir de um cabo-verdiano que é “um dos nossos”. O crioulo é o espelho da alma do cabo-verdiano. Sendo língua materna, facilmente se compreende que seja a língua do amor, do debate, da emoção e da tristeza. Em crioulo se fazem as declarações de amor mais inflamadas – geralmente cantando uma morna – e em crioulo choram- se os mortos que partiram. É o principal instrumento de comunicação, de expressão artística e da oralidade. Sendo o pilar central da matriz identitária crioula compreende-se que o cabo-verdiano, que se diz crioulo, utilize o mesmo substantivo quando se refere à sua própria língua, o crioulo. Talvez a mais sintética definição do cabo-verdiano seja mesmo essa: um crioulo que fala crioulo.