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artigo 26.º da Lei da Droga foi ponderada, tendo apenas sido aplicada numa (Caso 2).

II. Objetivos I Resumo

2. O tráfico de estupefacientes

2.3. Traficante-consumidor

2.3.1. A finalidade exclusiva

Sendo inequívoca a intenção restritiva do legislador na incriminação do artigo 26.º (através do segmento “finalidade exclusiva”), alguma jurisprudência tem considerado dever ser conferida relativa flexibilidade na interpretação deste segmento, só assim sendo o preceito capaz de valer às situações reais, infinitamente mais rebuscadas, e de a elas se acomodar.

No que ao elemento “finalidade exclusiva” concerne, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, em aresto datado de 07-06-2017 (Maia Costa), disponível em www.dgsi.pt, dever atender-se “tanto quanto possível à realidade criminológica da figura do traficante-consumidor, geralmente em situação social e financeira extremamente precária, muitas vezes próxima da sobrevivência, assumindo o tráfico então uma função de satisfação não só do vício, como também das necessidades básicas”. Prossegue o aresto, considerando que, “nessas situações extremas não se deve excluir a subsunção ao artigo 26.º só porque em bom rigor nem todos os proventos do tráfico são afetados ao financiamento do consumo”.

A opção ou entendimento de que, nas situações em que a realidade social e económica do agente se apresenta de extrema debilidade, não se deve negar a aplicação do artigo 26.º, pela circunstância de não poder afirmar-se que todos os proventos do tráfico são afetados à satisfação do vício não encontra, contudo, muitos defensores entre a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, sobretudo por causa do argumento de que a hermenêutica do preceito coloca a finalidade exclusiva como requisito inultrapassável25.

Se é certo que, em termos literais, os quais são claros e precisos, a lei exige verificar-se o caráter de exclusividade da afetação do produto do tráfico ao financiamento do consumo do agente, e que o sentido da norma deve ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, também deve olhar-se ao argumento racional e a que a interpretação do preceito deve fazer-se no sentido da finalidade principal ou essencial do tráfico para consumo, pois que “a exigência da exclusividade da afetação do lucro do tráfico ao financiamento do consumo tem de ter em consideração antes de mais, que o traficante-consumidor, para consumir, precisa evidentemente… de sobreviver! E essa sobrevivência será geralmente, senão inevitavelmente, 23 No qual pode ler-se: não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.

24 Limite temporal que, como veremos, atento o disposto no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, será de elevar para 10 dias.

25 Nesse sentido, a título exemplificativo, v. , entre outros, Pedro Patto, “Comentário ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que prevê o regime de tráfico e consumo de estupefacientes, alterada pela Lei n.º 18/2009, de 11 de maio in Comentário das Leis Penais Extravagantes – Volume 2, organização de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, 2.ª edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 517.

PUNIBILIDADE DO CONSUMIDOR-TRAFICANTE E DO TRAFICANTE-CONSUMIDOR DE ESTUPEFACIENTES

2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

dada a carência de meios e a situação de marginalidade social que caracteriza estas situações, conseguida precisamente da mesma forma que a droga – através do tráfico26.

Para Eduardo Maia Costa, “excluir-se, sem mais e em todos os casos, a possibilidade de condenar como traficante-consumidor aquele que trafica, não exclusivamente mas essencialmente para seu consumo, dedicando uma pequena parte do lucro do tráfico ao seu sustento, transformará o artigo 26.º num fantasma de aplicação inútil”27.

O argumento de que, exigindo-se a finalidade exclusiva redundará na aplicação mais do que residual deste preceito é validado pelos mais recentes estudos estatísticos do SICAD, designadamente uma vez que se verificaram parcas quatro condenações pelo crime de traficante-consumidor28.

Conferindo argumento válido e diferenciado, também acompanhámos Vítor Paiva na medida em que considera que “uma interpretação meramente razoável da lei poderá conduzir a um entendimento do termo exclusividade menos restritivo que o habitualmente preconizado, (...) se a venda de droga visa a aquisição de mais estupefaciente para o próprio consumo e se o mesmo não trabalha vivendo em função da sua dependência, parece absurdo afastar a aplicação do tipo privilegiado à obtenção do indispensável ao respetivo sustento físico29”. A própria Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, já em 1999, enunciava a intenção de “redefinir a figura do traficante-consumidor, nomeadamente tendo em conta os casos em que este não destina, em exclusivo, o produto da droga traficada ao alimentar da sua toxicodependência, mas reserva uma parte para satisfazer necessidades básicas de subsistência” (ponto n.º 33, d), Diário da República, I série-B, de 26.5.1999, p. 2998).

Também a Proposta de Lei n.º 33/VIII pretendia a reformulação do crime de traficante- consumidor em termos de se exigir apenas que o tráfico se destine a título principal (que não exclusivo) para o financiamento do consumo.

Argumento que exaltamos é o que vai no sentido de considerar a interpretação mais restritiva do preceito desfasada daquela que será, em muitos casos, a realidade do tráfico e do consumo de estupefacientes, a do “toxicodependente não auferir quaisquer outros rendimentos e ser através do tráfico que satisfaz, além do seu vício, as suas necessidades básicas e exigências mínimas de sobrevivência”30.

26 Partidário da opinião de que a exclusividade deve ser entendida em «termos hábeis» e que não afasta, antes inclui necessariamente, o financiamento da autossobrevivência, veja-se Eduardo Maia Costa, em comentário ao Ac. do STJ, de 17/5/2000, proc. n.º 260/00, in Revista do Ministério público, n.º 83, p. 187.

27 Nesse sentido também se prenunciou Vítor Paiva, Breves Notas sobre a penalização do pequeno Tráfico de Estupefacientes, Revista do Ministério Público, Ano 25, julho-setembro de 2004, n.º 99, p. 144.

28 Relatório “A Situação do País em Matérias de Drogas e Toxicodependência”, 2017, disponível em:

http://www.sicad.pt/PT/Publicacoes/Paginas/default.aspx, consultado em 11 de abril de 2019.

29 PAIVA, Vítor, Breves Notas sobre a penalização do pequeno Tráfico de Estupefacientes, Revista do Ministério Público, Ano 25, julho-setembro de 2004, n.º 99, p. 144.

30 Cfr. ALBUQUERQUE, Pinto Paulo e BRANCO, José (Org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume 2, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 516 e 517.

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Ainda assim, como dissemos, a corrente jurisprudencial maioritária aponta no sentido de que, para se ter por verificado a previsão estatuída no artigo 26.º, e que sanciona menos severamente o tráfico para consumo do que o que fazem os crimes de tráfico simples e de menor gravidade, deve comprovar-se que os atos de aquisição de estupefacientes e sua posterior transação obedecem ao restrito objetivo ou móbil de exclusivo consumo pessoal e se revelam condicionados, de forma única, à satisfação do seu vício, por só assim se permitir afiançar ser a conduta geradora de menor perigo de lesão de interesses jurídicos tutelados. A finalidade de prover ao consumo do agente dos factos não pode ser o mote essencial ou principal da conduta, antes a sua finalidade exclusiva, pelo que, sempre que não fique provado que o agente tinha por finalidade exclusiva, com o tráfico, conseguir obter, para si e para seu uso pessoal, plantas, substâncias ou preparações, fica irremediavelmente afastada a incriminação pelo crime previsto e punido pelo artigo 26.º 31.

A nós, parece-nos evidente ser necessário, em primeiro lugar, estabelecer a diferença entre o traficante-consumidor que vende para satisfazer as necessidades de autofinanciamento do consumo de estupefacientes, e o traficante-consumidor que aderiu ao tráfico como modo de vida, que não tem, para além do tráfico, qualquer outra atividade profissional remunerada, sendo o tráfico, ao invés, a sua ocupação principal e o meio de se governar e de enriquecer. Quanto à última destas duas realidades, naturalmente que se encontra fora do estatuído no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e que terá, obviamente, que ser excluída da tipicidade do crime de traficante-consumidor. Parece-nos, contudo, também ser de ponderar acomodar o caso em que o agente, dependente do consumo de estupefacientes, usa o tráfico não só como meio de prover ao seu consumo mas, para tal, também de subsistir, de se manter vivo, de se alimentar e viver, pois que dificilmente se pode dizer que o agente poderá alimentar e saciar o seu vício se não se mantiver vivo. É por isso que tendemos a concordar que, implicitamente à consideração de que o tráfico deve visar, exclusivamente, o consumo de estupefacientes pelo agente, nessa finalidade poder-se-á compreender a satisfação das necessidades essenciais para a sobrevivência que esse agente, de outra forma, não poderia satisfazer. Não como um modo de vida, mas como um modo de sobrevivência. O indispensável mínimo sustento físico do agente deve ser tido em linha de conta sobretudo quando, na generalidade das situações, o agente toxicodependente, vivendo em situação social extremamente delicada, senão indigente ou miserável, em que a droga transformou todo o seu percurso de vida e tomou o lugar primeiro da razão da sua existência, tudo orbitando em seu turno, apenas nos atos de tráfico encontrará forma de lograr fazer face às suas necessidades mais básicas de subsistência, naquilo a que, aliás, já o Conselheiro Santos Cabral apelidou de “tráfico de sobrevivência”.

A defesa por uma interpretação hábil do preceituado no artigo 26.º, procurando acomodar o agente toxicodependente que usa o tráfico como meio de satisfazer as suas necessidades de consumo e, paralelamente, assim encontra forma de subsistir, poderia ser uma possibilidade.

31 Nesse sentido, essencialmente, veja-se os Acórdãos do STJ, de 13/09/2006 (Armindo Monteiro), de 20/12/2006 (Oliveira Mendes) e de 23/11/2011 (Santos Carvalho).

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2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

Contudo, reconhecemos que esta posição não encontra, na prática, respaldo ou correspondência mínima na letra do preceito. Ainda assim, entendemos que a finalidade de prover ao consumo não deveria ser a finalidade exclusiva do tráfico para efeitos da aplicabilidade do artigo 26.º, antes o seu mote essencial ou principal da conduta.