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artigo 26.º da Lei da Droga foi ponderada, tendo apenas sido aplicada numa (Caso 2).

II. Objetivos I Resumo

1. Evolução legislativa

O primeiro diploma legal relevante no universo das drogas foi o Decreto n.º 12210, de 24 de agosto de 1926, que tratava do comércio e importação de drogas, estabelecendo normas numa perspetiva puramente comercial e fiscal. O mesmo não tipificava qualquer conduta relacionada com o consumo como crime, antes prevendo transgressões fiscais e penas de multa e prisão para a negociação de drogas e outros produtos semelhantes, fora dos casos e dos pressupostos nela determinados5.

O posterior Decreto-Lei n.º 420/70 estabeleceu, no seu artigo 2.º, n.º 1, que: aquele que importe, exporte, compre, obtenha de qualquer modo, produza, prepare, cultive as plantas donde se possam extrair, prescreva, ministre, detenha, guarde, transporte, venda, exponha à 4 “A lei vale para todos os tempos históricos, mas em cada momento da forma como este a entende e desimplica, de acordo com a sua consciência jurídica”, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 182.

5 Manuel Guedes Valente, Consumo de drogas, Almedina, 7.ª Ed., 2019, p. 45.

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2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

venda ou de qualquer modo ofereça ou entregue ao consumo estupefacientes será condenado a prisão maior de dois a oito anos e multa de 10000$00 a 100000$00. Por seu turno, estabelecia o n.º 2 do aludido artigo 2.º que: se os atos previstos no número anterior se destinarem a uso pessoal do agente, ou a uso alheio, mas sem intenção lucrativa, quando se não destinem à prática de crimes sexuais, a pena será de prisão até dois anos e multa de 5000$00 a 50000$00.

Do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de dezembro que se lhe seguiu, o que importa reter é a redefinição do modelo proibicionista que operou. O legislador assumiu nesse diploma um combate mais cerrado ao tráfico, com o agravamento das penas e a previsão de novos meios de obtenção de prova, e criminalizou, sem ambiguidades, o consumo de droga ou estupefacientes6.

Em 1993 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que, nos termos do seu artigo 1.º tem por objeto “a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas” e que surgiu para dar guarida e expressão legal, no direito interno, à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, assinada e ratificada por Portugal através da Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e do Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de setembro de 1991.

O aludido diploma legal, o qual ainda hoje se encontra em vigor, exceto no que toca ao consumo de estupefacientes, constituiu abordagem diferenciada relativamente aos seus imediatos antecessores regime jurídicos, sobretudo ao ponderar e considerar o renovado conhecimento científico no que respeita às consequências nefastas do consumo de droga, e da sensibilidade da sociedade.

Numa caracterização sintética de que nos servimos, “o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, deixou intocado o modelo proibicionista do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de dezembro, agravando-o em certos aspetos, designadamente no que respeita ao consumo, que viu alargado o âmbito típico da norma que o criminalizava, uma vez que, anteriormente ao DECRETO-LEI n.º 15/93 apenas se contemplava a aquisição e posse para consumo e, doravante passou a contemplar-se o próprio consumo e o cultivo para consumo, assim como a pena foi agravada, no caso de a quantidade exceder cinco doses diárias, passando a um limite máximo de um ano de prisão por contraposição aos três meses que pela lei anterior se previa”7.

Alguns anos volvidos, o Conselho de Ministros do XX Governo Constitucional aprovou a resolução n.º 46/99 sobre a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga (ENLCD), e criou uma comissão, para liderar tal estratégia, à qual foi acometida a função de orientar as diversas políticas setoriais relativas à droga e à toxicodependência, e nortear os organismos da Administração Pública com competência na área.

6 Veja-se, a respeito, COSTA, Eduardo Maia, O Consumo de Estupefacientes: evolução e tensões no direito português, Revista Julgar, n.º 32, Almedina, 2017, p. 163.

7 COSTA, Eduardo Maia, O Consumo de Estupefacientes: evolução e tensões no direito português, Revista Julgar, n.º 32, Almedina, 2017, p. 164.

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2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

Pelo legislador, percebe-se, foi sentida a necessidade de rever o quadro legal relativo ao consumo de droga, surgindo a descriminalização do consumo e a sua proibição pela via da sua qualificação como ilícito de mera ordenação social no n.º 2 do Ponto 10 do Capítulo II do ENLCD – “Estratégia Nacional: Princípios, Objetivos Gerais e Opções Estratégicas”8.

Fruto da proposta constante do relatório final da aludida comissão de Estratégia Nacional de Combate à Droga, foram aprovados e entraram em vigor a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, e o Decreto-Lei n.º 130-A/2001, de 23 de abril, com os quais procedeu o legislador à descriminalização da aquisição, da detenção e da posse de estupefacientes e substâncias psicotrópicas para consumo, e à descriminalização do consumo provado de drogas.

A solução de descriminalização em sentido técnico9 era entendida pelo Prof. Faria Costa, em parecer apresentado ao CENCD, e cujo excerto que apresentamos conta, justamente, do texto final do relatório, como “a única alternativa à criminalização da detenção para consumo que pode ser considerada compatível com as convenções internacionais”, argumento que, pelo mais, excluía a possibilidade de se ponderar a aplicação do modelo de “mera ou aberta legalização do consumo”.

Tendo, por um lado, o papel ocupado por Portugal no seio de organizações internacionais e a circunstância de ser parte em convenções internacionais como a já referida Convenção das Nações Unidas contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, que, não obstante não imporem a criminalização do consumo, proíbem-no, excluindo, consequentemente, a sua legalização e, por outro, a convicção de que, no respeito pelo princípio humanista e pelos princípios fundamentais do nosso sistema jurídico, nomeadamente os da subsidiariedade, da ultima ratio do direito penal e da proporcionalidade (no qual se compreendem os subprincípios da necessidade, adequação e proibição do excesso), concluiu o legislador que a criminalização não se justificava por não ser o meio necessário, talvez nem sequer o adequado para enfrentar o problema do consumo de drogas e dos seus efeitos nefastos. Com efeito, concluiu-se, genericamente, que nem a defesa da saúde pública, a salvaguarda da segurança pública, ameaçada de forma meramente mediata pelo consumo de drogas, nem mesmo a proteção da saúde dos próprios consumidores teria de fazer-se através da criminalização do consumo. Foi, aliás, tido por assente que tais desideratos seriam alcançados através da criminalização e prossecução assertiva e firme do tráfico e da diminuição da acessibilidade a drogas, acompanhada da proibição administrativa e da tipificação do consumo enquanto ilícito de mera ordenação social. Tudo complementado pelo reforço das políticas públicas preventivas e de redução de danos associados ao consumo10. 8 A estratégia nacional de luta contra a droga, à luz dos seus princípios estruturantes e em conformidade com os

objetivos definidos, desenvolve-se a partir de 13 opções estratégicas fundamentais: (...) n.º 2 — Descriminalizar o consumo de drogas, proibindo-o como ilícito de mera ordenação social.

9 No dizer do Professor Figueiredo Dias, a descriminalização em sentido técnico e estrito consiste na “desqualificação de uma concuta enquanto crime, como redução formal da competência do sistema penal em relação a certas condutas”: Dias, Jorge de Figueiredo, “O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, Vol. I, p. 22.

10 Também nesse sentido: Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de mera ordenação social”, in Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, Vol. I, p. 14.

PUNIBILIDADE DO CONSUMIDOR-TRAFICANTE E DO TRAFICANTE-CONSUMIDOR DE ESTUPEFACIENTES

2. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

Rebus sic santibus, ou melhor, à luz das premissas elencadas, o legislador procedeu à descriminalização em sentido técnico ou estrito da conduta de consumir estupefacientes. Não despenalizou a conduta, mas descriminalizou-a. Reduziu formalmente a competência da intervenção penal quanto à conduta de consumir drogas.

À parte de saber se a opção legislativa conciliou, convenientemente, o conhecimento científico, o conhecimento empírico e o pensamento dos intervenientes sociais, com o debate sobre a essencialidade ou imprescindibilidade da intervenção do direito penal quanto a “condutas desviantes que provocam lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento de cada homem11” e sobre se o consumo, aquisição e

detenção para consumo constituem lesão insuportável das condições comunitárias essenciais

de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem12 enquanto

pressuposto para a intervenção penal, o legislador optou pela racionalização da intervenção do direito penal e pela opção de tratar parte da problemática do consumo por recurso ao direito de mera ordenação social, convicto de que este é capaz de, suficientemente, sancionar situações e condutas relativamente às quais uma percentagem suficientemente relevante da sociedade ainda encara como ofensiva da sua moral, costumes e dos seus direitos.