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CAPÍTULO 3 – A “REPETIÇÃO” COMO ESTRATÉGIA DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO

3.1 DOS DISCURSOS

3.1.1 A fundação mítica e legendária do colégio

3.1.1.2 A fixação do tópico discursivo

A imagem mítica e legendária do colégio jesuítico é projetada pela repetição das estruturas relativas com função de sujeito, que remete sempre a um local. Partindo do mais amplo estreita o foco para o colégio de S. Luiz (Itu, Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, a velha matriz, este edifício):

Ao receber, hontem, os primeiros bafejos da brisa YTUANA, [...] senti, maravilhado, uma impressão dulcíssima ao meditar sobre a missão que me trazia a ESTA LEGENDARIA TERRA. A nota alegre do casario branco,

[que se espalha pelo dôce acclive da cidade, o pittoresco das campinas

[que se extendem em derredor[...] essas torres magníficas

[que se levantam, veneráveis, [...]

[e que [..] apontam a vastidão do horizonte [que nos mostram [..] o azul infinito do céo

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LÁ, assentada elegantemente em um dos flancos da collina, A EGREJA DE NOSSA SENHORA DO PATROCINIO a guardar, amoravel, junto dos santos

[que habitam os seus altares, um bando innocente de creaturinhas tenras [...]

[que as mães confiam áquella casa de amor e religião A VELHA MATRIZ

[em cujas abóbadas já resoaram cantos de gerações antigas, [e em cuja nave se dobraram joelhos de personagens nobres varões eminentíssimos,

[que honraram sempre o nome glorioso da terra paulista; AQUI [...] ESTE GRANDE EDIFICO

[onde vivem estas crianças dedicados mestres,

[que são ministros de Deus primeiros bacharéis em letras

[que saem deste conceituado Gymnasio

[onde pompeiam os clarões da mesma crença, refulge intensamente a mesma fé,

[que é a auréola a circumdar de luz o grato renome do torrão ytuano.

A turma de diplomados

[que daqui parte, é gloria para o COLLEGIO S. LUIZ, e, ao mesmo tempo,

é honra para a CIDADE DE YTÚ. (PORCHAT)

A reiteração das orações relativas com função de sujeito emula as construções de tópico pendente típicas da oralidade, de forma a criar um cenário imagético, em que a mudança das três cenas apresentadas (a cidade, a igreja e o colégio) se faz pela inserção dos demonstrativos “lá” e “aqui”, que restauram e opõem diferentes tempos e espaços.

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A progressão temática do enunciado descritivo-narrativo se faz do mais geral para o mais particular, estreitando o foco no colégio de S. Luiz. Pontua-se a cidade legendária pelas inúmeras torres de igrejas e por ter reabilitado os jesuítas cuja presença se manifesta na edificação da Igreja Nossa Senhora do Patrocínio que, embora recente, se reveste de tradição ao se confundir com a matriz sob cujas abóbadas e em cuja nave antigas gerações de paulistas se ajoelharam, ou seja, se dobraram aos ensinamentos jesuíticos.

O gênero do discurso que entrecruza as modalidades oral e escrita, na medida em que é um texto escrito para ser lido, permite a leitura do elemento “aqui” como conectivo textual e como embreante54. O anafórico “aqui” do texto escrito reconecta a

“velha matriz” ao edifício do colégio ao mesmo tempo em que o suporte vocal do discurso permite a leitura de “aqui” como um dêitico. A junção das duas funções55 cria

programaticamente o efeito de presentificação da longa tradição jesuítica – de caráter matricial:

ITU o casario se espalha pelo aclive da cidade as campinas se estendem em derredor essas torres se levantam

________ apontam a vastidão

________mostram o infinito LÁ

A IGREJA santos habitam os seus altares

creaturinhas tenras as mães confiam áquella casa Varões honraram o nome da terra paulista

AQUI

54 “A embreagem é “o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, pela denegação, assim, da instância do enunciado” (FIORIN: 2005, 179). Embreante é uma palavra cujo sentido é extraído da enunciação: eu, aqui, hoje, etc.

55 Trata-se da aplicação da dêixis discursiva, por meio da qual “uma formação discursiva não enuncia a partir de um sujeito, de uma conjuntura histórica e de um espaço objetivamente determináveis do exterior, mas por atribuir-se a cena que sua enunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe para se legitimar” (MANGUENEAU, 1997:42).

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ESTE EDIFÍCIO mestres são ministros de Deus bacharéis saem do ginásio

a turma de diplomados é gloria para o colégio de S. Luiz

_______________ é honra para a cidade de Itu

Um paralelismo semântico é criado entre o subtópico “igreja” e o subtópico “edifício”. Aquela é lugar dos santos e acolhe as crianças; este abriga os mestres que são ministros de Deus e devolve ao mundo criaturas transformadas em bacharéis, glória para o colégio e honra para a cidade.

A exposição das ações jesuíticas e de suas finalidades é realizada pela repetição de estruturas relativas com função de sujeito seguidas do encaixamento de orações adverbiais finais, ritmada como um ofício religioso:

...que melhor sitio do que este recanto adorável,

[onde se congregam esses homens bons e sábios [que deixaram os lares paternos

[para se consagrarem ao ensino da mocidade [que se partem das alegrias de suas cidades,

[para levarem ... os fructos da civilisação [que, abnegados, se internam pelas florestas

[onde vão domar o homem selvagem

[que enleiam vencedores e vencidos no laço de uma pura fraternidade [prendendo-os, uns aos outros, como

[irmãos nas ideas, [irmãos no sentimento, [irmãos na fé;

[que ... desprendem-se dos gosos ephemeros da vida

e se encadeiam nas regras rijas de uma disciplina severa [para poderem ... cumprir os deveres de servos de Jesus Nessa admirável Companhia

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[que explodem em apodos e vilipêndios,

mas de outro lado recebendo os applausos da humanidade, [que se desatam em bençams e glorificações Como essas

[que florescem entre os efluvios da gratidão paulista

[que vê desenhar-se... a figura sympahica do padre jesuíta, na personagem excelsa de José de Anchieta, portadora de paz e tranquilidade aos incolas da terra querida. (PORCHAT)

No enfileiramento de estruturas relativas e adverbiais, o lugar se confunde com a finalidade (“que, abnegados, se internam pelas florestas onde vão domar o homem selvagem”) e as ações são marcadas pela reflexividade expressa por meio do pronome “se”, desencadeada pela revelação. Os jesuítas deixam a casa paterna para “se consagrarem ao ensino”. Eles “se partem das alegrias de suas cidades”, “se internam pelas florestas”, “desprendem-se dos gosos ephemeros da vida”, “se encadeiram nas regras rijas”. Pela sujeição e submissão, enlaçam-se os irmãos, a Companhia se expande e, como em “uma cadeia dominó”, os aplausos se desatam em bênçãos e glorificações. O resultado final é a gratidão dos paulistas que veem nas ações jesuíticas a continuidade da ação primeira, a do padre Anchieta, alçado a pacificador dos índios e, por tabela, a agente da civilização. Nesse sentido, todas as ações jesuíticas são reflexivas da ação da graça divina intermediada por Anchieta56.

A sacralização de Anchieta faz parte da estratégia de resgate do “espírito religioso” dissolvido pelo poder temporal e que, por direito divino, deveria ser atribuído à Igreja. A operação de reabilitação57 de Anchieta como apóstolo do Novo Mundo que havia

sido realizada pelos românticos é reinterpretada na chave de leitura positivista que privilegia o emprego do método científico. Por esse viés, o documento ganha o estatuto

56 Pela palavra de Porchat, os professores do colégio jesuíta refazem o percurso missionário de Loyola e de Anchieta. 57 No final do século XIX, no bojo da construção de um passado mítico e heroico, a igreja resgatou a figura de Anchieta como elemento de valorização do passado colonial para a reabilitação da imagem da Companhia de Jesus, manchada pelo processo de expulsão pombalina.

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de “objetivo, inócuo e primário58” e se transforma no “fundamento do fato histórico”, faz

do jesuíta anchietano que escrevia poesia na areia a figura mítica e heroica da colonização, por ter colocado os indígenas no desvelo da civilização europeia, ou melhor, do Império cristão. Nesse sentido, o papel de Anchieta e, por extensão da Companhia de Jesus, ia ao encontro do programa civilizatório do Brasil endossado pelos republicanos. Patenteando o caboclo paulista, resultado da mistura do índio e do português apenas, a Companhia assume o mérito da fusão das raças, da unificação do território nacional e da definição da identidade nacional (VILAR, 1999).

O conjunto de relativas restritivas que compreende o primeiro bloco do excerto é uma estratégia retórica que visa a fechar a lente sobre o referente “homens bons e sábios”, elevá-lo a um pedestal para dar-lhe tratamento apologético que vem na forma de oração adverbial final. Há o entrelaçamento entre enunciados descritivo-narrativos que referem a congregação dos homens bons e enunciados prescritivos que fornecem uma orientação doutrinária para a leitura do quadro descrito. No segundo bloco, às orações relativas restritivas seguem as relativas explicativas. Essa sequência promove o efeito retórico de estreitar o foco sobre um referente, fornecer-lhe uma interpretação analógica por meio da estrutura apositiva e congelar a imagem para a construção da memória dos eventos59.