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O jesuíta como preparador: a prevenção dos perigos

CAPÍTULO 3 – A “REPETIÇÃO” COMO ESTRATÉGIA DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO

3.1 DOS DISCURSOS

3.1.4. A idealização do jesuíta como libertador

3.1.4.2 O jesuíta como preparador: a prevenção dos perigos

O alerta aos perigos se faz pela oposição entre as abóbadas do colégio jesuítico e outras abóbadas, marcada pelo locativo “onde”, com o qual se contrapõe a condução do mestre e o guiar dos santos à ausência de santos e imagens, à falta de fiscalização e proteção, ambiente propício para se deixar arrebatar pelas “seducções da liberdade”. A troca dos mestres pelos novos companheiros de estudo e pela “orgia das ideas” contidas nos livros “seductores” de Schopenhauer, Hartmann e Nietzsche põe em ruína a moral, a religião e a ciência, bases que sustentam a Ordem jesuítica. Tais ideias são colocadas pela repetição do locativo “onde”, de estruturas oracionais e do marcador temporal “depois” que enquadra a ruína das bases jesuíticas:

ONDE faltam santos e imagens faltam tradições → Liberdade ONDE faltam fiscalização e

proteção

faltam ensinamentos puros → Orgia das ideias

ENTÃO pessimismo DEPOIS desespero →DEPOIS

alucinações

(FIM) da moral da religião → da ciência

De sob ESTAS ABOBADAS,

[onde viestes sempre conduzidos pela mão do mestre,

[e guiados pelo olhar, sereno e meigo, desses sanctos, [que adornam as paredes dessa casa [...] – ides para debaixo de OUTRAS ABOBADAS,

[onde não vereis os perfis eloquentes dos sanctos e das imagens, [onde tereis de marchar livres desta fiscalisação continua e protectora,

[e onde o vosso espirito, fascinado pelas seducções da liberdade, vai expandir-se contente sobre as maravilhosas conquistas da sciencia.

Mas ahi, meus caros amigos, ao lado das magníficas opulências, é que os abysmos atrahentes se enfloram, pompeando irresistíveis, para arrebatar as almas dos jovens na voragem terrível de suas profundezas.

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Não faltarão companheiros de estudo, nem livros seductores, que vos incitem [a fugir das tradições da escola em que criastes,

[a deixar os ensinamentos puros recebidos no sanctuario da família,

[e entrar nesse mundo onde reina a orgia das idéas, e onde se entra com a cerimônia vaidosa da incineração de todas as crenças puras. [...]

E ao envez daquella philosophia que lhes alentava a vida, conduzindo os seus pensamentos para a comprehensão da superioridade do destino do homem, entra-lhes pelo cérebro um oceano de idéas negras, que o fazem sossobrar num doloroso scepticismo.

EIS, ENTÃO, dominando-os, o pessimismo frio de Shopenhauer [ ...] . DEPOIS, é o desespero assustador de Hartmann [...].

DEPOIS, são as allucinações extravagantes de Frederico Nietzsche, que combatendo a moral,

combatendo a religião, combatendo a sciencia,

[pretende crear uma humanidade livre, entregue exclusivamente à sua natureza [...] Essas theorias, [que satisfazem a vaidade balofa de certos pensadores,

[empolgam traiçoeiramente o espírito dos moços,

[e ahi exercem a sua acção funesta como o mais mortífero dos venenos. É contra esse perigo, jovens bacharéis, que é meu dever premunir-vos. (PORCHAT)

A ideia de que a sabedoria provoca desarranjos é recuperada da Bíblia (1 Coríntios, 1.18 a 31) em que se afirma que “Deus tem mostrado que a sabedoria deste mundo é loucura”. É a partir desse viés que se lê o pessimismo de Shopenhauer, o desespero de Hartmann e as alucinações de Nietzsche, incapazes de conhecer as verdades espirituais porque não são espirituais, não receberam a Graça divina. Por sua vez, a Ordem que fomenta a veneração dos santos, opera a fiscalização contínua e protetora, integra um “corpo místico unificado na vontade de integração de seus membros” (HANSEN, 1995:111), se aliena do poder e se subordina livremente à pessoa sagrada que representa a soberania popular, visando ao “bem comum”.

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Frente aos perigos elencados fora dos círculos jesuíticos, os bacharéis formados pelo colégio da Companhia são felizardos por terem recebido a mensagem profética, tendo sido orientados e educados na cartilha do Catolicismo, por meio da qual se aprende a ciência imantada pela fé e pela religião, e se forma o caráter blindado dentro dos moldes da moral que perfila os santos e os heróis:

FELIZES DE VÓS, SRS. BACHAREIS, QUE – rectamente orientados na comprehensão da vida e no evoluir dos acontecimentos –

[não conhecereis jamais as oscillações da fraqueza, [que pede um arrimo, e nem as agonias da duvida,

[que reclama um norte. FELIZES DE VÓS, SRS. BACHAREIS, QUE

– educados nas licções indefectíveis do Catholicismo –

[aprendestes a sciencia ao clarão da Fé;

[desenvolvestes o vosso entendimento ao cálido conchego da Religião,

[e informastes o vosso caracter nos moldes severos e puríssimos daquella Moral eterna e immutavel,

[que canoniza os santos, sagra os heroes e gera os super- homens.

FELIZES DE VÓS, SRS. BACHAREIS, QUE ao deixardes este Collegio,

[levareis comvosco um patrimônio de convicções e de princípios, [que vos permittirá arrostardes, imperterritos e incólumes, as agruras e as provações do longo e escabroso jornadear. (A. ARANTES)

O bloco de relativas acima apresenta ambiguidade estrutural e interpretativa, quase a desenvolver “técnicas acrobáticas da sintaxe” (ZUMTHOR, 1993:187),

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dependendo da escolha do núcleo do antecedente do pronome relativo, “bachareis” ou “vós”.

A relativa restritiva reduzida ou fundida na oração adverbial causal/temporal toma por antecedente “bacharéis” sobre os quais se predica:

Bacharéis [que se orientam retamente ] não conhecerão oscilações Bacharéis [que se educaram no catolicismo ] aprenderam a ciência pela fé Bacharéis [que deixam este Colégio ] levam um patrimônio de convicções

= restritiva//causal/temporal = principal

Essa distribuição sintática leva a duas interpretações a respeito dos bacharéis do Colégio jesuítico: 1. Só os que se orientam retamente não conhecerão oscilações; 2. Por que se orientam retamente não conhecerão oscilações. A primeira dá conta da constatação por ocasião da formatura e a segunda procura persuadir os que estão fora do colégio a integrarem a instituição jesuítica.

A relativa restritiva desenvolvida toma por antecedente o pronome “vós” (aqueles que não conhecem oscilações) ao mesmo tempo em que pode ser interpretada como uma coordenada explicativa por meio da qual se procura dar razões para o estado de felicidade (Sois felizes pois não conhecereis oscilações):

Felizes de vós [que não conhecereis oscilações Felizes de vós [que aprendestes a ciência pela fé

Felizes de vós [que levareis um patrimônio de convicções = restritiva/coordenada explicativa

Uma leitura performativa do enunciado “Felizes de vós, bachareis”, no contexto situacional de formatura em que foi proferido o discurso, autoriza a leitura do ato de parabenizar o bacharel por ter se preparado para não conhecer oscilações. Orientados

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e educados no colégio jesuítico, os alunos não serão presas de abatimento moral porque levam consigo um cabedal de convicções e de princípios da Religião que, emulando o convite para a ceia do Senhor, os conecta com a luz difusa da Graça. Com efeito, a repetição do enunciado “Felizes de vós, srs. Bacharéis” parodia a tradição litúrgica da Celebração da Palavra de Deus: “Eis o mistério da fé. Felizes os convidados à ceia do Senhor. Quem come da minha Carne e bebe do meu Sangue permanece em mim e eu nele. Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. A emulação da tradição litúrgica da Celebração da Palavra de Deus reforça no imaginário dos bacharéis o pacto de sujeição e o compromisso com a palavra de Deus.