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CAPÍTULO 3 – A “REPETIÇÃO” COMO ESTRATÉGIA DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO

3.2. DOS PANEGÍRICOS

3.2.3 A educação

Por meio da figura do santo, as pregações dão exemplo e testemunho aos jovens alunos. Para louvar o santo e tomá-lo como exemplo, os oradores estabelecem uma série de construções de oposição entre virtude e vício, temência a Deus e pecado, glória e lutas. Esse efeito de sentido é conseguido na disposição reiterativa e gradativa de um item lexical: homens > homens grandes > homens uteis á sociedade. A repetição do termo “homens”, acrescido do modificador restritivo “grandes” e do modificador apositivo “uteis á sociedade” cria o efeito de isolar o termo e congelá-lo na memória, para marcar a dimensão social da Companhia de Jesus:

“Não, os exemplos de Luiz Gonzaga não são antiquados; antes hoje mais que nunca devem ser gravados nos corações d’aquelles, que, desejamos, cheguem um dia a ser

verdadeiramente HOMENS, HOMENS grandes,

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[porque esses exemplos são diametralmente opostos á corrupção moderna,

[que dos homens faz pouco menos que brutos, e á suberba insensata que soffrega de liberdade quebra os diques da subordinação para se atirar nos braços da libertinagem e da licenciosidade”. (Pe. FIALHO)

O discurso é voltado para negar à figura jesuíta a representação do velho, do sisudo e do ultrapassado elaborada pelos revolucionários e sintetizada pela imagem do hábito negro por Stendhal, os quais associavam a Companhia de Jesus ao Antigo Regime. A dissociação da imagem negativa é realizada pelo alinhamento dos jesuítas ao projeto civilizatório que estava em marcha e que encontrava ressonância na dimensão social da Companhia de Jesus. Na chave de leitura jesuítica, esse programa civilizatório visava a aperfeiçoar o ser humano segundo os preceitos religiosos. Rejeitando a distinção entre sociedade civil e sociedade religiosa, toma-se como pressuposto que a “educação livre” desestrutura os homens, os quais implodem pela ausência de uma canga – cristandade –, como sugere a enfiada de substantivos abstratos e de adjetivos aparentemente desconectados sintaticamente, evocando, por meio da voz e do gesto amplificadores, a fragmentação dos homens e a desordem, que procuramos capturar pela distribuição gráfica:

Ah! Desterrai da educação scientifica da mocidade os princípios religiosos sob pretexto de não vos impor á liberdade de vossos filhos na escolha da religião [...] e vel-os-eis copiar fielmente o quadro assustador [...] daquelles homens

identificados com a impiedade, malícia, devassidão, avareza e torpeza, repassados de inveja, de ambição,

140 de perversidade, de fraudes e de vinganças, alcoviteiros, alumniadores,

exosos a Deus e aos homens, porque blasphemos, altivos, suberbos, machinadores de delictos, estolidos, desamorados,

incapazes de qualquer sentimento de piedade,

de lealdade e até mesmo de humanidade.

E esse é, senhores, o paradeiro fatal, a que vão tombar os homens crescidos sem a Idea de religião e de Deus [...] Mas como pode assentar em um homem intelligente e livre a Idea do dever sem antes se convencer da subjeição natural a um ente a si superior? (Padre FIALHO)

A avalanche de substantivos e adjetivos, acompanhada da gestualidade do orador, tem por efeito, no imaginário da recepção pública, a criação de uma figura deformada e desprezível daqueles que não são regidos pelos princípios religiosos. Os cacos recolhidos só ganham forma com a obediência a um ser superior. A sujeição a um ser superior é uma forma de se lançar fora de si como requisito para a união com Cristo, o que configura o sacramento da ordem.

Na chave de leitura do contexto sócio-histórico em que o discurso foi produzido e proferido, a crítica à desordem se dirige às investidas republicanas no ensino laico – “esse verme roedor do ensino leigo e radicalmente atheu” (Arcipreste FONTOURA) – indiciada na repetição de sintagmas preposicionados que marcam a disseminação desse

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tipo de educação. O mal à humanidade deriva do laicismo que está nas teorias do racionalismo que colocaram no mercado folhetins, brochuras, espetáculos, livros, romances realistas e naturalistas, e artes liberais:

Mas que dique póde levantar contra o diluvio universal da volúpia e da podridão, [que alaga o mundo hodierno soçobrado

por folhetins e brochuras inspiradas na pornographia mais hedionda, por espectaculos e festins moldados pela impudência mais asquerosa,

por livros dictados em uma litteratura forjada no realismo, naturalismo e sensualismo, a retractar com a desfaçatez mais sem nome o carnalismo mais desbragado,

pelas artes liberaes paganizadas a endeusar em solemnes apotheoses o vicio e o crime?

[...]

Nas escholas, nas academias, nas universidades,

são attrahidos os erros os mais abominaveis, os systemas os mais perniciosos, as doutrinas as mais subversivas, e subversivas á própria dignidade humana. [...]

_ À vista do que, eu vos pergunto, senhores, julgais vós por ventura que a mocidade moderna, só porque allumiada pelas theorias perniciosas do racionalismo e do livre exame esboroados já nos systemas positivista, materialista e evolucionista subversivos da dignidade humana, é a que há de desmentir a palavra inspirada do escriptor dos Proverbios: “Adolescens juxta viam suam etiam cum senuerit non recedet ab ea”?(Padre FIALHO)

É na brecha da lei que os jesuítas vão encontrar autorização para a entrada em campo dos “soldados de Cristo” que se dedicam a reconquistar o território espiritual: “A

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Constituição da nossa extremecida patria, garante-nos ampla liberdade de ensino primario, secundario e superior”(Arcipreste FONTOURA).

A liberdade de ensino garantida pela Constituição Republicana é o espaço necessário para que a voz autorizada dos pontífices possa continuamente – aspecto verbal marcado pela preposição diante do infinitivo – dar prosseguimento às ações jesuíticas na guerra do bem contra o mal:

Eis o porque do levantarem tão amiúde a voz auctorizada os Pontifices Romanos; postos por Deus como atalaias da verdade e do bem entre os homens,

A ATEAR sempre mais o zelo dos pastores ecclesiasticos, A UNIR as forças do clero em associações de educação, A DESPERTAR nos fieis a Idea do próprio dever,

A ABALAR a inércia,

A ALENTAR a operosidade, A COROÇAR a dedicação,

A FECUNDAR os sacrifícios pelo bem da mocidade;

e eis também o porque do verdes sempre e por toda a parte as phalanges aguerridas dos escolhidos do Senhor

A BATALHAR com denodo na guerra do bem contra o mal,

Affanarem-se por educar religiosamente a mocidade. (Padre FIALHO)

No âmbito da metáfora bélica, o patrono do colégio – Luiz de Gonzaga é o soldado de Cristo que se coloca em campo não apenas como aquele que resiste arduamente, mas como aquele que avança, desbarata o inimigo conquistando-o espiritualmente. A formação jesuítica, completa que é, pode fazer do jovem o militar espiritual, na figura do soldado de Cristo cujos instrumentos de luta são de outra ordem: espada da verdade, escudo da fé e elmo da esperança, instrumentos que constituem a armadura completa

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de caridade. Parodia-se a epístola do Apóstolo Paulo aos Efésios69: “Portanto, tomai toda

a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes.”

Rodeado Luiz, como os mais homens, de tantos inimigos [...],

EMPUNHA (consoante o aviso do Apostolo) a espada da verdade, SOBRAÇA o escudo da fé,

COBRE-SE do elmo da esperança, REVESTE o arnez da charidade, e assim armado

não só RESISTE aos amiudados assaltos da hoste infernal, mas a INVESTE elle o primeiro,

mas a LEVA DE VENCIDA, mas a RENDE,

mas a DESBARATA em modo tão cabal, que (cousa muito para admirar em um jovem de character ardente, de temperamento sanguíneo, e criado entre as delicias das côrtes) que sequer o mais leve phantasma não lhe perturba a imaginação... (Padre FIALHO)

A sequência de verbos flexionados que tem como sujeito sintático e sujeito lógico Luiz de Gonzaga explicita o agente a ser tomado como exemplo: “E por mim; para que me seja dada, no abrir da minha boca, a palavra com confiança, para fazer notório o mistério da fé” (Efésios, 6:19). A “palavra com confiança” é aquela que se expressa pelo Verbo, elemento que predica as ações do pontífice e do santo Luiz de Gonzaga. Em

69 “Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes. Estais, pois, firmes, cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da justiça. Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz; embaraçando sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do Maligno. Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus.” (Efésios, 6:13- 17)

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outras palavras, a reiteração de predicados verbais reforça a proclamação da mensagem divina: o Verbo.

Ao atribuir ao santo valor pedagógico, explora-se o perfil resiliente às investidas dos propugnadores do ceticismo. Nesse sentido, a figura do santo é usada tanto para acentuar uma distinção – moços iludidos – por meio da crítica à educação laica responsável pelos perigos que desviam os moços da virtuosidade e pela falsa representação do jesuíta como antiquado e ultrapassado, quanto para instaurar a imagem realista do jovem mesmamente daqueles presentes no auditório.