• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – A “REPETIÇÃO” COMO ESTRATÉGIA DA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO

3.1 DOS DISCURSOS

3.1.2 A expulsão e o retorno dos jesuítas

3.1.2.2 Da derrota à superação

A expulsão dos jesuítas é capturada pela reprodução de segmentos textuais na forma de construções suboracionais. A listagem de particípios e de adjetivos cria a sucessão de sentenças a que estiveram sujeitos os jesuítas a partir do alvará de 1759. A reiterada marcação da exclamação avoluma a desarticulação dos trabalhos jesuíticos também avolumados pela repetição da intensificação.

As listas de particípios, adjetivos, exclamações e intensificações, por elidirem o suporte, colocam sob os holofotes a ruína da edificação jesuítica e imprimem um ritmo veloz da sentença de expulsão dos jesuítas que não foram submetidos aos trâmites processuais de um julgamento:

E no alvará de 3 de setembro de 1759 bem se especificavam as notas pelas quaes eram declaradas proscriptos os padres da Companhia,

exterminados outrosim, desnaturalizados

e expulsos de Portugal e seus dominios, como rebeldes,

traidores, aggressores

109 e adversos á pessoa e ao governo real. O povo, esse não tomava partido pelos proscriptos,

e antes prestava aos oppressores todo o concurso da boçal indifferença:

estava bestializado, como da attitude popular em outro succceso opinou conhecido demagogo. [...]

QUE derrota, QUE descalabro,

QUE desmoronamento geral!

Tudo por terra, de quanto pacientes haviam levantado em mais de dois seculos de indefesso labor!

A obra colosssal da catechese, TÃO ampla,

TÃO heroica,

TÃO esperançosa, como jámais se planeára em qualquer parte do mundo, - elles a deixavam em meio, e sem condignos successores a quem puderam entregal-a. (LAET)

O orador se apropria da expressão “bestializado”, de Aristides Lobo que, em Carta ao Diário Popular de São Paulo, usou a expressão para descrever a deposição do monarca e a recepção do evento militarizado da proclamação da República, interpretado erroneamente como parada militar61. O desconhecimento e a surpresa da ordem bem

como o ritmo acelerado da sua execução deixam atônito o povo que assiste à debandada dos jesuítas sem nada compreender.

No discurso de Laet, a “desnaturalização” dos jesuítas assume dramatização em proporção maior do que aquela atribuída à deposição do monarca, pois ao serem “des- naturalizados”, subtraem-lhes a identificação, no sentido de que se colocavam como “os

61 Citada por Leôncio Basbaum, em História Sincera da República, de 1889 a 1930 (São Paulo, Fulgor, 1968:18), é recuperada por José Murilo de Carvalho em Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

110

naturais da terra”, os “estabelecidos” (ELIAS, 2000[1965]) . Uma vez desnaturalizados, pelo viés do direito natural, os jesuítas era arrancados de si mesmos.

O retorno dos jesuítas é marcado pela repetição da frase “elle voltou”, em que a ordem é quase o próprio Cristo que, injustiçado e incompreendido, um dia voltará. A volta é garantida “com a mansa e irresistível porfia de um mar”, figura construída para apontar aquilo que é uma evidência, uma obviedade, segundo a narrativa bíblica. A ideia do retorno é sustentada pela reiteração do verbo “voltou”, seguido do complemento locativo que, por trazer informação nova, expressa a conquista de diferentes espaços que edificam o “corpo místico”: a catequese, o púlpito, o confessionário e a cátedra.

Ora, O JESUITA, em sua multipla e fecunda actividade, fizera-se o conductor das almas, o grande censor de erros publicos, o mais influente patrono das fraquezas opprimidas. Evidentemente não era possivel supportal-o!

Aniquilaram-no, effectivamente, mas ELLE VOLTOU,

com a mansa e irresistivel porfia de um mar, que na vasante affirma seus direitos á plaga, e em breve a reoccupa.

VOLTOU á catechese, VOLTOU ao pulpito,

VOLTOU ao confessionario, VOLTOU á cathedra docente.

Na educação da mocidade em paiz que – ainda mal! – inscreve na sua constituição o indifferentismo religioso, o Jesuita apparece nas primeiras linhas dos educadores, e com os mais fundados titulos reclama o seu posto de honra para affeiçoar a mentalidade brasileira.

Um por um se desfazem os preconceitos e as abusões concernentes ao jesuitismo - nome que só por si levava calafrios á medulla dos papalvos embahidos pela má fé pombalesca.

DA pureza doutrinal,

DA severidade de costumes,

DO acendrado civismo que se professam e aprendem nos collegios da Ordem, dão testemunho eloquente os milhares de alumnos

[QUE nelles estudam, [QUE nelles se formam e

111

[QUE depõem unanimes em prol de seus mestres, varões eximios nas humanas como nas sagradas letras,

[e QUE á razão nenhum dos privilegios retiram que legitimos lhe conferiu o Creador. (LAET)

A listagem de substantivos abstratos dos sintagmas preposicionados (“da pureza doutrinal”, “da severidade de costumes” e “do acendrado civismo”) enquadra os parâmetros dos colégios jesuíticos. A justaposição de orações relativas com função de sujeito reconstrói o labor no colégio de cuja pureza doutrinal/severidade de costumes e civismo de que os alunos são testemunhas. Opõe-se a recepção do povo que assiste abestalhada à desarticulação e à expulsão da Ordem, estabelecida pelo alvará de 1759, à recepção dos alunos que são testemunhas da organização e da consistência da atuação jesuítica por estudarem e se formarem na instituição. Enquadram-se dois tempos, distantes historicamente, em um único plano, de certo modo entrelaçando memória e laço social (ZUMTHOR, 1993:139-141).

O orador coloca o auditório no lugar daquele cujos preconceitos já foram desfeitos para teatralizar, pela palavra, o modelo jesuíta de educação em um tempo presente mas que também pode ser omnitemporal (conferido pelo Criador). Por esse viés, o aluno ao qual se dirige pode ser aquele do século XIX como também aquele do século XVI. É como se o testemunho pudesse ser da vista, vivência e da memória, numa tentativa de instauração da “mimesis de uma presença” (ZUMTHOR, 1993) testemunhal.

Os alunos são testemunhas não por serem espectadores, mas por participarem da consolidação da Ordem, por meio da alegoria da renovação da experiência e da tradição jesuítica. Nessa prova testemunhal, os alunos que estudam e se formam no colégio da Companhia lhe fornecem elementos para uma narrativa histórica. Ao mesmo tempo em que autenticam a narrativa, autorizam a sua consagração dentro da chave de

112

leitura que lhe é própria, “como se o acontecimento histórico fosse a metáfora da realidade mítica62” (SAHLINS, 1990:25). O resultado é a ratificação do discurso jesuítico.