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2. Johann Joachim Quantz: Biografia

2.1. A flauta de Quantz

São muitas as inovações e transformações realizadas por Quantz na

flauta transversal. Podemos ressaltar, por exemplo, a preocupação com a afinação e

sonoridade do instrumento. Porém, antes de aprofundarmos mais sobre tais

inovações

e

transformações,

discorreremos

brevemente

sobre

algumas

características da flauta dos séculos XVI, XVII e XVIII.

De acordo com Laura Rónai (2008, p. 60), a típica flauta transversal do

século XVI consistia de um tubo inteiro com seis orifícios cilíndricos, sendo que os

mesmos eram mais ou menos alinhados com a embocadura. Com a tessitura que

apresentava aproximadamente duas oitavas, esta flauta era caracterizada também

por possuir três tamanhos diferentes afinados em quintas. Por exemplo: contralto em

Lá, tenor em Ré e baixo em Sol (Figuras 2 e 3). Rónai afirma:

[...] Geralmente eram usadas em consorts30 e tinham um som

razoavelmente forte, porém pouca flexibilidade tímbrica. Até o século XVII, este instrumento não tinha função precípua de solista, e era de muito suplantado pela flauta doce, que possuía som mais penetrante, permitia maior agilidade digital e afinação mais precisa. No século seguinte esta situação acabou por se inverter, e a flauta doce foi relegada a uma aposentadoria precoce. (RÓNAI, 2008, p. 60).

29

Other sources, notably Frederick the Great (1712-86) and his sister Wilhelmine (1709-58), the Margravine of Bayreuth, confirm Quantz's continuing activity as a manufacturer and seller of flutes, and his responsibility for the quality of his instruments.

30

Grupos instrumentais que incluíam famílias de um mesmo instrumento, sendo o mais comum o

Figura 2: Consort de Flautas

Fonte: RÓNAI, 2008, p. 60

Figura 3: Consort de Flautas

Em 1707, o grande flautista e compositor Jacques Martin Hotteterre

(1680-1760) publica o seu tratado Principes de la flûte traversière, de la flûte a bec et

du hautbois

31

. Tal método foi o primeiro a abordar (de maneira sistemática) a flauta

transversal desenvolvida pela família Hotteterre

32

. Esta flauta era dividida em três

partes: cabeça cilíndrica (embocadura em forma de círculo); corpo cônico; pé com a

chave de Ré#. Além disso, a tessitura compreendia duas oitavas (D1 ao D3) (ver

Figura 4). Vale ressaltar que os primeiros grandes fabricantes de flautas do Barroco

foram membros da família supracitada e as modificações introduzidas no

instrumento aumentaram a popularidade da flauta na França (qualidade nas

composições).

Figura 4: Flautas com a chave de Ré#

Fonte: ARAÚJO, 1999, p. 5

31

[...]. Seu livro oferecia tabelas de dedilhado, e conselhos sobre embocadura, articulação e ornamentação. (RÓNAI, 2008, p. 61).

32

Sávio Araújo (1999, p. 4) afirma que Jean Hotteterre (1648-1732) provavelmente foi o responsável pela adição da primeira chave na flauta (Ré#) por volta de 1660. Adicionalmente, Quantz no seu tratado, Capítulo I, tópico 4, admite o acréscimo da primeira chave na flauta pelos franceses.

A flauta com a chave de Ré# era frequentemente referida como flauta

alemã (SCHAEFLE, 1989, p. 13). Johann Joachim Quantz nos apresenta esta flauta

em seu Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen, Capítulo I, tópico

2:

Não há dúvida de que, no norte, foram os alemães que estabeleceram, ou pelo menos renovaram completamente, os primeiros princípios da flauta assim como de vários outros instrumentos de vento. Os ingleses chamam este instrumento “the German Flute”, os franceses igualmente o chamam “la Flüte allemande” (ver Principes de la Flúte traversiére, ou de la Flüte

allemande par Monsieur Hotteterre, Le Romain). (MURILLO, ed., Spanish

Translation of Johann Joachim Quantz’s Essai D’une Méthode pour

apprendre a jouer de la Flüte Traversière, 1997, p. 25, tradução nossa)33.

Adicionalmente, no tópico 6, Quantz afirma que o primeiro músico a se

destacar com a flauta de uma chave na França foi o flautista Philibert Rebeille.

Depois seguiram outros como Michel de la Barre, Jacques Hotteterre, Pierre Gabriel

Buffardin e Michel Blavet. Rónai (2008, p. 62) problematiza o fato de que, apesar da

flauta transversal ser denominada muitas vezes flauta alemã, foi a França quem

liderou o cenário musical europeu entre os anos 1680-1730: a maioria dos

fabricantes de instrumentos de sopro no período eram franceses e as inúmeras

composições para flauta comprovam o sucesso que faziam os instrumentos

fabricados na França.

No decorrer do século XVIII, a flauta transversal foi ganhando destaque

entre os instrumentos de sopro e a sua utilização em concertos se popularizou por

outros países da Europa, além da França e Alemanha. Podemos destacar algumas

transformações técnicas ocorridas no período: “O instrumento passou a ser dividido

em quatro partes, a embocadura se ovalou gradualmente, o som se tornou menos

escuro e mais penetrante” (RÓNAI, 2008, p. 62). No ano de 1720, foi desenvolvida

uma técnica de construção do instrumento denominada Corps de Réchange (Figuras

5 e 6). De acordo com Sávio Araújo:

33

Pero no hay duda que, en el norte, fueron los alemanes los que establecieron, o por lo menos renovaron completamente, los primeros principios de la flauta así como los de varios instrumentos de viento. Los ingleses le llaman a este instrumento "the Germán Flute", los franceses igualmente le llaman "la Flüte allemande" (ver Principes de la Flúte traversiére, ou de la Flüte allemande par Monsieur Hotteterre, Le Romain). Original em alemão no Anexo IV.

Este sistema envolvia a divisão da flauta em quatro partes, onde a parte central, ou o corpo, era dividido em dois. A parte intercambiável era a porção superior do corpo - mão esquerda - e, dependendo do instrumento, havia três ou até seis tamanhos diferentes. O mais comum eram três partes intercambiáveis, sendo a mais curta um semitom mais agudo do que a normal e, consequentemente, a mais longa um semitom mais grave. (ARAÚJO, 1999, p. 6).

Quantz aponta em seu tratado esta flauta com corpos de troca. Conforme

o compositor no Capítulo 1, tópico 9, as flautas foram divididas em 4 partes para

facilitar o seu transporte e permitir a adaptação das afinações que eram diferentes

em cada país ou cidade

34

.

Figura 5: Corps de Réchange

Fonte: BONNEMA, 2015

34

Em aulas com a professora especialista em flauta barroca Livia Lanfranchi, conversamos sobre estas afinações. De acordo com ela, elas variavam entre 390 e 460.

Figura 6: Corps de Réchange

Fonte: BONNEMA, 2015

Em 1726, Quantz acrescenta a segunda chave na flauta transversal.

Segundo o compositor em seu tratado, Capítulo I, tópico 8, a introdução de outra

chave no instrumento melhoraria a afinação de certas notas. Complementa no

Capítulo III, tópico 8, o motivo pelo qual opta por este acréscimo: as diferenças

existentes entre semitons maiores e menores.

Para o autor, quando uma nota, que está no mesmo espaço ou linha que

outra, é alterada por um sustenido ou bemol, a diferença entre ela e a nota principal

é de um semitom menor. Por exemplo: Ré - Ré#; Mi - Mib. Por outro lado, o semitom

maior ocorre entre notas que estão em posições diferentes no pentagrama (a um

grau de distância), sendo que uma delas é alterada meio tom por um sustenido ou

bemol. Por exemplo: Ré – Mib; Ré# - Mi. Seguindo esta lógica, Quantz destaca no

Capítulo III, tópico 8, que existem diferenças de afinação entre as notas Ré# e Mib:

O semitom maior tem cinco comas; o semitom menor só tem quatro.

Consequentemente, o Mi bemol é um coma mais alto que o Ré sustenido.

Figura 7: Semitons

Fonte: MURILLO, ed., Spanish Translation of Johann Joachim Quantz’s Essai D’une Méthode

pour apprendre a jouer de la Flüte Traversière, 1997, p. 48

A ideia da segunda chave não resolvia totalmente os problemas de

afinação no instrumento, portanto, seu uso não foi concretizado, além disso, muitos

músicos não concordaram com a proposta de Quantz. Rodríguez ressalta:

[...]. Por esse motivo recebeu numerosas críticas de seus contemporâneos, especialmente do organista Andreas Sorge, com base em que por estes anos a grande maioria dos músicos haviam adotado um temperamento igual, enquanto que para Quantz, ainda existiam diferenças entre Re# e Mib35. [...]. (RODRÍGUEZ, 1997, p. 6, tradução nossa).

De acordo com Mary Oleskiewicz (2000, p. 214), mais ou menos próximo

ao período de escrita do Versuch, Quantz realiza sua grande e última transformação

na flauta: a utilização do tuning slide (Figura 8). Este dispositivo é acrescentado na

cabeça da flauta (bocal), permitindo que ela seja alongada ou encurtada do corpo do

instrumento. Reilly, na tradução do tratado de Quantz para o inglês (1966, p. 34),

aponta que este compositor, em sua autobiografia, atribui a si mesmo a invenção do

tuning slide, no entanto, no Versuch, Capítulo 1, tópico 15, apenas indica que

experimentou este dispositivo e o achou muito válido para seu instrumento

36

.

Destaca também a praticidade do alongamento e encurtamento do bocal da flauta

em detrimento do pé

37

, por não prejudicar a afinação.

Além disso, Quantz ressalta a importância do sistema de rolha na parte

superior do bocal da flauta para a melhoria da afinação das oitavas (Figura 8). Tal

sistema “[...] possibilitava ao instrumentista puxar ou empurrar a rolha para afinar o

instrumento e, para tal fim, contava com um parafuso anexado a ela” (ARAÚJO,

35

Por este motivo recibió numerosas críticas de sus contemporáneos, especialmente del organista Andreas Sorge, fundadas en que por estos años la gran mayoría de los músicos habían adoptado el temperamento igual mientras que para Quantz, aun existían diferencias entre Re# y Mib.

36

Nas aulas com a professora Livia Lanfranchi, conversamos sobre as flautas utilizadas por Quantz. Estas flautas, com corpos de troca, tinham a afinação por volta de 392 Hz (afinação francesa em voga na corte de Dresden e Berlim).

37

No capítulo 1, tópico 14, Quantz fala da divisão do pé da flauta em duas partes (poderia ficar mais longo ou mais curto para ajustar a afinação das notas). No entanto, Quantz faz objeção a este invento (não fala quem inventou), alegando que o mesmo prejudica a afinação geral do instrumento.

1999, p. 5-6). Segundo Quantz, Capítulo 1, tópico 11, o emprego dos corps de

réchange precisam estar de acordo com o movimento da rolha, isto é, se utilizarmos

um corpo de troca maior, empurramos a rolha mais para perto do orifício do bocal,

se um corpo menor, empurramos mais para longe.

Adicionalmente, no Capítulo I, tópico 10, Quantz afirma que o sistema de

rolha é indispensável para a flauta: conforme o manuseamos, estabelecemos um

som agradável ou não. Se empurrarmos a rolha muito para dentro ou muito para

fora, prejudicamos a beleza deste som e consequentemente a afinação. Ainda sobre

o sistema de rolha, Mary Oleskiewicz (2000, p. 217, tradução nossa) destaca que:

“Mahaut

38

atribuiu esta invenção, assim como o registro no pé, ao professor de

Quantz, Buffardin, e isso provavelmente formou uma parte do projeto de Quantz

39

”.

.

Figura 8: Tuning Slide e Sistema de Rolha

Fonte: OLESKIEWICZ, 2014, p. 215

Em 1739, Quantz passa a fabricar flautas. Em seu tratado, Capítulo 1,

tópico 18, traz algumas recomendações quanto ao material apropriado para a

fabricação. Recomenda madeiras duras, tais como: buxu, ébano, jacarandá, dentre

outros. A madeira Buxu é a mais duradoura e a mais comum na fabricação de

38

Antonie Mahaut (1720-1785) atribui a invenção do sistema de rolha ao flautista Buffardin. Descreve este fato em seu método publicado em 1759: Nouvelle Méthode pour Apprendre en peu de

tems a Joüer de la Flute Traversiere. Disponível em: <http://jjquantz.org/index.php/flute-builder>.

Acesso em: 20 mar. 2015. 39

Mahaut credited this invention, as well as that of the foot register, to Quantz's mentor Buffardin, and it probably formed a part of Quantz's design from the first.

flautas, no entanto, a ébano produz um som mais belo e claro. No tópico 19

recomenda a manutenção da flauta com óleo de amêndoas.

Laura Rónai (2008, p. 63) ressalta outros fabricantes de flauta do período:

Pierre Jaillard Bressan (1663-1730), Karl August Grenser (1720-1807), Jacob

Denner (1681-1735), Carlo Palanca (1690-1783), dentre outros, “[...] cujas flautas

ainda servem de modelo para os atuais fabricantes de réplicas de instrumentos

barrocos”.

Nancy Toff destaca pontos importantes sobre a história da flauta dentro

do período barroco. De acordo com esta autora (2012, p. 183), Manfred Bukofzer

divide a época barroca em três grandes períodos: início (1580-1630); meio (1630-

1680); tardio (1680-1730). Quando nos referimos à flauta transversal, segundo

Bukofzer, os dois primeiros períodos são irrelevantes, uma vez que a chave de Ré#

não havia sido inventada até a metade do segundo período. A fim de discutir a

literatura sobre flauta, Nancy Toff afirma:

[...] Definirei a era barroca como sendo o período que corresponde à exclusiva proeminência da flauta de uma chave, de aproximadamente 1660 a 1760, embora essa não seja uma definição sem ressalvas: a música para flauta, pré-1700, é quase inexistente. O final da era é particularmente difícil de quantificar, muito porque as transformações de estilo que ocorreram em meados do século dezoito eram, de região para região, inconsistentes. Estudiosos propuseram um número de explicações para a hibernação da flauta transversa durante o século dezessete, período que corresponde ao médio-barroco de Bukofzer. Talvez, alguns historiadores argumentem que isso se deva ao crescente papel da flauta transversa (pífano) na música militar, fato que continuou até que a família das charamelas substituísse o pífano durante o reinado de Luís XIV. (TOFF, 2012, p. 183, tradução nossa)40.

40

[…] I shall define the baroque era as that period corresponding with the exclusive prominence of the one-keyed flute, from approximately 1660 to 1760, though this definition is not without caveats: pre-1700 flute music is nearly nonexistent. The end of era is particularly difficult to quantify, more so since the transformations of style occurring in the mid-eighteenth century were not consistent from nation to nation. Scholars have proposed a number of explanations for the hibernation of the transverse flute during the seventeenth century, the period corresponding to Bukofzer's middle baroque. Perhaps, some historians argue, it was due to the growing role of the transverse flute (life) in military music, which was to continue until the shawm family superseded the fife during the reign of Louis XIV.

CAPÍTULO 3

3. O tratado Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen: