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A fonte jornalística na composição da narrativa

1 A OBRA, O AUTOR, O JORNALISMO

1.3 A fonte jornalística na composição da narrativa

Erico Verissimo não manteve um diário atualizado durante o período de escrita de O tempo e o vento. Salvo as agendas em que fazia algumas anotações e desenhava seus personagens, principalmente durante a produção de O arquipélago, pouco ou quase nada podemos saber sobre suas impressões durante o processo de criação literária. No entanto, as diversas entrevistas que concedeu a jornalistas e as memórias publicadas em livro nos fornecem alguns dados para entender como o autor preparou-se para escrever um romance peculiar, que abrange 200 anos de história do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo.

Evidentemente nos interessa menos o que o escritor confessou a terceiros, jornalistas ou leitores de seus livros, do que o conteúdo da própria narrativa. É na ficção que vamos procurar entender como as fontes consultadas orientaram o escritor em seu projeto de romance. Neste ponto estamos de acordo com Bakhtin (2011, p. 5, TIB), quando aponta:

[…] o autor reflete a posição volitivo-emocional da personagem e não sua própria posição em face da personagem; esta posição ele realiza, é objetivada, mas não se torna objeto de exame e de vivenciamento reflexivo; o autor cria, mas vê sua criação apenas no objeto que ele enforma, isto é, vê dessa criação apenas o produto em formação e não o processo interno psicologicamente determinado. […] Por isso o artista nada tem a dizer sobre o processo de sua criação, todo situado no produto criado, restando a ele apenas nos indicar a sua obra: e de fato, só aí iremos procurá-lo.

E o que podemos assegurar, de imediato, é que não confere a afirmação de Erico Verissimo de que fez o mínimo de pesquisas para escrever O tempo e o vento.29 O tempo histórico representado indica inúmeros eventos que, sem consultas prévias a outras fontes, não poderiam ser abordados de acordo com o projeto pretendido pelo escritor. Pautada por marcos referenciais imprescindíveis para a representação histórica, de acontecimentos extraordinários a secundários, a trilogia deixa rastros facilmente percebidos de documentos consultados. Estes são empregados de maneira a amparar a intuição e a memória, ampliando as ferramentas necessárias para a confecção narrativa.

Alguns exemplos de eventos históricos em O tempo e o vento são: a Revolução Farroupilha (1835-1845), o início da imigração alemã nos anos de 1830, a Guerra do Paraguai (1864-1870), os debates em torno da abolição dos escravos e o surgimento do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) em 1884, a Revolução Federalista (1893-1895), as eleições de 1910, para a Presidência, e de 1915, para o Senado, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o assassinato de Pinheiro Machado em 1915, a revolução gaúcha de 1923, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), a queda de Getúlio Vargas e a campanha eleitoral de Eurico Gaspar Dutra, em 1945.

Além destas ocorrências, o romance também traz inúmeras informações aparentemente de menor significado, porém decisivas para a representação completa da vida individual e coletiva. Entre as principais: os folhetins, as óperas, as peças de teatro, o cinema, os progressos da aviação, o surgimento do automóvel e do telefone, o gramofone, a peste

29 “Sou fraco em matéria de pesquisas de qualquer natureza. Preguiça e falta de método. Um romancista é antes

de tudo um intuitivo. Para O tempo e o vento fiz o mínimo de pesquisas. Não me arrependo disso. É muito perigoso para o romance quando o autor sabe coisas demais sobre uma região ou uma época histórica. Sua tendência é usar tudo o que sabe, isto é, atravancar as páginas do romance com móveis e utensílios, etc.” (VERISSIMO, 1999, p. 185, OEV)

bubônica de 1923, a morte do escritor Tolstoi e do ator norte-americano Rodolfo Valentino e a queda da Monarquia em Portugal.

Num esforço para identificar as fontes utilizadas por Erico Verissimo na construção dos acontecimentos históricos na narrativa de O continente, Moro (2001, SEV) encontra evidências destas consultas em diversos livros que tratam da história rio-grandense nos séculos XVIII e XIX. De acordo com o estudo de Moro, em alguns casos é possível associar a tese apresentada no livro de história com o discurso de um personagem ou a descrição de situações pelo narrador na ficção.30

As agendas deixadas pelo escritor também revelam aspectos importantes de sua metodologia de pesquisa, principalmente em relação à última parte da trilogia. Bordini (1995, p. 84, SEV) anota que “Erico se preocupa em fundamentar suas fábulas em documentação fidedigna” e que (1995, p. 95, SEV) “nos esboços de O arquipélago aparecem citados inúmeros historiadores e memorialistas para apoiar a construção de certos episódios e cenas”.31

Nestas agendas, o escritor estabelece roteiros de consultas e de eventos históricos previstos para cada episódio. Por exemplo, para construir o cenário de O retrato, o autor relaciona documentação baseada em dados da revista francesa L'Illustration, nos números de 1909 e 1910. Conforme está registrado em uma destas agendas e transcrito por Bordini (1995, p. 137, SEV), Erico Verissimo destaca datas e fatos que deveriam ser incluídos no romance, tais como: 2 de julho (primeiro paquete aéreo), 24 de setembro (Sarah Bernhardt desembarca), 31 de dezembro (cinema falado), 8 de janeiro (canal do Panamá), 22 de janeiro (cometa Halley), 12 de janeiro (Rostand, Chantecler).32

Embora nem todas as informações apontadas nos esboços tenham sido aproveitadas, a simples definição dos acontecimentos que deveriam ser citados na trama deixa claro que o quadro histórico planejado não poderia ser erguido sem esta base de dados de livros, revistas e jornais. Além de L'Illustration, o autor também aponta consultas a serem realizadas nas

30 Segundo levantamento de Moro (2001, p. 10, SEV), Erico Verissimo emprestava livros da biblioteca de

Moyses Velhinho. Entre os historiadores a que o escritor possivelmente teve acesso estão: Carlos Dante de Moraes; Walter Spalding; Clemenciano Barnasque; Antonio Carlos Machado; João Pinto Guimarães; Alcides Lima; João Pinto da Silva; Aquiles Porto Alegre; Múcio Teixeira; Alfredo Varela e Carlos Teschauer.

31 Bordini (1995, p. 95, SEV) cita a presença de Luderitz Ramos, sobre as crises da pecuária e a revolução de

1923, o General Góis Monteiro para o Governo Provisório, Roger Bastide sobre a povoação, Pedro Calmon sobre o governo de Bernardes e as cartas de Getúlio Vargas a Washington Luiz.

32 Vamos observar no decorrer de nosso estudo que o escritor busca nas publicações periódicas, geralmente,

aquilo que Morin (1967, p. 38-9, TIB) chama de setor da informação e setor do romanesco, caracterizados pelos “fatos diversos” - “faixa de real onde o inesperado, o bizarro, o homicídio, o acidente, a aventura irrompem na vida quotidiana” - e as “vedetes” - “que parecem viver abaixo da realidade quotidiana”.

revistas Problemas, Synthe'se e Paulista e no jornal Correio do Sul. No entanto, tratando-se da imprensa, foi o Correio do Povo o jornal que mais forneceu material de consulta ao escritor, principalmente para a escrita de O retrato. Como ele mesmo confirma, para escrever a segunda parte da trilogia cercou-se de volumes antigos deste jornal, correspondentes aos anos de 1910 a 1915 (VERISSIMO, 1995a, p. 303, OEV).

Esta apropriação da fonte primária da imprensa para fins de datação do tempo decorrido e de inclusão de fatos históricos é uma das bases da criação literária de O tempo e o vento. Neste sentido Erico Verissimo procede inicialmente como um historiador, investigando em exemplares de jornais e revistas os registros noticiosos que possam ajudá-lo a recompor o ambiente histórico de um período determinado. Em seguida, trabalha como um editor de redação, escolhendo os trechos mais interessantes para a transposição à narrativa. Por fim, o escritor sente-se seguro para costurar a trama romanesca aos temas históricos, fazendo da imprensa e da história os instrumentos legitimadores da ficção.

O emprego de matéria-prima da imprensa consiste em um elemento fundamental para a compreensão da estética ficcional e da ética do escritor em O tempo e o vento, considerando-se que o ponto de partida de seu projeto era justamente esquivar-se da história oficial e desmitificar o passado. Pesavento (2005, p. 2, SEV) encara esse recurso jornalístico como uma “nota de rodapé ou citação do texto histórico”, com o qual o autor “desafia o leitor a refazer o seu caminho de pesquisa nos arquivos para certificar-se e concordar com ele. Nesta medida, o texto tem um sabor de real, e as situações e personagens foros de veracidade”.

É possível ampliar essa interpretação e seu significado no plano de criação romanesca. O “sabor de real” e a “veracidade” não nascem, ao que parece, de simples citações do texto histórico como notas de rodapé, mas da incorporação destas ao fluxo narrativo e à essência psicológica dos personagens. Tudo resulta em um universo imaginário uniforme, em que o projeto mimético dependente de confirmação documental. O efeito dessa técnica é uma busca constante de equilíbrio entre a exigência de veracidade e a licença poética. Em outras palavras, o escritor precisa ao mesmo tempo ser fiel ao tempo cronológico e aos modelos culturais sem abdicar do direito de manipular os elementos ficcionais.

O jornal, a revista e até certo ponto o almanaque são tão importantes quanto outros objetos-símbolo presentes na trama, como a tesoura, a roca e o punhal. Elementos que sinalizam a continuidade da vida em meio ao desmantelamento progressivo do clã, esses

objetos sobrevivem a cada nova geração e funcionam como um elo de aproximação entre presente e passado da ficção. As folhas impressas, no entanto, superam em significado os demais objetos herdados pelos integrantes da família Terra Cambará porque, além de retratarem os hábitos de leitura e a formação ideológica de um determinado grupo social, registram um instante da história no presente real de sua publicação, sendo posteriormente usadas para reconstituir o presente da narrativa.

Diferentemente do que ocorre nos romances do final do século XIX e início do XX, em que a figura do jornalista passa a interessar aos ficcionistas, eles próprios geralmente bem ambientados nas redações, em O tempo e o vento a presença deste profissional não se resume a uma tipificação alegórica como acontece nos romances de Lima Barreto, particularmente em Recordações do escrivão Isaías Caminha e Numa e a ninfa. Existem, sim, instantes de abordagem alegórica e estereotipada da postura ética do jornalista e da participação do jornal enquanto aparelho ideológico. Não obstante, a finalidade primeira da aplicação desse recurso técnico reside na transposição de notícias que ora servem para criar um efeito de verdade aos eventos ora para direcionar as ações dos protagonistas.

Erico Verissimo recorre de duas maneiras distintas às publicações impressas para preencher o quadro histórico em O tempo e o vento. Uma delas refere-se à tipificação de jornalistas, sendo estes uma espécie de mediadores da ação narrativa. São exemplos Toríbio Rezende, Amintas Camacho e o próprio Rodrigo Cambará. A outra baseia-se na transcrição direta de notícias, editoriais e manchetes de jornais e revistas, uma prática restrita à disponibilidade do escritor a estas fontes. Como a trilogia começa a ser escrita no final dos anos de 1940, exemplares das primeiras quatro décadas do século são facilmente acessadas. Por isso, as referências à imprensa são abundantes a partir do episódio “Chantecler”, que transcorre em 1910, e continuam constantes em praticamente todos os episódios situados a partir desta data até o fechamento da narrativa.

Por uma via indireta, o escritor “usa” a imprensa para fortalecer a verossimilhança de acontecimentos pertinentes do século XIX. Sem dispor de jornais, revistas ou almanaques deste período para fins de consulta, o escritor recorre a outras fontes, como os livros de história, mas apresenta as informações como se a origem destas fosse os jornais. Nesses casos a imprensa periódica auxilia o narrador em seu relato sobre determinados acontecimentos do presente da ficção, fortalecendo o peso do discurso.

históricos teriam ocorrido segundo as publicações da imprensa, observando a evolução dos periódicos no Rio Grande do Sul e a sua participação nos acontecimentos. O primeiro registro desse tipo ocorre no episódio “Um certo Capitão Rodrigo”, durante a Revolução Farroupilha. Embora numa passagem rápida, o texto faz referência aos discursos publicados nos jornais durante o movimento armado dos gaúchos contra o Império. Mais adiante, são os jornais que trazem notícias sobre a estrada de ferro, a epidemia de cólera e outros acontecimentos mundanos. O almanaque do personagem Dr. Nepomuceno, por sua vez, fornece ao leitor diversas informações sobre a formação econômica e étnica de Santa Fé, bem como datas e personalidades importantes da cidade fictícia.

Outro exemplo da importância dada pelo escritor à representação da imprensa passa pelo personagem Dr. Winter, imigrante alemão que fixa residência em Santa Fé e acompanha as notícias da província e do resto do mundo com a leitura de jornais e cartas enviados pelo conterrâneo Carl von Koseritz, um dos intelectuais mais influentes da segunda metade do século XIX no Rio Grande do Sul. O diálogo entre um personagem da ficção e uma personalidade da história, recurso que se repete em outros momentos da narrativa de O tempo e o vento, ocorre por meio dos escritos na imprensa periódica, na correspondência e nos livros publicados por Koseritz, cujas ideias, em sua maioria, passaram pelas páginas dos jornais.

No auge da crise do sistema monárquico e das discussões em torno da abolição dos escravos, entram em cena os jornais fictícios O Arauto e O Democrata, livremente inspirados em A Federação e O Liberal, jornais oficiais dos partidos Republicano e Liberal. Com a farta documentação existente a respeito da criação do Partido Republicano e da participação de Júlio de Castilhos nesta agremiação, Erico Verissimo acrescenta ao panorama do debate político as principais diretrizes ideológicas do partido, incluindo discursos publicados em editorias de A Federação. O mediador do discurso nesta fase é o advogado e jornalista Toríbio Rezende, responsável pela edição de O Arauto e pela apresentação das ideias republicanas e abolicionistas junto a Licurgo Cambará.

Mais adiante, na largada para a fase do jornalismo profissional, enquadrado nos modelos capitalistas, encontramos um contraponto entre os boletins do jornal Correio do Povo, considerado o pioneiro da imprensa gaúcha em gestão empresarial, e os fictícios A Farpa e A Voz da Serra, ainda atrelados aos modelos da imprensa política. O mesmo ocorre nos anos 20, época de intensas turbulências institucionais, quando Rodrigo Cambará funda o

jornal O Libertador para provocar os republicanos fieis a Borges de Medeiros. Somente após o fim do Estado Novo o conteúdo da imprensa parece surgir livre de cerceamentos, preservando autonomia na cobertura dos acontecimentos e liberando os ataques mais diretos nos anúncios pagos.

Pode-se acompanhar, portanto, neste cenário histórico apresentado em O tempo e o vento, não apenas o desenvolvimento da imprensa desde os seus primórdios até sua consolidação na sociedade, mas também o emprego do registro jornalístico de forma consciente e determinante para a composição narrativa. O resultado estético dessa opção do escritor conduz à configuração de uma determinada versão histórica que passa pelos meios de comunicação para se transformar na “verdade” da ficção no romance.

Considerando-se que durante o processo de criação literária o escritor seleciona determinado conteúdo jornalístico em detrimento de outros, em geral os mais significativos para efeitos de verossimilhança, pode-se concluir que Erico Verissimo também é envolvido pela “identificação” e “empatia” dos textos impressos, dois aspectos importantes da retórica do jornalismo, segundo aponta Lage (1997, p. 49, IM).33 Nesse caso, os textos que mais impactam o escritor-leitor também refletem na estética do romance, num contexto em que os personagens não podem fugir dos elementos simbólicos intrínsecos aos eventos históricos representados.

33 Lage diz que sobre estes dois aspectos se apoiam “notícias sobre personagens que correspondem a

estereótipos sociais, como o malandro que engana a todos, o vingador destemido, o homem que se fez por si mesmo ou o herói revolucionário e romântico.”

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