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Discurso oposicionista nas leituras de Rodrigo Cambará

2 IMPRENSA E REVOLUÇÃO

2.4 Revolução de 1930

2.4.1 Discurso oposicionista nas leituras de Rodrigo Cambará

No episódio “O cavalo e o obelisco” o protagonista Rodrigo Cambará encontra-se deprimido e amargurado em fins de julho de 1930, cinco meses após a derrota de Getúlio Vargas nas urnas: “A derrota eleitoral de Getúlio Vargas e João Pessoa, o malogro da conspiração revolucionária, o Rio Grande desmoralizado aos olhos do Brasil por não ter levado a cabo suas ameaças revolucionárias...” (1963c, p. 616, OEV). Durante um encontro que seria para comemorar o aniversário de Flora, os homens trancam-se no escritório do Sobrado para tratar do assunto do momento. Em uma das paredes, destaca-se um retrato de Júlio de Castilhos.

O recurso do diálogo entrecruzado entre diversos personagens com opiniões divergentes repete-se na narrativa com a finalidade de introduzir na ficção as informações anotadas nos livros de história e nos jornais. Nesta situação, temos o juízo do conformista (Dr. Terêncio Prates), do radical (Chiru Mena), do cético (Roque Bandeira), do comunista (Arão Stein) e do partidário gaúcho (Rodrigo Cambará), cada um deles apresentando suas ideias de acordo com o seu perfil ideológico.

Para o conformista, “se havia alguma articulação revolucionária, essa se foi águas a baixo depois do pronunciamento do chefe. […] os jornais do Rio e de São Paulo não nos poupam, nos atacam, nos ridicularizam”; para o radical, “o remédio é separar o Rio Grande do resto do país, mandar estender uma cerca de arame farpado na fronteira com Santa Catarina; para o cético, “devemos ter a humildade suficiente para reconhecer que na federação brasileira São Paulo é mesmo uma locomotiva a puxar vinte vagões vazios”; para o comunista, “o tempo e as contradições do sistema capitalista estão trabalhando para a revolução”; para o partidário gaúcho, “a solução é marchar contra o Rio, tomar aquela joça a grito e amarrar nossos cavalos no obelisco da Avenida” (1963c, p. 620-23, OEV).

Antigo opositor do regime durante a República Velha, Rodrigo Cambará está disposto a colaborar com a revolta que pode levar o primeiro gaúcho à presidência da República. Para o personagem, o Governo Federal trabalhara nas últimas décadas apenas para

fomentar as lutas partidárias no Rio Grande do Sul com o objetivo de enfraquecer e dividir os gaúchos. Em seu discurso, Rodrigo lembra que em 1835 a Corte considerava os farrapos bandoleiros que colocavam em perigo o resto do país. Ele procura encontrar semelhanças entre as duas situações reproduzindo um discurso característico do regionalismo gaúcho, em que se procura justificar a revolta farroupilha. “O que o Governo Federal quer é que o Rio Grande continue sendo o que foi no princípio da sua História: um acampamento militar. Acham que para guardar a fronteira e conter os castelhanos somos bons. Para governar o país, não!” (1963c, p. 619, OEV). Indiferente às opiniões que desencorajam a revolução, Rodrigo tem uma sugestão “profética” para acabar com a indecisão de Getúlio Vargas: “pois empurraremos Getúlio para a revolução a trancos e bofetões!” (1963c, p. 621, OEV).

A notícia da morte de João Pessoa, recebida no Sobrado como se fora uma tragédia familiar, acelera os preparativos para a rebelião. O narrador informa que “o país inteiro foi sacudido pela brutalidade do crime” e que “a massa popular revoltada atacou e depredou as casas dos inimigos políticos de João Pessoa. Nas ruas de centenas de vilas e cidades, através de todo o território nacional, o povo chorava a morte do Presidente nordestino e ao mesmo tempo clamava por vingança, exigindo a revolução”. Também cita parte do famoso discurso de Lindolfo Collor na Câmara dos Deputados, e transcrito nos jornais, em que ele diz: “Caim, que fizeste de teu irmão? Presidente da República, que fizeste do Presidente da Paraíba?” (1963c, p. 635-6, OEV).

Rodrigo Cambará deixa-se empolgar pelo desejo de vingança e clama pela revolução.

– Os olhos do Brasil estão voltados para o Rio Grande, esperando a revolução! – exclamou Rodrigo Cambará num daqueles primeiros dias de agosto, depois de ler os jornais que Bento lhe fora buscar à estação. – E nós continuamos de braços cruzados. Nada fazemos a não ser discursos.

Acompanhou comovido, pelo noticiário da imprensa, a transladação dos restos mortais de João Pessoa do Recife para a capital de seu Estado, e dessa cidade para o Rio de Janeiro, onde deviam ser sepultados. O povo, que atulhava as ruas da Paraíba por onde passou o cortejo fúnebre, agitava lenços brancos e chorava, despedindo-se de seu Presidente. O esquife foi posto a bordo do Rodrigues Alves, que fez escalas em Recife e Maceió, onde verdadeiras multidões desfilaram respeitosas pela frente do cadáver exposto numa das salas de bordo. (1963c, p. 636, OEV)

Passado o choque inicial da morte de João Pessoa, os chefes da oligarquia de Santa Fé reúnem-se a portas fechadas na Intendência para tratar dos preparativos para o movimento armado. Rodrigo Cambará, na condição de intendente, conta ter recebido de Osvaldo Aranha a autorização para começar a mobilizar civis e militares e a promessa de envio de armas e

munições. Os demais líderes republicanos e libertadores, no entanto, não estão empolgados com a ideia da revolução.22 Terêncio Prates alerta para a falta de um sinal verde do partido, mas Rodrigo não aceita contestações e mantém sua opinião. Prates cita um trecho do discurso publicado no Correio do Povo, substituindo as palavras “chefe” e “presidente” pelos nomes de Borges de Medeiros e Getúlio Vargas:

– É uma questão de disciplina partidária... Não viste os jornais? O Senador Paim acaba de declarar num discurso no senado que a revolução não se fará com o Rio Grande do Sul. “Não a querem o Sr. Borges de Medeiros nem o Sr. Getúlio Vargas nem o Partido Republicano Rio-Grandense”. São suas palavras textuais.

– Mas o povo a quer! – vociferou Rodrigo. – E a revolução vai para a rua, com o Chimango ou sem o Chimango, com o Partido Republicano ou sem ele. (1963c, p. 638, OEV)

A substituição das palavras “chefe” e “presidente” por Borges de Medeiros e Getúlio Vargas revela preocupação do escritor em não deixar o leitor em dúvida sobre o enunciado. A alteração no texto original do jornal torna-se necessária para melhor acabamento da narrativa, sem prejuízo da verossimilhança.

Assim como ocorre na Revolução de 1923, Rodrigo atira-se de corpo e alma na causa revolucionária de 1930. A diferença está no fato de que os inimigos de 23 agora estão de braços dados, “lenços brancos, verdes e vermelhos amarrados num nó de amizade” (1963c, p. 638, OEV) e aguardam o beneplácito de Borges de Medeiros, “o homem que em 1923 os maragatos tanto odiavam e combatiam” (1963c, p. 638, OEV), para começar a nova revolução. Sendo um republicano identificado com as oligarquias dissidentes, Rodrigo reconhece que o sucesso da aliança depende da união dos grupos que desde 1922 criaram uma tradição de luta. Esse passado recente transmite confiança ao protagonista no processo conspiratório.

No entanto, ele percebe na revolução apenas uma ocasião ideal para extravasar os sentimentos reprimidos de um idealista que perdeu todas as batalhas políticas de que participou.23 Ser oposição faz parte da gênese do personagem, que não mede esforços para

22 A hesitação dos coronéis de Santa Fé enquadra-se na análise de Fausto (1997, p. 133-4, HI) sobre as articulações revolucionárias após a derrota eleitoral da Aliança. Destaca o historiador que o esforço maior neste aspecto parte dos quadros jovens, civis e militares, e que o corte de gerações tem um significado importante no entendimento do episódio porque os velhos oligarcas aceitam a tradicional recomposição sem muitos questionamentos. Fausto usa como exemplo a famosa entrevista de Borges de Medeiros ao jornal A

Noite, logo após as eleições, na qual reconhece a vitória de Júlio Prestes confirmada por margem bastante

grande, de modo a evitar “discussões e sofismas”.

23 Veremos no capítulo “Imprensa e política” o envolvimento do personagem na eleição presidencial de 1910 e na eleição para o Senado em 1915.

enaltecer os valores dos homens que lutam para “melhorar” o país, mas sem agir de acordo com uma coerência ideológica ou um projeto político. Suas motivações são de ordem pessoal e vão ao encontro da ideia de Holanda (1995, p. 182, TIB), quando verifica na primazia das conveniências particulares sobre os interesses de ordem coletiva “o predomínio do elemento emotivo sobre o racional”.

Onde Roque Bandeira identifica a necessidade de o povo criar seus mitos e mártires, como acontece com o culto a João Pessoa, Rodrigo identifica demonstrações de civismo baseando-se apenas nas descrições da imprensa.

– E que me dizes desse belo movimento que agita o país? És um céptico, não acreditas em nada e em ninguém. Pois eu te repito que ainda tenho fé no Brasil. O gigante adormecido finalmente acordou. O assassinato de João Pessoa galvanizou-se. O sacrifício do grande Presidente não foi em vão. Mas qual! Tu não lês jornais.

Lembrou ao amigo a chegada do cadáver de João Pessoa ao Rio de Janeiro. Maurício de Lacerda, num discurso comovente feito no cais do porto, onde a multidão se comprimia aguardando o féretro que era desembarcado do

Rodrigues Alves, pedira ao povo que se ajoelhasse, pois o corpo do grande

morto ia entrar os muros da cidade.

– Foi a cena mais grandiosa, mais tocante da nossa História, Roque. Não rias. Nem tudo é farsa, há coisas sérias na vida. Imagina tu o povo quebrando o cordão de isolamento da polícia e precipitando-se para o féretro com lágrimas nos olhos, para carregá-lo nos ombros até o cemitério! Pisando as flores com que senhoras e senhoritas haviam atapetado o chão, o cortejo passou por entre alas de estudantes ajoelhados a cantarem em surdina o Hino Nacional. Que me dizes, céptico duma figa!

Tio Bicho encolheu os ombros e, mal movendo os lábios pardacentos, gretados pelo frio, balbuciou:

– Digo que tudo acaba virando religião. (1963c, p. 639, OEV)

Com ansiedade e impaciência, Rodrigo acompanha o clima pré-revolução através da imprensa. Preocupa-se com a notícia de que o presidente Hipólito Irigoyen da Argentina havia sido deposto pelo Exército, pois se o mesmo acontecesse no Brasil “teríamos então uma ditadura militar e a situação ficaria ainda pior”, e o ideal seria “uma revolução civil e popular”. Ao mesmo tempo, lendo nos jornais o manifesto lançado pelos militares argentinos, Rodrigo encontra um trecho que, segundo ele, se aplica à situação brasileira: “intimar os homens que atraiçoaram no governo a confiança do povo e da República, ao abandono imediato dos cargos que não exerceram para o bem comum, mas em exclusivo proveito de seus apetites pessoais” (1963c, p. 648, OEV).

Neste ponto Rodrigo reflete na narrativa o sentimento da imprensa oposicionista paulista em 1930, a qual procura estabelecer um paralelismo entre a situação brasileira e a queda dos governos “que se divorciam da opinião pública” (FAUSTO, 1997, p. 133, HI). Com

o propósito de explorar a instabilidade na América Latina em proveito das articulações revolucionárias, os jornais paulistas utilizam especialmente a queda de Irigoyen como um exemplo a ser seguido no Brasil. Numa quarta-feira de setembro, durante o almoço, o protagonista tira do bolso uma folha de jornal e lê em voz alta um trecho do manifesto divulgado pelos estudantes da Faculdade de Direito de Recife. Rodrigo teme que os nordestinos considerem a demora por ação uma “deserção”.

É a vós, gaúchos e mineiros que começais a desertar da trincheira em fogo para a qual nos convidastes pela clarinada de vossos tribunos e pelo incitamento de vossos generais; é a vós, brasileiros de todos os quadrantes, que a mocidade acadêmica de Pernambucano dirige este apelo em nome do martírio de João Pessoa. (1963c, p. 652, OEV, grifos do autor)

Durante esse período de expectativa, Rodrigo viaja duas vezes a Porto Alegre, onde se encontra com Osvaldo Aranha. Por intermédio deste o personagem recebe informações confidenciais dos preparativos do movimento, inclusive que “para convencer o Presidente do Estado a aceitar a revolução, o Osvaldo Aranha e o Flores da Cunha tiveram que assumir toda, mas toda a responsabilidade do movimento” (1963c, p. 661, OEV, grifo do autor). A descrição do ambiente que antecede a revolução, quando introduzido a partir dos encontros entre Rodrigo Cambará e Osvaldo Aranha, por vezes inclusive com trechos de falas dos políticos, deixa evidente que Erico Verissimo não se baseou apenas em artigos de jornais durante o processo de composição deste episódio.

Como já apontamos anteriormente, certamente o autor consultou outras fontes históricas e possivelmente outros jornais além de O Correio do Povo, tendo em vista que em algumas ocasiões não há referência ao título do jornal. Sem contar, ainda, as notas da imprensa que são reproduzidas em livros de história, o que torna inviável a localização de certos trechos nas inúmeras folhas que circulavam na época. Apesar disso, podemos perceber no eixo histórico da ficção uma tendência do narrador em explorar as informações pelo viés da imprensa oposicionista. Essa constatação tem muito a ver com o que se encontra nas páginas do Correio, que reproduz os editoriais das folhas de oposição do Rio e São Paulo, mas raramente os artigos dos jornais governistas, definindo sua posição durante o processo de edição (BELLOMO, 1995, p. 82, IM).

Quando estoura a revolução em Porto Alegre e no resto do Estado, o Regimento de Artilharia de Santa Fé adere ao movimento. O Tenente Bernardo Quaresma, amigo de Rodrigo, nega-se a participar da revolução. Rodrigo tenta convencer o militar a se entregar, mas a recusa deste acaba resultando em tiroteio. Rodrigo acaba sendo ferido e Quaresma

morre no confronto. Com remorsos por ter sido o primeiro a atirar no tenente, Rodrigo tenta amenizar o mal cometido interferindo por um enterro digno. Durante o sepultamento, recorda- se da voz do tenente quando este dizia “o senhor é mais que meu amigo. O senhor é meu pai” (1963c, p. 687, OEV). Não consegue evitar as lágrimas e pensa na mãe de Quaresma, para a qual decide enviar uma pensão mensal, anonimamente, como uma forma de confortar sua própria dor. Na ânsia pela revolução, o protagonista não poupa nem os amigos e mostra que pode ir até as últimas consequências para executar seus projetos.

No dia seguinte, os jornais circulam em Santa Fé trazendo o manifesto de Getúlio Vargas. Na versão apresentada pelo narrador, o manifesto aparece “naquela manhã de segunda-feira” e termina com “Rio Grande, de pé pelo Brasil. Não poderás faltar ao teu destino glorioso!”. Na verdade, o manifesto “À Nação” foi publicado no dia 5 de outubro, domingo, ao menos no Correio do Povo. O texto original do manifesto traz a frase “não poderás falhar ao teu destino heroico” e não “não poderás faltar ao teu destino glorioso”, como aparece na narrativa.

Roque Bandeira lê o documento e, antes que possa fazer alguma observação sarcástica, Rodrigo ameaça:

– Cala a boca! Nesta hora não há lugar para cépticos nem para maldizentes profissionais. Maragatos e pica-paus enterraram suas diferenças para o bem do Brasil. Eu já esqueci as indecisões e fraquezas do Getúlio: ele é agora o chefe de todos nós. Quem não está com a Revolução está contra ela. Toma cuidado. Tu e o Arão. Quem avisa amigo é. (1963c, p. 688, OEV)

Em outros jornais, Rodrigo lê em voz alta o telegrama que Getúlio Vargas havia enviado aos revolucionários de Curitiba e outras observações:

Breve marcho com o Rio Grande. Vamos todos: Exército e Povo. João Neves

declarava à imprensa: Este movimento marca o fim da política personalista

que tantos desmandos tem praticado. Flores da Cunha esclarecia a repórteres

que lhe haviam pedido um pronunciamento. Que ninguém se iludisse: o grande arquiteto da Revolução tinha sido Oswaldo Aranha. Nós não fizemos

outra coisa senão segui-lo.

– É o mais belo movimento da História do Brasil! – exclamou Rodrigo. (1963c, p. 689, OEV, grifos do autor)

A glória para o personagem Rodrigo Cambará concretiza-se com o recebimento de um telegrama enviado por João Neves da Fontoura. Dizia assim (1963c, p. 691, OEV): “Presidente Getúlio Vargas te convida meu intermédio a seguires com ele e seu Estado-Maior rumo a frente de batalha no trem que passará por Santa Fé dentro de dois ou três dias. Abraços cordiais. João Neves da Fontoura”. O convite deixa Rodrigo exultante com a possibilidade de discursar ao lado de Vargas, conseguir um cargo ao lado do presidente e transferir-se com a

família para o Rio de Janeiro. Isso significava a glória para quem tanto se esforçou pela causa, inclusive sacrificando a vida de um amigo e indispondo-se com outros. Imagina até a sensação que causaria no povo o seu discurso: “Iria para a estação com o braço em tipoia e lá, a certa altura do discurso, jogaria o lenço fora e passaria a gesticular com ambos os braços. Seria um gesto de grande efeito teatral...” (1963c, p. 694, OEV).

Por outro lado, sentia-se frustrado por não conseguir readquirir o afeto da esposa, já cansada de suas aventuras amorosas. No momento mais importante de sua vida, Rodrigo não reflete sobre projetos ou planos para executar no novo governo, mas, sim, pensa apenas em impressionar os amigos com um discurso teatral e em começar uma nova vida na Capital Federal. A contradição entre o discurso na esfera pública e a conduta na vida privada caracteriza o comportamento do protagonista.

Na plataforma, ao lado de Getúlio Vargas, arranca aplausos ao libertar o braço do lenço que o sustentava e ao gesticular com as duas mãos. Para finalizar o discurso, pronuncia uma frase que, segundo o narrador, seus amigos e inimigos haveriam de explorar das maneiras mais diversas e contraditórias: “Se eu cumprir minhas promessas, povo de Santa Fé, não vos pedirei recompensa. Mas se eu vos atraiçoar, matai-me!” (1963c, p. 696, OEV, grifos do autor)

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