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2 IMPRENSA E REVOLUÇÃO

2.1 Revolução Farroupilha (1835-1845)

2.1.1 Notícias frescas do Padre Lara

Em “Um certo Capitão Rodrigo” cabe ao Padre Lara a tarefa de refletir sobre os acontecimentos históricos e a vida no interior da província. A escolha de um personagem sacerdote para exercer o papel de intelectual nesta etapa da narrativa não parece ser ao acaso, uma vez que “até 1827, ano de fundação do primeiro jornal sul-rio-grandense, os letrados, fora das confissões religiosas, escasseavam” (CESAR, 1979, p. 27, HI).

O religioso é descrito pelo narrador como um leitor de ensaios sobre a Revolução Francesa e que detesta Marat, Robespierre e Danton, os líderes do movimento. Quando pensa

sobre a desconfiança dos portugueses em relação à propaganda libertária dos farrapos, segundo suas observações em Viamão, onde fora capelão, o padre ressalta o apego à ordem e à estabilidade dos imigrantes açorianos, mas ao mesmo tempo reconhece os valores dos homens do interior e da fronteira, os quais amavam o entrevero e a liberdade do campo e “criavam gado, faziam tropas e eventualmente engrossavam os exércitos quando o inimigo invadia a Província” (VERISSIMO, 1956a, p. 346, OEV).1

Padre Lara simpatiza com Rodrigo Cambará, mesmo sabendo que sua personalidade intempestiva pode causar problemas na pacata Santa Fé, e intercede a favor do amigo junto ao Coronel Ricardo Amaral para que ele possa permanecer no povoado, junto à família de Pedro Terra, para consumar o casamento com Bibiana. Rodrigo, na opinião do vigário, “representava à maravilha a mentalidade do homem do campo, da guerra e do cavalo, que não teme a Deus nem ao diabo” (1956a, p. 348, OEV). Um curioso em relação a tudo que se passa na província e no mundo, Padre Lara não perde oportunidade de buscar notícias com qualquer forasteiro ou mesmo com os negociantes nativos que eventualmente se deslocam a outras vilas. Assim, quando conhece o noivo da filha de Joca Rodrigues, que chegara a Santa Fé desde Porto Alegre, logo “pediu-lhe notícias da capital e do mundo e recebeu com satisfação os jornais da Corte que o recém-chegado trouxera consigo” (1956a, p. 345, OEV).

Para acompanhar os embates políticos que agitavam a capital da província, Padre Lara dirige-se ao casarão do coronel Ricardo e traz de lá “notícias frescas” (1956a, p. 432, OEV, grifo do autor) e as transmite aos amigos na venda do Nicolau ou na do capitão Rodrigo. As notícias relatam a discordância dos liberais e dos restauradores em torno da fundação da Sociedade Militar, projeto considerado retrógrado pelo Partido Liberal de Bento Gonçalves. As informações são de que liberais e restauradores discutem nas ruas e trocam tapas e socos. A situação tensa na capital deixa o padre inquieto “porque tudo indicava que ia rebentar uma guerra civil”, e Rodrigo animado porque “as espadas e as lanças já estão enferrujadas, e os homens estão ficando molengas” (1956a, p. 433, OEV).

No inverno de 1834, quando as noites frias e de mau tempo impedem o Padre Lara de sair em suas caminhadas noturnas, ele “ficava em casa lendo os jornais de Porto Alegre – alguns de data muito atrasada – que amigos lhe mandavam quando havia portadores. E à luz

1 Todas as citações referentes aos sete volumes de O tempo e o vento serão indicadas apenas pelo ano de publicação, página e a sigla OEV (Obras de Erico Verissimo), conforme disposto nas referências. A saber: 1956a e 1956b para O continente I e O continente II; 1956c e 1956d para O retrato I e O retrato II; e 1963a, 1963b e 1963c para O arquipélago I, O arquipélago II e O arquipélago III, respectivamente.

duma vela, os óculos na ponta do nariz, ele lia, relia e trelia” (1956a, p. 448, OEV). Numa dessas ocasiões, o sacerdote encontra uma notícia sobre o ataque ao presidente da Província, o Dr. Fernandes Braga. Diziam os jornais que quem realmente mandava no governo era o irmão do presidente, o juiz de direito de Porto Alegre, um homem que os liberais acusavam de ser retrógrado, vingativo e autoritário. E que todos haviam recebido o presidente com simpatia e esperança, mas ele começara a perseguir os liberais e a encher as cadeias de inimigos políticos. Visivelmente simpático aos protestos dos liberais, lamentando “a falta que nos faz um Imperador!”, Padre Lara reflete:

A situação era negra. Quando o povo perde o sentido de disciplina e de ordem, quando começa a desrespeitar a autoridade, então é porque o desastre está iminente... O pior de tudo era que, como sempre, a conspiração se fazia na maçonaria. Mas ele não justificava o regime de terror que o presidente instituíra. Era uma imprudência, uma temeridade, uma provocação... O vigário continuou a ler as notícias e os artigos. Estes pareciam escritos com ódio de sangue. Os jornais liberais acusavam o governo de despotismo, tirania e roupilhas de traidores, de aliados dos castelhanos, de perturbadores da ordem e conspiradores... (1956a, p. 449, OEV)

Nestes apontamentos, vemos que a ambiência de época representada no romance não apenas corresponde aos eventos conhecidos da história, como também inclui o clima de agitação reproduzido nas folhas impressas. A falta de identificação dos títulos dos jornais revela que o escritor buscou em livros de história as informações sobre os acontecimentos e a própria participação da imprensa nestes eventos. O papel dos jornais na concepção literária não se resume a um meio de divulgação dos fatos, mas, mais do que isso, se apresenta como um agente identificado a determinado posicionamento ético ou ideológico. Ao padre-leitor cabe a tarefa de reproduzir no romance os pontos mais relevantes do embate político da época representada, como se estes tivessem origem nos jornais.

Em muitas ocasiões, as reflexões do religioso refletem questionamentos do próprio autor, como ocorre na voz de outros personagens intelectuais presentes em episódios posteriores. Essa constância em transferir aos personagens suas próprias ideias evidencia, na avaliação de Hohlfeldt (1984, p. 24, SEV), “preocupação de ao mesmo tempo em que cria ficcionalmente, refletir sobre esta criação, testemunhando sobre seu tempo”. No caso da Revolução Farroupilha, falamos sobre uma época distante do momento da criação literária. O que, em tese, permite ao romancista andar sobre um terreno mais seguro por tratar-se de algo ocorrido no passado remoto, sobre o qual se torna mais fácil fazer julgamentos a partir da confrontação de documentos históricos.

Uma reflexão nesse sentido ocorre quando Padre Lara pensa em como é curioso “ver” a história no momento em que ela está sendo feita. Ele se pergunta como os historiadores iriam descrever aquela guerra civil dali a cem anos, sabendo que as pessoas dificilmente contavam as coisas direito, “mentiam por vício, por prazer ou então alteravam os fatos por causa de suas paixões” (1956a, p. 460, OEV). O padre exemplifica essa dificuldade com o que acontecia nas cenas da vida cotidiana, as quais tinham se passado sob o seu nariz e eram depois relatadas de uma maneira completamente diferente na venda do Nicolau. “Como era então que a gente podia ter confiança na História?” (1956a, p. 461, OEV), questiona-se o religioso.

Quando os farrapos deflagram a revolução, Rodrigo Cambará junta-se às tropas de Bento Gonçalves da Silva. A notícia chega a Santa Fé pelo estafeta do correio. Segundo as informações relatadas em Rio Pardo e transmitidas pelo estafeta,

tinha rebentado a revolução e Bento Gonçalves da Silva, chefe supremo das forças revolucionárias, havia atacado e tomado Porto Alegre! O presidente da Província fugira para o Rio Grande e o chefe farroupilha convocara o vice-presidente para assumir o governo. Dizia-se também que toda a Província aderira ao movimento, com exceção de Pelotas, Rio Grande e São José do Norte. (1956a, p. 458, OEV)

Na ausência de Rodrigo, Padre Lara passa a visitar Bibiana e o filho Bolívar com frequência, uma forma consciente de atenuar o “mal” que fizera à esposa ao incentivar o casamento que se revelara problemático. Durante estas visitas, em meio a longos silêncios, o sacerdote reflete sobre as coisas que lia nos jornais e trata de acalmar a aflição de Bibiana em relação ao destino do marido. “No primeiro (combate) os revolucionários foram mal – contou o vigário com alguma relutância, temendo afligir Bibiana. – As forças de Silva Tavares e de Manoel Marques de Souza derrotaram os farrapos” (1956a, p. 460, OEV). Mas quando a mulher comenta que os farrapos vão mal, ele sacode a cabeça e discorda: “Não vão, Bibiana, não vão. No combate do Arroio grande o General Neto venceu as forças do Silva Tavares. Mais ainda: Bento Gonçalves e um tal Onofre Pires ameaçaram o Rio Grande e o presidente Braga achou melhor mandar-se mudar para o Rio. São notícias frescas” (1956a, p. 461, OEV).

Além de descrever o panorama da guerra, o padre também reconstitui a situação em Santa Fé, onde o coronel Ricardo Amaral estava ao lado dos legalistas e proibia os homens de deixarem a cidade, temendo que estes fossem se reunir às forças farroupilhas. Muitos fugiam, enquanto outros eram recrutados à força pelas tropas governistas. Quem se recusava a ser voluntário podia ser preso ou até morto, como aconteceu a um lavrador que não quis deixar a

família e a lavoura e acabou sendo baleado. O sacerdote lembra que Hans Schultz, seu filho mais velho e Erwin Kunz, imigrantes alemães há pouco estabelecidos na vila, também tinham sido recrutados. No dia seguinte, antes de nascer o sol, toda a família foi como de costume trabalhar na roça, dessa vez comandada por Frau Schultz. Ao vê-los, o vigário observa:

O que aquela gente colhesse na próxima safra seria fatalmente requisitada pelo Cel. Amaral, para alimentar seus soldados; e os Schultz nunca veriam um vintém daquelas requisições. Todos os pequenos criadores e plantadores do município andavam alarmados, pois as requisições de cavalos e cereais já haviam começado. (1956a, p. 459, OEV)

Uma das coisas que mais preocupa o padre é saber que dezenas de sacerdotes católicos estão envolvidos na conspiração ou até mesmo aderiram à revolução. “Não compreendia como sacerdotes católicos pudessem dar seu apoio a uma revolução cujo chefe era um maçom, grau 33! Estava tudo errado, tudo perdido, tudo muito feio” (1956a, p. 459- 60, OEV). Apesar de haver alguns comentários de recriminação como este, em seus diálogos e divagações o religioso mantém na maioria das vezes uma postura imparcial frente ao conflito. A tendência natural seria um posicionamento contrário à revolta, pois além dos líderes farrapos serem ligados à maçonaria, portanto, inimigos da Igreja, qualquer comportamento de indisciplina contra o Império não poderia ser encarado com simpatia por uma autoridade eclesiástica.

No entanto, sua relação de proximidade com a família Terra Cambará e a indignação com os desmandos do coronel local acabam levando o sacerdote a mostrar uma simpatia discreta pela causa farroupilha. Posicionamentos como esse levam Weinhardt (2004, p. 91, TIB) a interpretar Padre Lara como um “indivíduo comprometido com a sociedade e, ao mesmo tempo, acima das paixões políticas, além de conhecedor de um mundo que transcende os limites daquela comunidade”.

A presença de um personagem posicionado acima das paixões políticas indica a representação da revolução vista “de fora”, aos olhos de um padre que tem autoridade para tecer seus comentários sobre o que vê e lê nos jornais. Quem vive a guerra “de dentro” é o capitão Rodrigo, personagem central do episódio, mas sobre suas aventuras ao lado de Bento Gonçalves da Silva nada sabemos, a não ser através de alguns relatos do personagem Quirino dos Reis, mensageiro que traz a notícia da morte do capitão. Evitando a reconstituição da batalha, Erico Verissimo direciona a narrativa para os efeitos que a guerra causa sobre as pessoas comuns. Com esta opção de centralizar o drama na psicologia dos personagens e não na ação da história, Bibiana fica fortalecida por ser a mulher que a tudo suporta – as traições e

bebedeiras do marido, a solidão e a espera por notícias.

A revolução dos farroupilhas, sempre transmitida pelos jornais consultados pelo Padre Lara, chega a Santa Fé quando os revolucionários atacam o povoado e o confronto deixa várias vítimas de ambos os lados, entre elas Rodrigo, que se torna mártir ao morrer na tentativa de tomar o casarão da família Amaral. Se até então os eventos históricos serviam apenas de pano de fundo para a existência dos personagens, neste momento da narrativa os mesmos personagens participam diretamente da história da guerra. Representados “de dentro”, os fatos confirmam que o destino dos personagens é determinado pelos rumos dos eventos históricos.

O depoimento de outra testemunha que presenciou a guerra à distância, mas sentiu duramente os seus efeitos, aparece no depoimento oral de Dona Picucha Terra Fagundes, no interlúdio que precede o episódio. A voz narrativa em primeira pessoa apresenta-se como se fosse uma entrevista. Picucha relata a sua versão do que presenciou à época, coisas que a fizeram parar de falar nas proezas de Carlos Magno e seus doze cavaleiros, causos que se misturavam a fábulas de mistério e assombração. Observando o pessegueiro no quintal, que floresceu e rendeu compotas de pêssego em 1835, ela recorda da proclamação da República Rio-grandense e dos dias difíceis.

Dei tudo que tinha pros Farrapos. Meus sete filhos. Meus sete cavalos. Minhas sete vacas. Fiquei sozinha nesta casa com um gato e um pintassilgo. E Deus, naturalmente. Quando eu não estava fazendo pão ou doce, fazia renda de bilro, porque estas mãos que vassuncê está vendo não sabem ficar sossegados. Sina de mulher é essa: ficar em casa esperando, enquanto os homens se vão em suas andanças. (1956a, p. 483, OEV)

Em seguida, Dona Picucha faz um relato abreviado das aventuras de Bento Gonçalves da Silva, para o qual acendeu uma vela quando soube de sua prisão na Bahia. Pela fala da personagem, sabe-se como foi que Bento Gonçalves conseguiu fugir a nado do forte onde estava detido, após pedir licença aos carcereiros para tomar um banho de mar. “Depois, bem disfarçado, entrou num navio que descia cá pros mares do Sul, desembarcou em Santa Catarina, montou logo num cavalo e se tocou pro Continente” (1956a, p. 484, OEV).

Picucha fala também de figuras como Bento Manoel Ribeiro, que “um dia estava com os imperiais e no outro com os farroupilhas” (1956a, p. 485, OEV), e de José Garibaldi, que “inventou de carregar dois navios em cima de carretas puxadas por duzentas juntas de bois”. Conta ainda que os republicanos alforriaram os negros alistados nas suas forças e que os imperiais, ao capturarem estes negros, mandavam dar-lhes uma surra de duzentos a mil

açoites. Por isso, o governo farroupilha aprovara um decreto no qual ficava autorizada a morte de um prisioneiro legalista para cada negro farrapo castigado. Para Picucha, essa reação dos farroupilhas era uma vingança, mas justifica-se porque “davam morte de homem e não castigo de cachorro. Como o patrício está vendo, o respeito entrava na guerra” (1956a, p. 487, OEV).

A personagem relata que perdeu sete filhos na guerra e faz seu próprio julgamento da revolução, dizendo que “foi uma guerra braba, que judiou com o Continente. Mas dela saímos limpos, passamos todas as provas, honramos o nosso povo. Mas cá pra nós vou lhe dizer, do lado dos caramurus também havia muita gente boa, que todos eram do mesmo sangue” (1956a, p. 485, OEV). A sobrinha de Ana Terra não revela como tomou conhecimento de todos estes detalhes da revolução. O que sabe ouviu de outras pessoas que por sua vez ouviram de outras, ou leram nos jornais. Podemos deduzir que a personagem sabe ler, pois guarda um recorte de jornal que um de seus filhos enviou do campo de batalha. Trata-se de um manifesto do presidente da República Rio-Grandense, publicado em 1838, que transcrevemos mantendo a grafia original do romance.

Eramos o braço direito e tão bem a parte mais vulneravel do Imperio. Agressor ou agredido o Governo nos fazia sempre marchar à sua frente: disparavamos o primeiro tiro de canhão, e eramos os ultimos a recebe-lo. Longe do perigo, dormião em profunda paz as mais Provincias, em quanto nossas mulheres, nossos filhos e nossos bens, presa do inimigo, ou nos erão arrebatados, ou mortos, e muitas vezes trucidados cruelmente. (1956a, p. 486, OEV)

Como restam poucos exemplares de jornais da época para fins de consulta, é pouco provável que Erico Verissimo tenha realizado pesquisas em periódicos para representar a Revolução Farroupilha em O continente. De qualquer forma, não é o propósito deste trabalho tentar identificar de qual livro o autor retirou informações como o manifesto de Bento Gonçalves da Silva, assinado no dia 29 de agosto de 1838 e preservado pela personagem Picucha. Mais importante é salientar o emprego do fragmento jornalístico por parte do escritor para confirmar um evento ou discurso, bem como a aproximação entre história e comunicação impressa.

Em síntese, fica evidente na composição do episódio “Um certo Capitão Rodrigo” o cuidado do escritor em reconstituir fielmente as polêmicas que anteciparam a revolta. Sua técnica narrativa consiste em introduzir as informações históricas no contexto ficcional a partir dos informes noticiosos, construindo o ambiente da época através do que teria sido publicado nos jornais, mesmo que suas fontes tenham sido os livros de história. A utilização de documentação do passado não significa o sacrifício da ficção nem da realidade histórica,

uma vez que, como bem observa Holanda (1996, p. 230-1, SEV), “a verdade dos fatos é respeitada e transubstancia-se, sem violência, na verdade do romance”.

Neste sentido, mesmo que alguns episódios de O continente contenham elementos mitológicos em sua expressão literária, a estética realista torna-se preponderante em sua forma, neste e nos próximos episódios que vamos analisar. É nela que vamos buscar o entendimento da história tal qual o escritor pretende representar. Assim, concordamos com Bordini (1995, p. 267-8, SEV) quando afirma que na estética realista de Erico Verissimo “a História deixa de ser o que é, para tornar-se ficção, como em qualquer outro tipo de convenção artística, mas é nela que o poder de ilusão da arte atinge seu grau máximo, fazendo desaparecer o “feito” que a obra é e confundindo-a com o real que ela mimetiza”.

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