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2. SOBRE O DESENVOLVIMENTO FONOLÓGICO

2.4 A formação de categorias na aquisição

Nesta tese, buscam-se, em dados de produção, pistas de como a criança lida com sons foneticamente distintos, que ocorrem em contextos específicos e são parte de uma mesma categoria, ou seja, os alofones. Assim, torna-se necessário fazer uma revisão sobre os

trabalhos que tratam da relação fonológica emergente na aquisição da linguagem. Primeiramente, aborda-se a formação de categorias na percepção e, em seguida, na produção.

Jusczyk (1992) pontua que a aquisição da fonologia requer habilidades básicas. A primeira seria segmentar o sinal acústico em palavras, sílabas e, por último, segmentos fonéticos. A segunda habilidade seria a categorização do sinal da fala. O autor afirma que a criança deve discriminar os sons e reconhecer quando sons diferentes devem ser tratados como parte da mesma categoria. Essa, porém, seria uma tarefa complexa, pois, uma vez que a criança consegue adquirir a correta descrição de categorias fonéticas, depara-se, ainda, com um problema adicional que é o mapeamento do sinal da fala. Nesse sentido, o contexto fonético teria um papel central:

Discovering the mapping here involves learning not only the allophonic variants for each category, but also something about the contexts in which they occur. For example, English the phonological (or phonemic) category /p/ includes, among its allophones, unaspirated [p] and aspirated [ph]. However, which variant will occur in a word is constrained so that [ph] appears only in the initial position of a syllable. Thus, having a fully developed phonological representation requires learning the set of constraints (called phonotatic) concerning which phone can occur in which context. (JUSCZYK, 1992, p. 18)

Jusczyk (1992) problematiza a questão da aquisição de alofones e afirma não haver um modelo que explique amplamente tal aspecto. Segundo o autor, experimentos na área de percepção apontam para uma tendência de agrupar palavras com consoantes iniciais similares no início de sílaba. Ressalta, porém, que não há um modelo que explique como elementos que ocupam diferentes posições na sílaba podem se tornar ligados à mesma categoria fonológica, na representação mental. E afirma:

How do infants learn that a phonetic segment in one context is to be treated as a variant of another phone in an entirely different context? Appeals to perceptual similarity apparently will not suffice because which phones get assigned to the same phonemes varies from language to language. The response that I offer here is that, currently, there are no data that demonstrate that infants actually do perceive similarities between segments occurring in different positions. (....) Children may not make such associations much before they learn to read (JUSCZYK, 1992, p. 53).

Assim, Jusczyk aponta que, possivelmente, a relação entre fonemas e seus alofones só se consolidará na aquisição da escrita, quando a criança aprende que sons distintos são grafados da mesma forma.

Peperkamp e Dupoux (2002) investigam como a criança lida com a variação fonológica nos estágios iniciais de aprendizado da língua. Os autores realizam essa investigação, dentro da perspectiva fonológica tradicional, a qual considera que a variação deve ser “apagada”, para se criar uma forma única e canônica na memória. Para alcançar a forma única, as crianças teriam duas pistas: 1) pares mínimos (análise do significado) e 2) ocorrência em contextos específicos (análise distribucional). Para o estabelecimento de pares mínimos, seria necessária uma lista de palavras as quais se diferem em apenas um segmento e indiquem oposição. Essa estratégia exigiria um léxico amplo. Já para a análise distribucional, seria necessário identificar os contextos específicos de ocorrência dos segmentos: a distribuição complementar. De acordo com os autores, essa segunda estratégia poderia ser aplicada antes mesmo da aquisição do significado, pois só depende da análise do sinal acústico da fala, ou seja, do significante.

Peperkamp e Dupoux (2002) apontam que a maioria dos modelos em aquisição fonológica assume que a criança pode extrair uma forma única do sinal da fala e armazená-la na memória, antes mesmo de compreender as relações semânticas. Ou seja, a diferenciação entre fonemas e alofones operaria previamente ao aprendizado do significado, a partir da análise da ocorrência de determinados segmentos, em contextos específicos, que forneceria pistas sobre a regra fonológica aplicada. Peperkamp e Dupoux (2002) não avaliam efetivamente essa hipótese com base em uma análise de dados. Antes, fazem suposições sobre como as crianças processam a variação. Os autores refletem sobre alguns casos de alofonia, em diversas línguas e chegam à conclusão, a partir da avaliação desses casos específicos, de que a criança realiza uma análise distribucional da ocorrência de determinadas formas em

determinados contextos para inferir a regra fonológica que está sendo aplicada. Ao final, os autores concluem que:

(...) surface variation introduced by postlexical phonology does not interfere with early lexical acquisition; that is, infants can find all and only those word forms, i.e. the underlying word forms, that need to be mapped onto a meaning before they actually begin to resolve the form-to-meaning problem. (PEPERKAMP; DUPOUX, 2002, p. 20).

O trabalho de Peperkamp e Dupoux (2002) é importante por colocar à frente a questão da alofonia na aquisição, observando a relação entre a categorização de alofones, a análise distribucional e o conhecimento semântico. Porém, antes de passar à revisão do próximo trabalho, é necessário mencionar uma lacuna no trabalho Peperkamp e Dupoux (2002), que se refere a não realização de testes com crianças. Obviamente, tal aspecto não invalida a análise, antes indica lacunas a serem preenchidas em pesquisas futuras.

Peperkamp, Pettinato e Dupoux (2003) retornam à questão a respeito de como a distinção entre fonemas e alofones é adquirida pela criança. Nesse estudo, a evidência experimental é oferecida sobre o processamento de categorias fonêmicas e alofônicas. Porém, o experimento é realizado com adultos e não com crianças, como deveria, a princípio, ser feito para responder a questão referente à aquisição. Os testes realizados exploraram a capacidade de discriminação do adulto de variantes contextuais comparada à discriminação de fonemas. Os resultados mostram que a identificação de alofones não é significativamente diferente da identificação do contraste fonêmico, quando os sons são produzidos isoladamente. Porém, quando produzidos dentro de um contexto (ou seja, em uma palavra), observa-se que os fonemas são identificados de forma mais precisa do que os alofones. Tal resultado mostra que existem diferenças entre a identificação de sons isolados e em palavras, oferecendo indícios sobre a importância do significado na discriminação perceptual.

Peperkamp e Dupoux (2004) apresentam uma nova tentativa de compreender o papel da análise contrastiva comparado ao papel da análise distribucional, na identificação de fonemas e alofones, na aquisição da fonologia. Porém, os autores não realizam o experimento com crianças, mas com adultos em simulações de aprendizado de segunda língua. Em uma série de experimentos, é verificado se o falante nativo do francês pode categorizar oclusivas vozeadas e não vozeadas e fricativas como uma mesma categoria. É importante lembrar que, no francês, o vozeamento é fonêmico em todas as categorias de obstruintes.

Foram realizados três experimentos que consideraram duas línguas artificiais. Na língua 1, o vozeamento seria fonêmico nas oclusivas, mas não nas fricativas. Na língua 2, o vozeamento seria fonêmico nas fricativas, mas alofônico nas oclusivas. Em todos os experimentos, nas tarefas de identificação de palavras, observou-se que os indivíduos testados ignoraram o vozeamento, mais vezes, na classe alofônica do que na fonêmica. Os resultados mostraram que os falantes podem criar categorias abstratas, agrupando diferentes segmentos. Os autores observaram também que a informação sobre o conhecimento semântico pode ser útil, mas não é imprescindível.

O trabalho desenvolvido por Peperkamp, Dupoux e colegas coloca à frente as duas principais hipóteses sobre a aquisição de regras fonológicas, que agrupam as formas de superfície em categorias abstratas: a hipótese do par mínimo — pela qual a criança aprende categorias fonêmicas com base na análise do significado — e a hipótese distribucional — pela qual a criança aprende categorias a partir de informações distribucionais do sinal da fala. Os resultados indicam uma maior plausibilidade da hipótese distribucional. Porém, deve-se pontuar a existência de uma lacuna importante nos trabalhos acima apresentados, já que nenhuma dessas hipóteses foi testada, especificamente, com crianças em fase de aquisição da linguagem.

Embora a autora também não forneça dados que comprovem uma ou outra hipótese, é interessante apresentar aqui cada uma delas:

Hipótese 1: O ponto de vista tradicional – o conhecimento do significado não é necessário para aprender a relação alofônica. A criança aprende a classificar as unidades em categorias abstratas através da semelhança fonética e da distribuição complementar.

Hipótese 2: Aquisição de alofones baseadas em alternâncias – essa hipótese supõe que a distribuição complementar e a similaridade fonética não fornecem pistas suficientes para o aprendizado de alofones. Nesse caso, o significado seria a peça chave para o aprendizado da distinção entre fonemas e alofones. A criança aprenderia que seqüências foneticamente similares teriam o mesmo significado. Interessante é que esta hipótese prevê que apenas as alternâncias efetivamente observadas são aprendidas. Por exemplo, as vogais nasais no inglês ocorrem sempre antes de consoante nasal. Nesse contexto, não há ocorrência da vogal oral e, por isso, não há como ser aprendido que esses dois sons (vogal oral e vogal nasal) estão em competição. Esse seria o caso de uma regra categórica.

Hipótese 3: Variação alofônica sem fonemas - De acordo com essa hipótese, os alofones não são nunca aprendidos. Essa hipótese considera que o falante pode aprender a produzir alofones, através da analogia a outras palavras, sem nunca haver categorizado esses sons em uma única categoria. Sob essa perspectiva, não há formação de categorias abstratas.

A reflexão realizada por Maye (2000) é bastante interessante e acrescenta uma hipótese à análise de Peperkamp, Dupoux e colegas: a de que os alofones não são agrupados, em nenhum momento, como uma categoria abstrata. Porém, a autora não avalia a aquisição de categorias fonológicas — fonema e alofones — com base em dados de aquisição. Ou seja, falta uma análise efetiva das hipóteses propostas acima, a partir de estudos na área de percepção.

Kiparsky e Menn (1977) afirmam que a criança, na aquisição da linguagem, deve realizar duas tarefas. A primeira é aprender a produzir os sons da língua (fonética) e a segunda é dominar as regras que governam a ocorrência desses sons.

In acquiring phonology of language, the child accomplishes two feats. First, the child must master the phonetic inventory of language. Second, the child learns the phonological rules that represent the regularities governing the variation of its words and morphemes. Each accomplishment involves both perceptual and productive ability. Learning the phonetic repertoire of the language involves both learning to pay attention to its relevant acoustic cues and achieving articulatory control over its sounds and sound combinations. Learning the phonological rules involves both the ability to recognize word identity across rule governed phonological differences and the active internalization of a least some phonological rules for purpose of production (…). (KIPARSKY; MENN, 1977, p. 47)

Menn (1983) aponta que é difícil falar em fonemas para aquisição da linguagem por diversos motivos. O primeiro motivo é que, muitas vezes, a aquisição do controle motor não ocorre de forma sincrônica ao desenvolvimento da percepção do contraste. Isso significa que a criança pode perceber um contraste, mas não conseguir reproduzi-lo corretamente. O segundo problema é que o conceito de pares mínimos é muito difícil de aplicar à aquisição, pois pares mínimos no vocabulário da criança, nas fases iniciais de aquisição da linguagem, são raros. O terceiro problema é que a criança pode produzir variantes para um mesmo som sem nenhuma consistência. Ou seja, a criança cria alofones, porém sem nenhuma motivação contextual específica. A abordagem de Menn (1983) é pertinente e há de fato uma discussão a respeito de como a criança organiza suas representações se a partir de suas próprias variantes ou das variantes percebidas. Ou ainda, conjuga ambas, como é assumido nesta tese.

Na área da produção, alguns trabalhos vêm sendo realizados, os quais procuram iluminar questões referentes à aquisição de variantes contextuais. Freitas (2003) avalia a aquisição da vogal [ ], no português europeu, a qual ocorre nos seguintes ambientes: 1) como conseqüência de um processo de neutralização das vogais [ ] e [e], em posição átona. 2)

em contextos epentéticos. Por ocorrer como conseqüência de um processo de redução, em ambiente específico, é assumido que a vogal [ ] não faz parte da representação mental.

A autora realiza um estudo longitudinal, com sete crianças, entre as idades de 0;10 (dez meses) até 3;7 (três anos e sete meses) 6. Após a análise dos dados, chegou-se à conclusão de que as crianças são aptas a discriminar o [ ] neutralizado e o [ ] epentético. O [ ] epentético é usado desde as primeiras palavras, bem antes do [ ] neutralizado. Freitas (2003) atribui essa diferença a questões prosódicas, já que o [ ] neutralizado nunca ocorre em posição tônica e, portanto, é menos proeminente.

A autora observa ainda que a sílaba que contém um [ ] neutralizado é, frequentemente, cancelada. Essa seria uma estratégia de reparo. Outra estratégia seria a substituição do [ ] neutralizado pelo shwa. Freitas afirma que essa substituição oferece argumentos contra a hipótese de Bybee (2001) de armazenamento de todas as variantes, no léxico mental, pois, nesse caso, a vogal neutralizada emerge tardiamente

Fikkert e Freitas (2006) ampliam a investigação iniciada por Freitas (2003), a respeito da aquisição de vogais no português europeu, com o objetivo de compreender a aquisição alofônica. De acordo com as autoras, a investigação a respeito de alofones deve ser central à teoria fonológica, conforme expresso na citação abaixo:

Therefore, we claim that the acquisition of allophonic and allomorphic variation (the learned rules) should be central to the theory of acquisition as well, as it provides evidence for the way children store phonological representations and for their system of phonological contrast. (FIKKERT; FREITAS, 2006, p. 86)

O sistema vocálico do português europeu representa um problema complexo para criança, já que a ocorrência de certas vogais depende da posição acentual: as vogais átonas

6 A idade nesta tese será descrita utilizando-se o padrão de ponto e vírgula depois do ano e dois pontos depois do

perdem o traço [+ alto] em posição átona. Fikkert e Freitas (2006) procuram investigar, especificamente, como a criança produz as vogais /e/ e /a/, as quais possuem formas alternantes dependendo do contexto. São investigadas três hipóteses

1) A criança inicia a produção de vogais acentuadas a partir das quais deriva as vogais não acentuadas. Se essa hipótese é verdadeira, a criança produzirá, inicialmente, mesmo em posição não acentuada, as variantes acentuadas. Ou seja, em um primeiro momento, não ocorreria a produção das vogais reduzidas, as quais são alofones das vogais tônicas. Contudo, essa hipótese é discutível já que a não ocorrência dos alofones pode indicar que a criança não controla os parâmetros necessários à sua produção.

2) De acordo com esta hipótese, os erros na produção de alofones não são previstos. No entanto, no caso de alomorfes (variantes condicionadas por contextos morfológicos), os erros seriam mais comuns. Isso porque seria mais difícil prever a ocorrência de alomorfes a partir da análise distribucional do sinal da fala.

3) A criança armazena todas as variantes que ocorrem na fala. Considerando essa suposição, não são previstos erros na produção das vogais, já que as palavras seriam armazenadas inteiras, sem a necessidade de regras derivacionais.

Frikkert e Freitas (2006), a partir da análise de dados longitudinais de sete crianças em fase de aquisição do português europeu, observaram que as crianças não produzem as vogais como elas ouvem, portanto, a hipótese 3 não está correta. Além disso, muitos erros cometidos vão em direção a uma forma mais abstrata da categoria, ou seja, ao fonema. Assim, as autoras argumentam que a criança não armazena todas as formas disponíveis do sinal da fala, como prevê o Modelo de Exemplares (PIERREHUMBERT, 2001, 2003 a) e a Fonologia de Uso (BYBEE, 2001). Ao contrário, a representação subjacente

é deduzida a partir da experiência com determinadas formas da língua.

A hipótese 1, de que a criança adquire categorias abstratas, também não foi confirmada, já que, nem sempre, a criança produz uma vogal acentuada no lugar de uma vogal reduzida. Ou seja, há casos em que as variantes contextuais são produzidas corretamente.

Os resultados mostraram que as crianças aprendem a variação alofônica, primeiramente do que a variação alomórfica. Esse resultado vai ao encontro da hipótese 2, a qual prevê que a variação alomórfica é aprendida mais tarde.

O estudo de Fikkert e Freitas (2006) é importante por refletir sobre questões relacionadas à aquisição de variantes e, mais especificamente, por estabelecer uma comparação entre a aquisição de alofones e alomorfes. As autoras observam que os primeiros são de mais fácil aquisição que os segundos, devido a questões distribucionais. As autoras concluem que a hipótese do Modelo de Exemplares e da Fonologia de Uso, de que os alofones são armazenados na representação mental, não está correta, pois ocorre, algumas vezes, a substituição dos alofones por fonemas da mesma categoria.

Por último, destaca-se o estudo de Macken (1980) que analisa a aquisição de oclusivas no espanhol. No espanhol, os fonemas vozeados possuem dois alofones (uma oclusiva e uma fricativa vozeada), com o mesmo lugar de articulação. De acordo com a descrição tradicional, as oclusivas [b,d, ] ocorrem em posição inicial e depois de nasal, e a oclusiva [d] ocorre também antes de [l]. Os alofones fricativos pra os fonemas vozeados ocorrem nos demais ambientes. A descrição fonológica tradicional deriva os alofones fricativos dos oclusivos por regra. Contudo, Macken afirma que os dados das crianças não sustentam a análise das oclusivas como fonemas subjacentes. Na verdade, observa-se que as crianças adquirem a fricativa primeiramente. O traço de VOT que é distintivo é aprendido em um segundo momento.

Nesta seção, fez-se uma revisão de trabalhos que tratam da aquisição de fonemas e alofones, na percepção e na produção. Observa-se que esse é um tema pertinente o qual sempre chamou a atenção de pesquisadores. Os achados são, no entanto, contraditórios e possivelmente, de maneira isolada, não podem responder a questão de se os alofones são ou não parte da representação mental da criança, ou ainda se são ou não unidades plausíveis de análise da aquisição fonológica. Esta tese tem como objetivo acrescentar resultados a essa discussão, a partir da análise de dados longitudinais de produção. A seguir, faz-se uma revisão sobre os trabalhos que tratam da aquisição de africadas, as quais são o objeto de estudo desta tese e permitirá refletir sobre a aquisição de alofones, com foco na produção.