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2. SOBRE O DESENVOLVIMENTO FONOLÓGICO

2.3 Aspectos da produção inicial da criança

2.3.2 As primeiras palavras

Pesquisas demonstram que a transição do balbucio para o início da produção das primeiras palavras ocorre de forma gradual. A criança constrói o léxico inicial a partir da organização de padrões motores relacionados àqueles produzidos no período do balbucio (MACNEILAGE; DAVIS, 2000). De acordo com Velleman e Vihman (2002), as formas das primeiras palavras emergem de padrões vocais do balbucio. Assim, é observada uma semelhança entre as características do balbucio (como a ocorrência da reduplicação silábica e a produção de consoantes bilabiais) e as características dos primeiros itens lexicais. De acordo Bauman-Waengler (1996), os primeiros itens lexicais e o balbucio são tão parecidos que, por vezes, torna-se difícil diferenciá-los. Evidência para isso é a dificuldade metodológica que o pesquisador encontra na identificação de palavras produzidas pela criança, nos períodos bastante iniciais de aquisição da linguagem.

Por outro lado, há algumas diferenças entre a forma sonora das primeiras palavras e o balbucio. Conforme Vihman (1996), as consoantes labiais, por exemplo, são mais freqüentes no balbucio do que nas primeiras palavras. Já as fricativas são menos freqüentes no balbucio. Portanto, há influência do balbucio na produção lexical inicial, ou seja, as primeiras

palavras são semelhantes às formas que ocorrem no balbucio. Porém, há também indícios de uma mudança na ocorrência de padrões sonoros específicos, quando o objetivo é produzir palavras (e não seqüências de sons). Isso significa que ocorre uma mudança quando a criança produz palavras (unidades com a relação entre forma e significado) e seqüência de sons aparentemente sem significação.

O período das primeiras 50 palavras é também conhecido como o período em que a criança se expressa através de uma única palavra por enunciado (single-word period). Ferguson e Farwell (1975), em um artigo clássico sobre o desenvolvimento fonológico inicial, propuseram analisar a produção das consoantes e vogais, como unidades válidas da fonologia infantil. Porém, os autores acabaram por concluir que a primeira fase de aquisição fonológica é baseada na palavra. Pesquisas que analisam a forma fonética das palavras nesse período observam que algumas crianças desenvolvem um padrão de produção (template), que será explicado a seguir.

Vihman e Miller (1988) apontam que o período de produção de uma única palavra por enunciado pode ser dividido em dois pontos principais, considerando as características fonéticas das palavras e o número de palavras produzido: o primeiro período, chamado “4- word-point” (período das 4 palavras – “early words”), e o segundo período, chamado “25- word-point” (período das 25 palavras – “later words”). A definição dos períodos é baseada em um recurso metodológico de identificação do número de palavras produzidas pela criança em interação espontânea com a mãe, em 30 minutos de gravação, comparado a uma lista oferecida pela mãe das palavras que a criança produz no dia a dia. Se a criança produz 4 palavras diferentes, em 30 minutos de interação com a mãe, significa que ela possui um vocabulário de 8 palavras ou mais. Se a criança produz 25 palavras diferentes, significa que já possui um léxico de 50 palavras ou mais. Pesquisas mostram que há uma correlação entre o número de palavras produzido em uma sessão de gravação e as amostras de diário (VIHMAN,

1996; DE-PORTNOY, et al. in press). Como édifícil definir o número de palavras que uma criança é capaz de produzir, já que não é possível acompanhá-la em diferentes momentos e contextos situacionais, esse é um recurso metodológico útil na definição do tamanho do vocabulário da criança. Apresentam-se, abaixo, a descrição dos dois períodos.

a) Primeiras palavras “Early Words” – Nesse momento, a criança produz, em uma sessão de 30 minutos de gravação, por volta de 4 palavras. Já de acordo com o relato da mãe, ela produz aproximadamente 8 palavras. As palavras que a criança produz, nesse período, o qual segue o balbucio, podem evidenciar duas características peculiares:

― São produzidas de forma bastante acurada. O termo “acurado” aqui deve ser compreendido de forma relativa, pois é utilizado considerando-se o ponto do processo de desenvolvimento em que a criança se encontra, pois ela ainda possui um repertório restrito de produção de palavras. Acurado, portanto, não significa idêntico, mas sim próximo ao alvo adulto.

― São selecionadas do alvo adulto. Ao produzir palavras “acuradas” a criança utiliza uma estratégia de seleção que é a segunda característica das palavras desse primeiro ponto de desenvolvimento. As palavras são geralmente selecionadas no alvo adulto. Assim, a criança tenta apenas uma pequena gama de palavras dentre as amplas possibilidades que a língua lhe oferece. Vihman e Croft (2007) apontam que, em geral, as formas preferidas seriam os tipos silábicos CVCV e VCV. Ferguson e Farwell (1975) observam que a criança seleciona no alvo adulto itens que estão de acordo com sua habilidade articulatória e, por isso, os produz adequadamente. Há, no entanto, controvérsias sobre a intencionalidade da criança ao selecionar as palavras no alvo adulto.

b) Últimas palavras “Later Words” – Nesse momento a criança tem no seu vocabulário de produção de acordo com a mãe, aproximadamente, 50 palavras. Em uma sessão de 30 minutos de gravação, a criança produz 25 palavras, em média. Com o aumento do vocabulário, a acuracidade observada no período de produção das 4 palavras (4-word-point) pode tornar-se menos evidente. Ou seja, em um segundo momento, a forma fonética das palavras produzidas pelas crianças podem tornar-se distante daquela produzida pelo adulto. É, nesse período, que surgem os “padrões” (também chamados esquemas - templates). Velleman e Vihman (2000, p.9) explicam o que é um padrão:

A template is an abstract or schematic phonetic production pattern that integrates salient adult word or phrase targets and the child’s own most common vocal patterns. It can be taken to emerge from target words frequently attempted by the child on the basis of the child’s existing phonetic forms and from adaptation of less narrowly selected target words to fit the pattern.

Os padrões podem surgir, para algumas crianças, quando o vocabulário da criança consta de, aproximadamente, 25 palavras ou mais (VIHMAN; VELLEMAN, 2000; VELLEMAN; VIHMAN, 2002). Nesse período, as palavras podem tornar-se menos acuradas e mais similares entre si. É como se houvesse uma modelo no qual as palavras fossem baseadas (word recipe - ‘receita de palavra’). Até mesmo as palavras inicialmente produzidas de forma bastante semelhante ao alvo adulto podem regredir para se adaptar ao esquema típico das crianças. É observada a utilização de duas estratégias principais na produção das palavras, nesse período:

1) a adaptação das formas do adulto para que se encaixem ao esquema seguido pela criança, 2) o evitamento de formas não acessíveis. Isto é, ou a criança não produz palavras que não se

encaixem ao seu esquema de produção ou utiliza mecanismos de adaptação. Portanto, a seletividade fonológica que operou no primeiro ponto continua a atuar.

O QUADRO 2, extraído de Waterson (1971), ilustra alguns padrões, produzidos por uma criança adquirindo o inglês. Nesse quadro, observa-se a consistência na produção das palavras, as quais seguem um esquema fonético único:

QUADRO 2: Exemplo de padrões de produção das primeiras palavras

Child form Adult target Tradução

[ a a] another outro

[ e e], [ i i] finger dedo

[ a ø] Randal nome próprio

[ e e] window janela

FONTE: WATESRON (1971, p. 179)

Observa-se que as palavras seguem um modelo de produção, por isso, são semelhantes. Mesmo crianças cuja primeira língua seja diferente mostram algumas similaridades na produção das primeiras palavras, devido a restrições articulatórias. Entretanto, a língua ambiente influencia, de certa forma, a produção de padrões (VIHMAN; CROFT, 2007). É importante ressaltar também que os padrões diferem de criança para criança. Há crianças que constroem os padrões com base na aplicação de fenômenos do tipo harmonia e reduplicação, como no caso analisado por Waterson (1971). Outros, como no caso analisado por Priestly (1977), constroem padrões baseados em segmentos específicos (o sujeito estudado por Priestly inseria um som [j] em palavras que não possuíam tal som, por exemplo, tiger “tigre”’ [tajak]). E há crianças que não desenvolvem nenhum tipo de padrão. Tais fatos sugerem um percurso individual alinhado a generalizações decorrentes da língua ambiente.

Conforme observam Velleman e Vihman (2002), a aprendizagem de padrões tem um impacto na aprendizagem de novas palavras. Os padrões servem como rotinas articulatórias que automatizam o processo de produção das palavras, favorecendo a expansão

do léxico (VIHMAN; VELLEMAN, 2002). Outro fato importante ressaltado por Velleman e Vihman (2002) é o de que crianças que apresentam diferentes esquemas aprendem palavras novas mais rapidamente.

Todos esses aspectos contribuem para corroborar a hipótese de que a unidade aquisição, pelo menos nas fases iniciais, é a palavra. Neste ponto, é importante definir o conceito de palavra. Utiliza-se aqui ‘palavra’ como significando a unidade fonológica e a unidade simbólica fundamental (cf. VIHMAN; CROFT, 2007), que é aprendida com o uso, em um contexto social (cf. TOMASELLO, 2003). Assim, quando a criança aprende uma palavra, não está apenas estabelecendo uma relação simbólica entre um referente e uma seqüência de sons, mas, conforme lembra Tomasello (2003), o aprendizado de palavras envolve a cooperação de diferentes processos cognitivos e sociais. Uma questão importante refere-se ao tamanho das unidades que se considera como palavra. Neste ponto, é interessante retomar a abordagem apresentada por Bybee (2001, p.30):

I will define ‘word’ as a unit of usage that is both phonologically and pragmatically appropriate in isolation. As such, words are plausible cognitive entities: they are units of production and perception that can undergo categorization.

O conceito acima permite considerar como palavra o que, tradicionalmente, seria classificado como duas ou mais unidades. Isso porque, para Bybee (2001), palavra seria uma unidade de uso. Assim seqüências da fala que ocorrem freqüentemente juntas, como expressões cristalizadas, podem ser consideradas palavras, pois são armazenadas no léxico mental como unidades. Nesta tese, assume-se o conceito mais amplo de palavra, o qual pode englobar seqüências de duas ou mais unidades lexicais quando operam como uma unidade semântica específica. Na metodologia será explicitada a forma de contagem das palavras.

Tanto o primeiro ponto “early words” quanto o segundo ponto “later words” oferecem evidências as quais sustentam que a palavra seja uma unidade importante de

categorização para a criança, pelo menos, na fase de produção de uma única palavra por enunciado. A aplicação de um esquema (ou receita de palavras) é um indício de que a criança possui uma representação holística, global da palavra e não apenas do segmento em si. Assim, na fase inicial, a relação entre a produção da criança e o alvo adulto não pode ser compreendida com base em estratégias do tipo inserção, cancelamento ou substituição de segmentos apenas. Há que se considerar também a aplicação de padrões.

Há uma maior concordância entre os estudiosos de que a palavra seja a unidade de categorização para a criança, nas fases iniciais, quando o léxico é composto por um número restrito de palavras (até as 50 palavras, aproximadamente). Isso porque, se a criança não tem ainda uma quantidade suficiente de itens lexicais para estabelecer relações, não é possível categorizar as unidades menores, como os segmentos ou tipos silábicos. Conforme Kiparsky e Menn (1977), a fase inicial de aquisição da fonologia é caracterizada pela produção de um número reduzido de palavras e é conhecida como “período pré-sistemático”.

Contudo, o papel da palavra pode ser observado também em momentos posteriores da aquisição, ou seja, quando o vocabulário já se encontra expandido. Kiparsky e Menn (1977) expõem um exemplo de uma criança que substituía consoantes velares por dentais, sistematicamente, por exemplo: [ato] para Michael, [dæts] para catch “apanhar”. Em um segundo momento, essa substituição passou a ser restrita à posição inicial de sílaba:

[teyk] para cake “bolo”, [tuki] para cookie “biscoito”. Contudo, mesmo quando a

substituição já não operava mais, uma única palavra persistiu com a pronúncia antiga, como uma forma cristalizada: [ato], para Michael.

Concordando com Kiparsky e Menn (1977), Lleo (1990, p.275) sugere que, não só nos momentos iniciais, mas também nos estágios posteriores, o item léxico é uma unidade fundamental de aquisição da fonologia. Nas palavras do autor:

There is a certain reluctance to attribute a crucial role to the lexical item in phonological acquisition based on the assumption that the phoneme and its oppositions play an exclusive role. But child phonology is committed to both, to oppositions and to patterns, that is, to segments, but to syllables and to lexical items too. (LLEO, 1990, p. 275)

A ocorrência de padrões específicos em itens lexicais específicos, tanto no período inicial de aquisição quanto em estágios posteriores, indicam que determinados padrões articulatórios estão associados a palavras específicas, no léxico mental. Contudo, deve-se lembrar de que não só um mesmo som varia em palavras diferentes, mas a forma sonora de uma mesma palavra pode variar na produção de um mesmo falante, em um mesmo momento no tempo. Esse é um fato bastante comum na aquisição e indica um sistema em construção. Jusczyk (1997) levanta a hipótese de que a variabilidade na produção das palavras é relacionada ao controle de movimentos articulatórios finos. Dentro do Modelo de Exemplares (PIERREHUMBERT, 2001), a variação na produção de um mesmo item lexical pela criança pode ser explicada como conseqüência de uma representação múltipla. Uma mesma palavra pode ser representada de diversas formas e isso teria conseqüência para a produção. A variação pode ser vista também como conseqüência de ajustes articulatórios, característicos do período de desenvolvimento.

Deve-se ressaltar, no entanto, que existe uma lacuna entre as pesquisas que tratam deste período inicial em comparação às fases posteriores. Estudos analisam o balbucio, a produção das primeiras palavras (o período de produção de uma única palavra por enunciado) e a formação de padrões. Entretanto, estudos que conjuguem a análise desta fase aos momentos posteriores de aquisição — quando acontecem a ampliação do vocabulário e a produção de enunciados com duas palavras ou mais — são escassos na literatura. Estudos longitudinais podem, certamente, preencher esta lacuna. Assim, embora evidências sejam oferecidas de diversas línguas sobre a ocorrência de uma reorganização do sistema fonológico do primeiro ponto (4 palavras) para o segundo ponto (25 palavras), não se dispõe de

informações a respeito de como os padrões desaparecem e de como emergem as estratégias baseadas em segmentos. Este é um ponto com o qual esta tese pretende contribuir.

Vihman e Velleman (1989) investigam como a criança passa de uma representação holística, ou seja, baseada na palavra, para uma representação mais próxima ao segmental. O interesse principal é saber como se dá a transição de uma fonologia baseada em padrões, para a fonologia baseada na substituição de segmentos. Para tanto, as autoras realizam um estudo longitudinal de uma criança, desde a produção das primeiras palavras até o momento em que ela alcança um léxico em torno de 70 itens lexicais.

As autoras observam um padrão de produção, com grande destaque para as consoantes finais. Em um determinado momento, a criança segue os padrões, porém experimenta com as consoantes finais (é a chamada fase de experimentação, em que o sujeito tenta diferentes formas para determinado som). As autoras sugerem que os padrões de produção podem destacar um segmento em determinada posição na palavra. A partir daí, a criança passa, gradualmente, para a fonologia segmental, com o segmento emergindo primeiramente em posições específicas na palavra. A transição de uma fonologia baseada em padrões para uma fonologia baseada em substituições de elementos específicos é um aspecto importante, pois indica mudanças possíveis na representação mental. Essa transição representa uma lacuna nos estudos sobre aquisição. O presente trabalho tem por objetivo contribuir para esse tema.