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A POLÍTICA DOS DIREITOS COMO HISTÓRIA

4. A despolitização e a “desmoralização” da linguagem dos direitos 1 Depois da revolução dos direitos

4.2 A formação do positivismo dogmático no Jus Publicum Europeaum

Passo decisivo no sentido da transformação da linguagem dos direitos, e transformação fundamental para a emergência da compreensão rights-based que posteriormente se consolidaria no Direito Constitucional contemporâneo, ocorreu com o desenvolvimento no Jus Publicum Europeaum ao longo do século XIX, como produto

156 do positivismo jurídico, da doutrina dos direitos públicos subjetivos. Segundo a crença dos envolvidos nesse processo, tratou-se de um mero movimento de aprimoramento técnico do direito, por força das demandas de uma influente ciência jurídica de índole positivista. Na realidade, todavia, também aqui o que determinou a emergência dessa nova faceta da linguagem dos direitos foi o impulso dos interesses da sociedade comercial, ainda que perseguidos na via de uma política baseada em princípios opostos aos que triunfaram nas revoluções liberais. Agora, uma vez que a economia capitalista já estava consolidada como uma policy de Estado, em decorrência da decisão política das forças sociais que controlavam o Estado, não fazia mais sentido cogitar ou tolerar a veiculação de postulações que tivessem por objetivo a reforma em sentido solidarista, menos ainda a superação em sentido socialista, da sociabilidade fundada numa moralidade econômica de mercado. O que se impunha agora era simplesmente o trabalho científico, lógico, de formulação de uma base jurídica para uma sociabilidade que, conquanto ainda estruturada no mercado, se assumia agora independente da política, uma inconcebível economia sem política, um antipolítico liberalismo meramente econômico.

Esse capítulo da história do pensamento político e jurídico só pode ser adequadamente compreendido se considerarmos as visões de Kant, discutida anteriormente, e Hegel acerca do papel do direito na realização da liberdade, e da repercussão dessas visões sobre os discursos e debates políticos que então eram travados na Europa no tocante às funções do direito, da Constituição e, mais especificamente no que diz respeito aos interesses desta tese, do conceito de direito subjetivo. E, ao contrário do que podem sugerir algumas interpretações contemporâneas das filosofias políticas de Kant e Hegel, o que diferencia as suas

157 posições não é a valoração, no primeiro, e a rejeição, no segundo, da liberdade, mas sim distintas compreensões da própria liberdade, o que forçosamente determina antagônicas visões no tocante à função da linguagem dos direitos na regulação da sociedade e do Estado.317

Até a emergência e posterior consolidação do positivismo jurídico ao final do século XIX, o discurso político e constitucional na Europa, entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, era preponderantemente articulado com referência a concepções do ius publicum tributárias da doutrina de Kant. Aliás, nesse primeiro momento, o próprio sentido de ius publicum era ainda bastante fiel à linguagem que, desde o final do século XVII, se consolidara nos círculos jusnaturalistas. Com efeito, uma das principais divisões do ius naturae era o chamado ius publicum

universale, que, combinado com a clássica prudentia civilis, era no ambiente iluminista

ensinado e discutido como um direito político (ou constitucional) segundo a razão (Staatsrecht nach Vernunft), sob a denominação de Direito Político natural (natürliches

Staatsrecht) ou Direito Político Geral (algemeines Staatsrecht). O elemento comum a

essas diversas concepções era a velha noção de que o Estado é o produto de um contrato livremente acordado entre indivíduos racionais, para por fim aos conflitos que prevaleciam nas relações humanas na condição natural pré-estatal. A certeza de que esse fictício consenso voluntário harmonizaria precisa e mecanicamente o exercício da autoridade política com a liberdade dos indivíduos repousava na crença de que também os governantes estariam submetidos a “normas transcendentais

317 Como assinala Enterría, se “toda a doutrina kantiana do direito está baseada na liberdade”, para Hegel a

liberdade “é a base inteira do direito”; ENTERRÍA, Eduardo García. La lengua de los derechos. La formación del

158 (revelação, ius divinum) e a normas de direito natural”, que se constituíam em Lex

Fundamentalis que eles deveriam obrigatoriamente observar. 318

A superação dessa concepção da liberdade jusnaturalista, contratualista e individualista foi o objetivo maior da Filosofia do Direito de Hegel, publicada em 1821. Embora partindo da mesma contraposição entre a coisa pública e o interesse privado que motivara o empreendimento revolucionário, que remonta à distinção do direito romano entre ius privatum e ius publicum, Hegel repudia a solução consolidada nos discursos liberais. Ele até acompanha Kant no atribuir um valor fundamental à noção de um direito à liberdade, qualificando-a mesmo como o elemento que distingue a modernidade das anteriores experiências sociais: “o direito à particularidade do sujeito em ver-se satisfeito, ou, o que é o mesmo, o direito da liberdade subjetiva, constitui o ponto crítico e central na diferença entre a Antiguidade e os tempos modernos”.319 Todavia, Hegel faz esses direitos subjetivos dependerem absolutamente

da lei, que confere à eticidade um conteúdo objetivo estável e superior aos caprichos privados.

Já em confronto direto com Kant, Hegel rejeita a ficção do contrato social como fundamento para o estabelecimento do Estado: o Estado não tem a natureza de contrato “e a sua essência substancial não é exclusivamente a proteção e a segurança da vida e da propriedade dos indivíduos isolados. É antes a realidade superior e reivindica até tal vida e tal propriedade, exige que elas lhe sejam sacrificadas”.320 Um

Estado que se orientasse teleologicamente à salvaguarda de interesses privados se degradaria em um instrumento manipulável consoante as conveniências dos

318 STOLLEIS, Michael. Public Law in Germany: 1800-1914, pp. 91-92. A exaustiva análise de Stolleis

desenvolve o que aqui pudemos apenas insinuar: a progressive passagem do bastão dos juristas kantianos para os hegelianos na conformação do Direito Público europeu do século XIX.

319 HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito, p. 110. 320 HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito, p. 89.

159 indivíduos: o Estado “é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever".321

Também em oposição a Kant, que considerava a Constituição a base da formação moral-racional do povo, Hegel reputava impróprio cogitar-se formalmente do estabelecimento de uma Constituição, já que isso pressuporia “que não existe nenhuma constituição e que apenas há um agregado atômico de indivíduos”. E, ao contrário, a Constituição é “o que existe em si e para si, o que deve considerar-se como divino e imutável e acima da esfera do que é criado”.322 Portanto, em oposição à

concepção kantiana da soberania popular como o fundamento da legitimidade da criação do direito,323 Hegel defendia a soberania “do todo” realizada “na pessoa do

monarca”, sem o qual “o povo é uma massa informe, deixa de ser um Estado e não possui qualquer das determinações que existem no todo organizado: soberania, governo, justiça, autoridade, ordens etc.”.324

Relevante da perspectiva histórica é que a subversão empreendida por Hegel no conceito de Constituição permitiu a ele oferecer uma solução para as reivindicações por segurança jurídica e política e estabilidade econômica veiculadas na Europa do século XIX, fazendo que as suas concepções prevalecessem sobre as

321 HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito, p. 217. Pérez Luño sustenta que a contradição entre a

noção hegeliana de Estado ético e o os requisitos do Rechtsstaat impediram a evolução do Estado Liberal de Direito europeu, cf. LUÑO, Antonio E. Pérez. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución, p. 221; no mesmo sentido, cf. KELSEN, Hans. Il problema della sovranità e la teoria del Diritto Internazionale, pp. 355- 356.

322 HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito, p. 217.

323 A formulação de Kant nesse ponto é particularmente expressiva: “A autoridade legislativa pode pertencer

apenas à vontade coletiva de todo o povo. (...) Quando alguém decide sobre outro, é sempre possível que ele faça mal ao outro; mas ele nunca pode fazer mal no que ele decide a respeito de si mesmo. (...) Portanto, apenas a vontade coletiva e concorde de todos, na medida em que cada um decide a mesma coisa para todos e

todos para cada um, e assim apenas a vontade coletiva geral do povo, pode ser legislativa”, in KANT,

Immanuel. The Metaphysics of Morals, pp. 457-458.

160 concepções kantianas e as expectativas que, a partir da das revoluções, se associaram ao direito, qualificado como um instrumento de limitação da política com vistas à tutela dos direitos individuais em uma sociedade de mercado. Aqui, como já afirmei, uma vez que a economia capitalista já estava consolidada como uma política de Estado, não havia espaço para projetos políticos que propugnassem a instauração de uma sociabilidade fundada numa nova moralidade econômica. Daqui em diante, e até as primeiras décadas do século XX, a Constituição passa a ser a ordem fundamental de uma sociabilidade que se assume baseada no mercado mas já agora sem política, erigida a “partir das vontades particulares das concretas forças sociais, mas de modo tal a produzir, ao final, a supremacia do universal, do interesse geral, da soberania do Estado”.325

Para a consolidação desse discurso político decisivos foram os eventos políticos ocorridos na Alemanha a partir da metade do século XIX: o malogro da revolução liberal de 1848 e a unificação da Alemanha sob a Constituição do II Reich. O movimento revolucionário de 1848 ensejou, na Alemanha, a instalação de uma Assembleia Constituinte, que editou, como lei constitucional, a “Lei dos Direitos Fundamentais do Povo Alemão”, de 1848, e elaborou a chamada Constituição de

Paulskirche (de Frankfurt), de 1849. Por força da reação monarquista, a nova

Constituição não chegou nem a entrar em vigor.326 Esse cenário se consolidaria com a

Constituição do Império (1867-71), que igualmente não teve êxito em submeter a monarquia ao princípio democrático — obviamente, no sentido e no limite dos interesses da sociedade comercial —, produzindo uma solução de compromisso entre

325 FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione, p. 135.

326 Um decreto federal de 1851 revogou formalmente os direitos fundamentais previstos na lei constitucional

161 monarquia e a burguesia. Segundo a Constituição, o fundamento da unidade do Império não era o povo alemão, mas sim uma união de monarquias, que, além da administração do Império e do controle das forças armadas, detinha competência para participar no processo legislativo ao lado do parlamento eleito (o Reichstag). De qualquer maneira, o fato de a Constituição haver unificado o Império e, pela primeira vez, o Jus Publicum vigente na Alemanha, exigia uma interpretação sistemática do direito, criando as condições históricas para a consolidação do positivismo dogmático.

Consolidar esse projeto político, e isso, alegadamente, na via de uma teoria estritamente jurídica, apolítica, foi o encargo assumido pela maioria dos publicistas europeus a partir da segunda metade do século XIX. Carl von Gerber foi o primeiro autor de expressão a acolher esse novo discurso sobre o direito e a política que, diferentemente do que até então assumiam ostensivamente os juristas, se pretendia antipolítico. Segundo Gerber, a teoria jurídica só poderia abordar o Estado com referência a seus aspectos jurídicos, utilizando a dogmática do Direito Privado, pois que os conceitos civilistas fariam um “trabalho de carpintaria na construção do inteiro edifício do Direito do Estado”.327

Paul Laband daria continuidade a esse projeto de elaboração de uma compreensão positivista do direito, “pura, liberta de todos os elementos ‘não-jurídicos’ mediante a exclusão da história, da filosofia e de pontos de vistas políticos”.328

tomando por referência a Constituição do II Reich, Laband considerava o Jus Publicum algo estritamente lógico, cujo entendimento dispensaria a apreciação de qualquer elemento metajurídico. A função da teoria jurídica, no sentido de uma “teoria científica da dogmática de um determinado direito positivo”, era criar institutos jurídicos,

327 Cf. GERBER, Carl. Diritto Pubblico, pp. 29-41.

162 reconduzir as proposições jurídicas a conceitos gerais e, em seguida, extrair desses conceitos novas implicações. Enfim, uma teoria jurídica legítima deveria limitar-se a identificar precisamente os conteúdos jurídicos positivados e a apreendê-los logicamente a partir dos conceitos já estabelecidos.329 Nem mesmo a Constituição

estaria excluída dessa dinâmica, já que, sendo apenas uma construção jurídica concreta, ela também demandaria uma aplicação baseada nos conceitos jurídicos gerais. Como para Gerber, o modelo de Laband era a dogmática civilista, pois que os diversos conceitos formulados no domínio do Direito Civil seriam na realidade conceitos gerais do direito que apenas careciam de ser depurados dos seus traços especificamente privatistas. Portanto, embora “a simples transposição de princípios e regras de direito civil às relações do Direito do Estado” fosse equivocada, a crítica à metódica civilista não poderia dar margem à substituição da análise jurídica do direito por abordagens filosóficas ou políticas.330

No seu discurso juspositivista, Gerber e Laband demonstraram pouquíssima preocupação com os pressupostos metodológicos que deveriam informar as ciências sociais. Essa “lacuna” no trabalho dos dois principais expoentes do positivismo teórico evidencia que o seu esforço de construir uma metódica jurídica isenta de considerações políticas não decorria de uma exigência intelectual puramente lógica, mas sim das circunstâncias históricas em que se viu enredada a Alemanha àquele momento. Por conta da conformação política resultante do fracasso da revolução liberal de 1848 e da unificação da Alemanha sob a Constituição do Império Guilhermino, a burguesia alemã se viu forçada a contentar-se com a salvaguarda de sua

329 LABAND, Paul. Le Droit Public de l’Empire Allemand, vol. I, pp. 1-3.

330 Na avaliação de Laband, a situação verificada no Império era tal que o maior risco para o Direito Público

não era o de tornar-se excessivamente civilista, mas sim o de perder o seu caráter jurídico e degradar-se em meros comentários políticos circunstanciais — “literatura política de jornal” (cf. LABAND, Paul. Le Droit Public

163 liberdade — principalmente, a sua liberdade econômica — em face do Estado, em detrimento da luta por participação na própria formação da vontade do Estado. 331