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A pobreza franciscana e o dominium: o debate sobre a origem da linguagem dos direitos subjetivos

A POLÍTICA DOS DIREITOS COMO HISTÓRIA

2. A linguagem pré-moderna dos direitos

2.2 A pobreza franciscana e o dominium: o debate sobre a origem da linguagem dos direitos subjetivos

Hoje está consolidado na cultura ocidental o uso do termo direito (right,

recht, droit, diritto, derecho) para indicar as posições subjetivas que a ordem jurídica

confere aos indivíduos e às pessoas jurídicas. Todavia, nos seus primeiros usos, direito se predicava simplesmente do que era considerado reto (orektos, inicialmente em grego; rectus, em seguida, no latim), correto, justo. Um uso que simplesmente transpunha para o domínio moral a ideia de “retidão” que uma coisa poderia ter no mundo físico.213 Seja no domínio moral ou físico, dizer que algo era direito era dizer

que ele era um padrão objetivo de medida ou que ele assim era avaliado quando medido com base num padrão objetivo preexistente. Mas quando, então, esse uso de direito no sentido objetivo de padrão de medida de condutas passou a ser

212 Cf. KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado — Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático, p. 210.

104 acompanhado desse sentido subjetivo a nós agora reconhecível — e, para muitos de nós, o seu sentido principal ou, quem sabe, o único — de um direito a alguma coisa?

Antes de responder a essa questão, é oportuno considerar a linha de argumentação baseada na ideia de que não é fundamental para o reconhecimento da recepção ou uso de um conceito a sua articulação linguística, a existência de um termo para enunciá-lo expressamente. Alan Gewirth, por exemplo, tem enfatizado que esse fenômeno teria ocorrido com respeito à noção de direito subjetivo, que, conquanto sem um reconhecimento explícito antes da modernidade, era uma categoria já reconhecida e utilizada pelas sociedades primitivas e, a partir daí, pela cultura hebraica, pelos gregos, no direito romano e no direito feudal.214 Tomando como

exemplo a sua argumentação com respeito ao direito romano — tendo em conta a sua relevância para a discussão que se segue —, Gewirth sustenta que mesmo os autores que, como Villey, não admitem direitos no sentido subjetivo em Roma pressupõem a sua existência ao fazer uso de expressões como “um direito” quando citam e interpretam os textos clássicos.215 O que se nota nessa argumentação de Gewirth é que

ele confunde a qualificação que se sempre se fez nas sociedades humanas, inclusive na sociedade romana, acerca de uma determinada condição como correta, justa — uma qualificação, que com independência do termo usado para verbalizá-la, claramente tem o sentido objetivo de medida dessa condição com base em algum padrão — com a absolutamente distinta asserção que aquela condição atribui a alguém um direito a algo, com todas as consequências daí decorrentes.

214 Cf. GEWIRTH, Alan. Reason and Morality, p. 99. Com a mesma argumentação, cf. GEWIRTH, Alan. “Is

cultural pluralism relevant to moral knowledge”, p. 25-26. Uma posição, nada obstante a sua precária base histórica, de amplo acolhimento institucional já desde há algum tempo, como o evidencia um precursor documento da UNESCO de 1949, identificando uma “ampla aceitação do conceito de direitos do homem” já na antiguidade, e a sua discussão em termos filosóficos não só no Ocidente mas também nas culturas orientais (cf. UNESCO. Human Rights. Comments and Interpretations, p. 260).

105 Retornando à questão proposta, se a respondermos tomando por referência, como tem sido frequente nos debates doutrinários, o impressionante

continuum de argumentos elaborados e reelaborados por Michel Villey, em uma série

de artigos publicados entre as décadas de 1940 e 1960,216 concluiríamos que a ideia de

direito subjetivo foi um produto do nominalismo do século XIV, particularmente, de Guilherme de Ockham, no curso do grande debate entre franciscanos e dominicanos sobre o problema da pobreza e a propriedade dos bens: “eu tenho a intenção de mostrar-lhes que também a ideia de direito subjetivo procede do nominalismo, e se explicita com Occam”.217 Segundo Villey, a noção de direitos, no sentido moderno de

um direito subjetivo, não era conhecida pelos romanos e pelos primeiros glosadores da

civilis scientia, nem era com esse significado reconhecida no direito natural clássico.O cerne do argumento de Villey é que os romanos jamais usaram a palavra ius para referir-se ao que deveria ser o direito subjetivo fundamental: a propriedade (dominium). E, se a propriedade não era considerada um direito subjetivo, isso só poderia demonstrar que não haveria um ius como um direito subjetivo para os romanos.218 Ainda que se reconhecesse ao dominus o poder de usar e desfrutar da sua

propriedade, esse poder, segundo Villey, não seria decorrente do direito, mas algo pré- jurídico, apenas regulável pelo direito civil.

216 Tentando seguir a cronologia, mas, provavelmente, omitindo algum trabalho, são os seguintes os artigos

em que Villey apresentou a sua tese: “L’idée du droit subjectif et les systèmes juridiques romaines” (1946); “Du sens d l’expression jus in re en droit romain classique” (1949); “Le ‘jus in re’ du droit romain classique au droit moderne” (1950); “Les origins de la notion du droit subjectif” (1962); e “La genèse du droit subjectif chez Guillaume d’Occam” (1964). Eles estão agora incorporados às obras Leçons d’histoire de la philosophie du

droit (1962) e La formation de la pensée juridique moderne (1968).

217 VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 225 (preservou-se a forma francesa do

nome de Ockham).

218 Na sua formulação final: “Não há no direito romano definição do conteúdo do pretendido direito subjetivo

de propriedade”, in VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 235. Cf. ainda VILLEY, Michel. “L’idée du droit subjectif et les systèmes juridiques romaines”, pp. 215-221; e VILLEY, Michel. “Les origins de la notion du droit subjectif”, pp. 168-177.

106 Para chegar a essa impactante conclusão, Villey partiu de um background intelectual no qual se divisava uma confrontação radical entre um mundo clássico aristotélico, onde florescia uma virtuosa concepção objetiva e racional do direito, e um mundo medieval sem balizamento jurídico e, portanto, propício à irrupção de uma revolução individualista dos direitos subjetivos.219 Entre esses dois mundos, uma longa

era de trevas, marcada por uma sucessão de manifestações egoístas — conquistas de reinos pela guerra, contratos hierarquizados de feudum, movimentos de constituição de corporações, comunas etc. —, enunciadas como demandas vulgares com pretensão jurídica de reconhecimento de posições subjetivas. Esse impulso egoísta tinha, certamente, uma base antropológica, todavia, segundo Villey, ele foi exacerbado pela recepção no domínio político e jurídico de uma noção deformada do dogma cristão da alma e da consequente crença na busca individual da salvação como a expressão mais qualificada de vida.220

O ponto de partida da argumentação de Villey é a ideia de que um direito subjetivo expressa necessariamente um poder que o indivíduo detém, algo que é inerente à sua pessoa. Como tal, o direito subjetivo pressupõe a combinação de duas noções — direito (ius) e poder (potestas) — que até o século XIV eram absolutamente independentes. Para Villey, o direito natural aristotélico-tomista e o direito romano eram conceitualmente incompatíveis com a noção de direito subjetivo, já que dikaion e

ius denotavam apenas o que, de uma perspectiva objetiva, era considerado direito,

justo. Portanto, ao invés de conferir um poder, esse direito limitava-o.221

219 A discussão que se segue sobre a tese de Villey baseia-se no seu artigo “La genèse du droit subjectif chez

Guillaume d’Occam”, de 1964, posteriormente incorporado, com algumas modificações, ao livro La formation

de la pensée juridique moderne, citado aqui pela edição de 1975.

220 Cf. VILLEY, Michel. “La genèse du droit subjectif chez Guillaume d’Occam”, pp. 97-98.

221 “O que é o direito — dikaion ou ius? Para São Tomás de Aquino (assim como para Ulpiano ou Aristóteles) o

107 Villey reconhecia a existência de rudimentos de um uso vulgar de ius com o sentido equiparável a de um direito subjetivo antes do século XIV. Esse uso vulgar, ainda que ocasionalmente presente na Roma antiga, por conta do egoísmo inerente ao ser humano, teria adquirido uma maior relevância a partir da queda do Império Romano, o que determinou o desaparecimento, durante séculos, do trabalho criativo dos jurisprudentes, cuja função era precisamente a busca do justo.222 Nessa

cosmovisão “antijurídica”, porque sem juristas, a ordem natural objetiva foi destronada e o mundo entregue à factualidade do passado, ao costume, aos “despojos” do direito romano, permitindo a cada um conceber uma “lista dos seus direitos, daqueles direitos que se pretendia ter por direito escrito: direitos do imperador contra o papa, direitos dos reis contra seus súditos (jura regalia), direitos de determinado senhor ou de determinada corporação ou de determinada classe de indivíduos; direitos que se afiguravam como um contraponto do poder de cada um e que eram mais ou menos confundidos com esse poder”.223 Para Villey, esse uso vulgar da

linguagem dos direitos durante a Idade Média, produto de um individualismo desordenado, liberto dos constrangimentos jurídicos, caracterizaria apenas um “deslizamento (glissement)” prático do termo ius em direção à noção de poder. Um uso tão sem rigor que não seria possível reconhecer nele o sentido pleno de ius como um direito subjetivo.224

objetiva, a justa proporção descoberta entre os poderes cometidos ao rei, aos guardiões, às outras classes de cidadãos (na República de Platão), entre os respectivos patrimônios de dois proprietários vizinhos, ou que mantêm relação em algum assunto, como a vítima de um dano e o causador deste, o credor e o seu devedor”,

in VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 229.

222 “Assim também, o ofício do jurista, segundo essa filosofia [a filosofia clássica do direito natural], não é o de

servir ao indivíduo, à satisfação dos seus desejos, à proclamação de seus poderes; (...) o jurista é ‘sacerdote da justiça’ (sacerdotes justitiae, diz Ulpiano sobre os jurisprudentes). Ele procura o justo, esse valor assim estritamente definido, que é harmonia, equilíbrio, boa proporção aritmética ou geométrica entre as coisas ou as pessoas”, in VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 229.

223 VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 238.

108 Todo esse quadro seria modificado, segundo Villey, a partir da inovadora contribuição filosófica de Guilherme de Ockham no curso das discussões teológicas sobre a pobreza apostólica e a propriedade das coisas.225 O motor histórico imediato

das discussões eram as preocupações dos franciscanos quanto à possibilidade prática de se vivenciar a pobreza absoluta, que eles pregavam ser o elemento que distinguia a vida comunal do Cristo, dos apóstolos e de São Francisco. Afinal, ainda que frugais, os franciscanos utilizavam alguns bens, comiam alguma coisa. Estariam eles, nesses casos, sendo proprietários e, portanto, em contradição com a pobreza evangélica? Até então, os franciscanos defendiam, com o respaldo da bula Exitt qui seminat, que o uso que eles faziam era um mero consumo das coisas materiais comuns a todos os homens, um

simplex usus facti, distinto de outras relações que podiam se estabelecer entre a pessoa

e a coisa privada (proprietas, possessio, usufructus, ius utendi etc.), na qual haveria de fato um dominium.226

Essas preocupações ascéticas se inseriam num contexto político e teológico mais amplo, dominado pelo conflito entre os franciscanos e os dominicanos. No século XIII, um dos expoentes da ordem dominicana, São Tomás de Aquino, com o evidente propósito de embaraçar a defesa que os franciscanos faziam da pobreza como um padrão evangélico, se apropriou de uma construção formulada pouco antes pelos glosadores, para avançar significativamente em relação à distinção característica do

225 Para a dimensão jurídica da querela sobre a pobreza franciscana, para Villey “um dos acontecimentos

capitais da história da filosofia do direito”, cf. VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, pp. 190-198; TUCK, Richard. Natural Rights Theory. Their origin and development, pp. 17-24; e TIERNEY, Brian.

The idea of natural rights. Studies on Natural Rights, Natural Law, and Church Law (1150-1625), pp. 29-31. 226 A Exitt qui seminat foi emitida em 1279 pelo Papa Nicolau III. No processo de crescente juridicização

canônica das questões decorrentes do discurso franciscano sobre a pobreza, já haviam sido anteriormente emitidas as bulas Quo elongati, de 1230, do Papa Gregório IX, e Virtute conspicous, de 1268, de Alexandre IV. Na visão impiedosa de Villey, essas diversas bulas erigiram um regime jurídico para a vida monástica franciscana com base no qual “o papado, generoso, retinha para si todas as responsabilidades e aborrecimentos decorrentes da propriedade, enquanto os franciscanos detinham o seu uso”, in VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne, p. 194.

109 direito romano entre dominium, a propriedade da coisa, e possessio, a ocupação e o uso da coisa sem ter a propriedade sobre ela. Nessa questão, uma primeira distinção já era conhecida no direito romano a partir do diferente tratamento conferido ao tema pelo

ius naturale e pelo ius civile. Com efeito, a preocupação dos jurisprudentes em não

permitir uma fundamentação natural para a escravidão impedia a aceitação, no âmbito do ius naturale, de dominium sobre as pessoas e, por extensão, às coisas. No ius civile, ao contrário, os acordos firmados entre os homens poderiam levar à constituição de pleno dominium sobre as coisas. Assim, no âmbito do ius naturale, os homens eram apenas usufrutuários das coisas e dos seus frutos, mas não detinham a propriedade dessas coisas. Todavia, um passo decisivo nesse contexto foi dado com a inovação terminológica introduzida pelos glosadores do século XIII, ao falar do usufruto como um dominium utile, distinto do verdadeiro dominium, do dominium directum, exercido pelo proprietário.227

Nesse ponto a questão estava madura para a revolucionária intervenção de São Tomás de Aquino. E ela se deu ao ensejo da discussão da Quaestio 66, articulum 1, da Secunda Secundae, em que Aquino examinou se o ius naturale permitiria a posse de coisa material (“possessio exteriorum rerum”). Do ponto de vista teológico, o problema era suscitado pelo versículo primeiro do Salmo 23, que dizia que “dominium

omnium creaturarum est proprie Dei”, o que, numa exegese literal, vedaria ao homem

possuir coisas materiais.228 Acolhendo quase que literalmente a distinção entre dominium directum e dominium utile formulada pelos glosadores, Aquino reconhecia,

227 Tuck atribui a inovação lingüística a Accursius, entre 1220 e 1230, mencionando a crítica a ela feita por

Balduini, seu oponente na Escola de Bolonha: o dominium utile é uma “quimera”; cf. TUCK, Richard. Natural

Rights Theory. Their origin and development, p. 16.

228 A passagem está no Salmo 23 na versão latina usada por São Tomás de Aquino. Na versão protestante do

Velho Testamento, a passagem corresponde ao Salmo 24:1 e tem o seguinte teor: “Ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam”(ed. revista e atualizada da tradução de João Ferreira de Almeida).

110 de um lado, que Deus tinha um domínio soberano sobre todas as coisas (“principale

dominium omnium rerum”); todavia, argumentava que o próprio Deus havia separado

algumas coisas para a subsistência do homem, e sobre essas coisas o homem tinha um domínio natural com respeito ao poder para usá-las (“naturale rerum dominium

quantum ad potestatem utendi”).229 Assim, ele respondia a questão reconhecendo uma

até então inédita possibilidade de um dominium no ius naturale, e o fazia já sem assentar qualquer qualificação restritiva sobre esse dominium:

“As coisas materiais podem ser consideradas de dois modos. Primeiro, quanto à sua natureza: e isso não está sujeito ao poder do homem, mas apenas ao poder de Deus, a quem todos as coisas são obedientes. O segundo modo diz respeito ao próprio uso das coisas. E aqui o homem tem um domínio natural sobre as coisas materiais (“Et sic habet

homo naturale dominium exteriorum rerum”), porquanto, por sua razão e

vontade, ele é capaz de usar as coisas materiais para a sua utilidade, como se elas fossem feitas sob sua responsabilidade. (...) É por meio desse argumento que os filósofos provam (Política) que a posse das coisas materiais é natural ao homem (quod possessio rerum exteriorum

est homini naturalis). Ademais, esse domínio natural sobre outras

criaturas (autem naturale dominium super ceteras creaturas), que compete ao homem em razão de consistir ele em imagem de Deus, manifesta-se já na criação do homem, Gênesis I, onde se diz: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança, tenha ele domínio sobre os peixes do mar, etc.”.230

No desdobramento desse mesmo quesito, Aquino enfrentou a decisiva questão atinente à licitude de os pobres, a título de reivindicação da sua cota nas coisas concedidas comunalmente por Deus, se utilizarem dos bens mantidos sob dominium privado para atender as suas necessidades de subsistência. De fato, a mera defesa da compatibilidade do ius naturale com a posse privada de bens poderia ser invocada para impugnar a doutrina até então dominante na igreja, na linha de que a individuação da propriedade comunal não podia impedir as demais pessoas de

229 AQUINO, São Tomás. Summa Theologiae, IIª-IIae q. 66 a. 1 arg. 1.

111 também usarem os bens que pertenciam a Deus e que haviam sido por ele ofertados como uma propriedade comunal entregue ao cuidado de todos. Para refutar essa possibilidade, Aquino introduziu na sua discussão da Quaestio 66 da Secunda Secundae, no articulum 7, uma argumentação que pretendia conciliar a doutrina tradicional da igreja com a sua revolucionária defesa da existência de dominium no ius naturale. Para tanto, ele, de um lado, sustentou que a atribuição a um indivíduo de uma parte dos bens concedidos coletivamente à humanidade permitiria um uso mais eficiente da comunidade dos bens pertencentes a Deus, o que beneficiaria inclusive os pobres. Todavia, de outro lado, ele reconheceu que, nos casos de manifesta urgência, quando os pobres se vissem em situação de risco iminente, e não havendo outro modo para atendê-los (et aliter subvenire non potest), eles poderiam suprir licitamente as suas necessidades valendo-se das coisas sob dominium privado, tomando-as ostensivamente ou ocultamente (“licite potest aliquis ex rebus alienis suae necessitati

subvenire, sive manifeste sive occulte sublatis”).231

Com essa doutrina da propriedade, São Tomás de Aquino enunciava ideias que, como veremos em seguida, teriam uma imensa repercussão nos debates travados no Ocidente sobre os direitos e a propriedade, e isso até o século XVIII. Demais disso, no âmbito dos seus embates político-teológicos imediatos, ele conseguia colocar em cheque o argumento em que até então se baseavam os franciscanos para se dizerem observadores da pobreza evangélica. É dizer, o simplex usus facti que os franciscanos diziam deter sobre as coisas necessárias para a sua subsistência configurava um naturale rerum dominium quantum ad potestatem utendi; e, portanto, ao contrário do que pregavam, os franciscanos não viviam na pobreza.

112 A reação a São Tomás de Aquino foi, inicialmente, empreendida pelo franciscano John Duns Scotus. Scotus, basicamente, renovou o entendimento que vigorou do direito romano clássico até o século XIII: o dominium não era algo que existia naturalmente no homem no seu estado de inocência, na sua relação direta com o mundo; ele só existiria na vida civil, se e quando, mediante a permissão divina, os bens comunais fossem apropriados e distinguidos pelas leis humanas.232 Portanto, o

uso que o homem, em comunhão com os outros homens, fazia das coisas que a natureza ofertava para a sua subsistência não era um dominium utile. Todavia, Scotus, sutilmente, reformulava a distinção entre a vida natural do simplex usus facti e a vida civil do dominium em termos acentuadamente axiológicos: a vida natural de pobreza dos franciscanos era moralmente superior à vida daqueles que se perdiam no artificialismo das relações civis baseadas na propriedade privada; e, mais importante, essa vida de pobreza poderia ser praticada por todos.

Essas implicações morais do argumento franciscano alarmaram o papado de Avignon, levando à edição pelo Papa João XXII das bulas Ad conditorem

canonum, de 1322,233 Cum inter nonnullos, de 1323,234 e Quia vir reprobus, 1329, na

qual, contra os franciscanos, decidiu-se que todos os tipos de relação que os homens tinham com o mundo material, inclusive o simplex usus facti, eram, numa escala reduzida, equivalente ao dominium que Deus mantinha sobre o universo. Em ataque direto à argumentação de Scotus, a Quia vir reprobus afirmava que mesmo antes da

232 Villey destaca criticamente que, afora alguns exemplos extraídos do Velho Testamento, toda a

argumentação de Scotus para a origem do dominium privado se baseava na doutrina agostiniana da distribuição dos bens comunais por meio da lei positiva; cf. VILLEY, Michel. La formation de la pensée