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HISTÓRIA E META-HISTÓRIA DA POLÍTICA E DO DIREITO: AS LINGUAGENS DA POLÍTICA OCIDENTAL

2. Texto e contexto: as histórias do pensamento político e jurídico ocidental 1 A história tradicional do pensamento político e jurídico

2.4 A compreensão histórico-conceitual da política e o problema da política pré linguística

O entendimento acerca dessa metódica histórica de Cambridge pode ser aprofundado quando a comparamos com outra importante abordagem da história das ideias políticas, como é o caso da chamada compreensão histórico-conceitual desenvolvida por Reinhart Koselleck. Nos seus traços gerais, essa concepção da política

histórico-conceitualmente orientada acolhe a crença no caráter estruturante da linguagem para a história e a política, do mesmo modo que o faz a metódica contextualista de Cambridge. E, de modo similar ao que se verifica no âmbito daquela Escola, aqui a relação entre a história da política e a linguagem é, por igual, concebida em termos de uma recíproca interação:

“Toda linguagem é historicamente condicionada, e toda história é linguisticamente condicionada. Quem poderia negar que todas as concretas experiências que vivemos tornaram-se experiências apenas por efeito da mediação da linguagem? É precisamente essa mediação que torna a história possível”.127

126 VILE, M. Constitutionalism and the Separation of Powers, p. 387. Para uma análise que distingue a

concepção pré-moderna do governo misto da doutrina liberal da separação dos poderes a partir das crenças presentes nos distintos contextos históricos em que elas se inseriram (a ética política e a “psicologia do medo”, no primeiro caso; e a ética individualista e a confiança popular, no segundo), cf. CASTRO, Marcus Faro. “Violência, Medo e Confiança: Do Governo Misto à Separação dos Poderes”.

127 KOSELLECK, Reinhart. ““Linguistic change and the history of events”, p. 649. Apenas para ilustrar, registre-

se aqui um reconhecimento expresso por parte de autores vinculados à Escola de Cambridge quanto à sua afinidade, nesse aspecto, com a compreensão de Koselleck: “O que nós compartilhamos com eles [Bruner, Conze e Koselleck], entretanto, é a convicção comum de que falar uma linguagem implica criar um mundo, e alterar os conceitos constitutivos dessa linguagem implica nada menos do que refazer o mundo. Do mesmo modo que o mundo da política é lingüisticamente e comunicativamente constituído, a mudança conceitual deve ser compreendida politicamente, e a mudança política deve ser compreendida conceitualmente”, in BALL, Terence; FARR, James; e HANSON, Russel L. Political innovation and conceptual change, s. p.

63 Todavia, a despeito dessa crença comum, a abordagem de Koselleck distingue-se significativamente da metódica contextualista de Cambridge num ponto fundamental: a enfática reivindicação da necessidade de se manter uma diferenciação analítica entre história e linguagem, em face da impossibilidade de se reduzir uma à outra: “Entre a linguagem e a ação — e, também se poderia dizer, entre a linguagem e a paixão — subsiste uma diferença, mesmo que a linguagem seja um ato de fala, e mesmo que a ação e a paixão sejam mediadas pela linguagem”. Koselleck considera que o debate metodológico contemporâneo perdeu essa necessária diferenciação entre a história e a linguagem, ou, em outros termos, entre a realidade e o pensamento. Nessas metodologias privilegiam-se formulações mais brandas, que permitam mais facilmente relacionar os dois polos em contraste, como por exemplo, “sentido e experiência” ou “texto e contexto”, na qual desaparece por completo a diferença entre condicionantes linguísticas e não linguísticas da compreensão da história.128 A

explícita referência ao moto da Escola de Cambridge é uma crítica de Koselleck ao que ele considera ser uma negligência dos autores vinculados a essa metódica na percepção da diferença entre elementos linguísticos e não linguísticos da história da política.

E, em função dessa diferença, Koselleck sustenta a necessidade de que uma compreensão histórico-conceitualmente orientada da política, que ele designa pelo neologismo Histórica (Historik), reconheça a possibilidade de uma história que não se articula em termos da linguagem. Essa Histórica, distinta tanto da Geschichte, a história propriamente, quanto da Historie, a historiografia, a narração, a crônica dos eventos ocorridos historicamente, diria respeito à “doutrina acerca das condições de

64 possibilidade das histórias (Geschichten)”, a “uma teoria da história (Theorie der

Geschichte) que não estuda os achados de histórias passadas determináveis

empiricamente, mas sim as condições de possibilidade de uma história”. 129

A possibilidade de que um determinado fenômeno histórico não alcance uma enunciação linguística já havia sido reconhecida por Charles Taylor no âmbito da sua discussão das “práticas sociais”.130 Para Taylor, apenas as práticas qualificadas

como sociais são language-dependent, ou seja, precisam de um vocabulário particular para que sejam reconhecidas. Outras realidades existiriam na sociedade que não careceriam de uma linguagem específica para descrevê-las. Koselleck, no âmbito do seu debate com Gadamer acerca da hermenêutica da história, chegará a resultados similares, embora a partir de pressupostos bem diferenciados.

Embora se inscrevendo na tradição da hermenêutica da compreensão (Verstehen) de Schleirmacher e Dilthey, o sentido da hermenêutica gadameriana identifica-se mais claramente com a noção de compreensão que Heidegger havia formulado em Ser e Tempo. Para Heidegger, a compreensão, em primeiro lugar, mais do que um empreendimento cognitivo (episteme), é algo prático (phronesis); é uma capacidade, uma possibilidade existencial. Em segundo lugar, a compreensão é sempre auto-compreensão. Compreender envolve necessariamente o indivíduo implicado no processo de compreensão, e isso no sentido de que toda compreensão é uma interpretação (Auslegung) do próprio ser que está aí no mundo compreendendo e das suas possibilidades de compreensão.131 A partir desse referencial, Gadamer assenta a

129 KOSELLECK, Reinhart. “Histórica y Hermenéutica”, pp. 69-70. Para o relato do próprio Koselleck acerca da

história da distinção terminológica entre Geschichte e Historie, cf. KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”, pp. 48-51.

130 Cf. TAYLOR, Charles. Philosophy and the Human Sciences. Philosophical Papers, pp. 32-34.

131 Se hoje é corrente a idéia de que a compreensão histórica pressupõe a historicidade do indivíduo no

65 sua própria ideia da compreensão por introduzir um elemento que não se revelara tão essencial à concepção de Heidegger: a linguagem. A dimensão linguística (Sprachlichkeit) é decisiva para a compreensão porque ela fundamenta a universalidade da experiência hermenêutica. No sentido gadameriano, compreender é sempre articular em palavras — ou, ao menos, é a possibilidade de fazê-lo — um fato, um significado. Mas o que dizer das experiências de compreensão que não podem ser enunciadas linguisticamente, como, por exemplo, a experiência musical? Gadamer sustenta que o ouvinte só terá compreendido a música quando ele, interpretando-a, busca palavras para articular a sua compreensão. Portanto, mesmo essas experiências que parecem não se reconduzir a palavras, ao serem compreendidas, ao serem objeto de atribuição de um sentido, estarão aptas a uma eventual "linguistificação".

Especificamente no tocante à compreensão da experiência histórica, Gadamer é enfático no condicionar-lhe à mediação linguística: a linguagem “é a primeira interpretação global do mundo, e, por isso, não pode ser substituída por nada. Para todo pensamento crítico de nível filosófico, o mundo é sempre um mundo interpretado linguisticamente”.132 Todavia, ele não deduz desse reconhecimento uma

mera equiparação da nossa experiência no mundo aos processos linguísticos que a articulam.133 Ao contrário, no esforço de distinguir o fenômeno enunciado

linguisticamente da dinâmica que o enuncia com a linguagem, Gadamer avança até ao ponto de admitir que a história supera a hermenêutica, que a história impõe limites à pretensão de atribuição de sentido inerente ao intento interpretativo. Esse aspecto é,

do que deve se tornar objeto da História já está presente na escolha da facticidade existencial do Dasein, em quem encontra a sua origem e apenas onde ela pode existir”, in HEIDEGGER, Martin. Être et Temps, p. 392.

132 GADAMER, Hans-Georg. “La historia del concepto como filosofia”, p. 83.

133 Os argumentos de Gadamer recolhem-se no texto em que ele responde as críticas que, entre outros,

Habermas e Apel fizeram a Verdade e Método (cf. GADAMER, Hans-Georg. “Réplica a Hermenêutica y crítica de

66 segundo Gadamer, potencializado pela maior liberdade do historiador frente aos elementos textuais, comparativamente àquele que pratica a exegese bíblica e a filologia, principalmente, e a hermenêutica jurídica. Nesses âmbitos, afigura-se mais defensável a intenção de se atribuir aos textos um sentido autêntico. Todavia, o historiador quer compreender uma realidade que apenas parcialmente está nos textos, uma realidade presente na história que se pretende conhecer e que, ainda quando meta-textual, será sempre linguística.

Avaliando essas sugestões, Koselleck qualifica como quase uma “ironia” que “o sem sentido (Unsinn) linguístico possa ser elucidado linguisticamente”, que os limites que, segundo Gadamer, a história impõe à pretensão hermenêutica tenham que ser contornados com referência aos elementos inarredavelmente linguísticos da experiência. A partir dessa crítica, Koselleck avança significativamente em relação às posições de Gadamer, para sustentar a tese de que a existência de possibilidades históricas extralinguísticas conferiria à Histórica um status epistemológico mais qualificado do que o de um mero caso particular da hermenêutica. Essa “Histórica pré- linguística” estaria preocupada com o sentido histórico de fenômenos que não podem se reconduzidos, para usar a terminologia da metódica de Cambridge, a speech-acts enunciados por atores políticos num determinado contexto histórico.134 E, segundo

Koselleck, esses elementos pré e extralinguísticas, que o ser humano compartilha com os animais por força de fatores geográficos e biológicos, estabelecem determinadas condicionantes meta-históricas para as possibilidades da história.

Num texto publicado em 1989, Koselleck discutiu três dessas condições pré-linguísticas meta-históricas: i) a temporalidade histórica, delimitada pelos eventos

67 do nascimento e da morte; ii) a espacialidade histórica, definida em termos da antítese interior e exterior; e iii) a oposição entre o superior e o inferior, evidenciada tradicionalmente pela relação de hierarquia entre o senhor e o escravo. Segundo Koselleck, a existência dessas condições é independente das particulares formas que elas assumem em âmbitos específicos, como o político, o econômico, o social ou o religioso.135 Anteriormente, no texto “Histórica y Hermenéutica”, Koselleck havia

desenvolvido algumas dessas condições meta-históricas em âmbitos específicos, produzindo cinco pares antitéticos que descreveriam o que ele denominou de “algo assim como a estrutura fundamental temporal das histórias possíveis”: i) a oposição “antecipar à morte (Vorlaufen zum Tode)” e “poder matar” — “sem a capacidade de poder matar seus semelhantes, sem a capacidade de poder abreviar violentamente o lapso de vida dos outros, não existiriam as histórias que todos conhecemos”; ii) a oposição “amigo”/ “inimigo”; iii) a oposição “interior”/“exterior”; iv) uma categoria indicada pelo neologismo “generatividade”, que se “refere à coação para aceitar o próprio Dasein e, falando empiricamente, ao nascimento com que se inicia a vida e, portanto, também à morte”; e v) o par “senhor”/”escravo”.136

Portanto, essas categorias antitéticas são “constitutivas da formação, do desenvolvimento e da eficácia das histórias”; elas ilustram “as estruturas da finitude que, por excluírem-se mutuamente, evocam tensões temporais necessárias entre e dentro das unidades de ação”. Elas, enfim, expressam a “finitude temporal em cujo horizonte surgem tensões, conflitos, fraturas, inconsistências que, no estado em que se encontram, sempre parecem insolúveis, porém em cuja solução diacrônica devem

135 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Linguistic change and the history of events”, pp. 650-1. Aqui como no texto

“Histórica y Hermenéutica” não resta esclarecido se essa tipologia básica exaure ou meramente ilustra as condições meta-históricas extralingüísticas.

68 participar e ativar-se todas as unidades de ação, seja para continuar vivendo, seja para ir a pique”.137

3. Intermezzo – Um excursus sobre anacronismo: história e meta-história do