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A POLÍTICA DOS DIREITOS COMO HISTÓRIA

4. A despolitização e a “desmoralização” da linguagem dos direitos 1 Depois da revolução dos direitos

4.3 A linguagem dos direitos públicos subjetivos

O impressionante predomínio no discurso jurídico e político contemporâneo da linguagem dos direitos deve-se em grande medida ao êxito histórico, nas lutas desencadeadas na Europa a partir do século XIX, de uma ideia fundamental: o conceito de direitos públicos subjetivos. Obviamente, a análise dessa ideia é aqui importante tão-somente no que ela pode explicar sobre os traços fundamentais da feição histórica que a linguagem dos direitos assumiria no âmbito dos discursos jurídicos e políticos enunciados no Jus Publicum Europeaum a partir do final do século XIX. Com isso, assumimos como incompatível com os propósitos desta tese adentrar na discussão do anterior noção que está na base e a partir da qual, num processo de especificação, se constrói o conceito dos direitos públicos subjetivos: o próprio conceito de direito subjetivo.332 Por evidente, mesmo reconhecida a

consolidação do direito subjetivo como um god-term da teoria geral do direito, e não mais como uma categoria exclusivamente jusprivatista, não se justificaria num trabalho de Direito Constitucional aventurar-se no enfrentamento de uma questão tão

331 Müller avalia que, em contradição com o seu discurso, a dogmática de Laband foi “tanto expressão quanto

instrumento de uma política materialmente determinada”, dirigida a “proteger, contra críticas possíveis, a concepção monárquico-conservadora do Estado, a política antiliberal de Bismarck e, genericamente, as relações políticas e constitucionais existentes” (MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito

Constitucional, p. 35).

332 Essa delimitação do escopo da análise é recorrente em trabalhos orientados por preocupações próprias do

Direito Constitucional. Alexy, por exemplo, na sua influente teoria sobre os direitos fundamentais, se limita a uma breve referência às concepções de direito subjetivo de Jhering e Kelsen, contentando-se, com respeito a outros autores, com indicação de bibliografia em uma extensa nota de rodapé (cf. ALEXY, Robert. Teoría de los

derechos fundamentales,pp. 179-181). Da mesma forma, na doutrina brasileira, Sarlet assume expressamente o propósito de analisar, em termos gerais, o sentido do “termo ‘direito subjetivo’ como referido aos direitos fundamentais”, renunciando, de conseguinte, a examinar “até mesmo a interessante (mas inesgotável) discussão em torno da própria conceituação de direito subjetivo, ainda não completamente pacificada no seio da dogmática jurídica publicista e privatista” (cf. SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 149).

164 complexa e polêmica mesmo no domínio jurídico que lhe é próprio. Para evidenciar as dificuldades que nesse terreno se evidenciam, basta mencionar a advertência de Alexy no sentido de que, mesmo não sendo mais válida a observação de Kelsen dando conta de que o conceito de direito subjetivo era um dos mais estudados pelos doutrinadores,333 esse conceito continua envolvido em controvérsia.334

O vocabulário de direitos públicos subjetivos mais influente nos discursos jurídicos e políticos enunciados no Jus Publicum Europeaum a partir do final do século XIX foi aquele elaborado por Georg Jellinek. A concepção de direito público subjetivo de Jellinek é um produto histórico do debate que, a partir da segunda metade do século XIX, instaurou-se na Europa relativamente à questão de saber se os direitos decorrentes da liberdade configurariam direitos subjetivos no sentido dos direitos subjetivos de natureza privada assegurados no Direito Civil. Num primeiro momento, esses direitos de liberdade, concebidos, desde posições jusnaturalistas, como “direitos naturais, inalienáveis e sagrados dos homens”, eram previstos apenas nas declarações de direitos. Apenas posteriormente, principalmente por influência da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão — que no seu art. 2º proclamava que “o fim de toda

associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem” —, é que se viria a alcançar o reconhecimento desses direitos nas diversas Constituições europeias no século XIX. Ora, a recepção nos textos constitucionais desses direitos de liberdade, antes proclamados nas declarações jusnaturalistas, suscitaria, de uma forma absolutamente lógica, uma questão fundamental: a sua

333 KELSEN, Hans. Problemas Capitales de la Teoría Jurídica del Estado - Desarrollados com base em la doctrina de la proposición jurídica, p. 494.

334 Alexy ainda ressalta que as dificuldades que tem suscitado a análise do conceito de direito subjetivo

decorrem do fato de que as diversas posições referidas a esse conceito são bem mais complexas do que pretendem sugerir as várias construções doutrinárias (cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos

165 relação com a lei. Com efeito, como no Estado Liberal a lei é a fonte por excelência do direito — com o que verdadeiros direitos subjetivos serão apenas aqueles estatuídos pelo legislador —, a submissão do âmbito de liberdade individual à ação do legislador punha em causa se também os direitos de liberdade em face do Estado configurariam direitos subjetivos.

Deixando de lado aspectos secundários eventualmente enfatizados em uma ou outra orientação, podem ser reconduzidas a duas as posições essenciais enunciadas nos discursos políticos e jurídicos positivistas. Para uma posição, a estrutura dos direitos subjetivos de Direito Público é equivalente à dos direitos subjetivos de Direito Privado, distinguindo-se as duas espécies de direito subjetivo apenas pela natureza e posição das pessoas que nas respectivas relações jurídicas se fazem presentes: no primeiro caso, o Estado, que se apresentaria com preeminência e numa relação de subordinação com respeito ao indivíduo; no segundo caso, os particulares, que se colocariam numa relação de coordenação entre si. Para a outra posição, ao contrário, não haveria propriamente um direito subjetivo público do indivíduo, sendo esse assim chamado direito nada mais do que um efeito reflexo do próprio Direito Público em sentido objetivo.

O primeiro doutrinador a dar ênfase a essa questão desde a perspectiva da teoria jurídica foi Gerber, em 1852, fazendo-o, todavia, de um modo tão ambíguo que é difícil reconhecer se ele está afirmando ou negando a existência de direitos subjetivos fundados no Direito Público. Insurgindo-se contra a ideia de direitos naturais do homem, Gerber assentaria que os direitos públicos do súdito seriam apenas “um conjunto de efeitos de Direito Público” derivados não de algum âmbito

166 jurídico inerente ao indivíduo, mas sim da “existência abstrata da lei”.335 Segundo

Gerber, esses direitos públicos se originariam e se desenvolveriam nos limites da vontade e do poder do Estado, tendo como objetivo a realização da vida coletiva e como significado algo essencialmente negativo: o fato de o Estado, ao dominar o indivíduo, deixar fora da sua influência apenas os aspectos da personalidade humana “que não podem submeter-se à ação coercitiva da vontade geral”.336

É a partir da crítica e de um esforço de conciliação das duas posições a que se reconduzem as diversas orientações atinentes ao problema dos direitos subjetivos fundados no Direito Público que Jellinek desenvolve o seu conceito de direitos públicos subjetivos. No tocante à posição que nega a existência de verdadeiros direitos subjetivos fundados no Direito Público, ele considera que a sua aceitação inviabilizaria a possibilidade de uma ordem jurídica e, dessa forma, da própria subsistência do Estado. É que, a seu ver, o “Direito somente é possível entre sujeitos de direito”, e os sujeitos de direitos, agindo no próprio interesse, são os únicos que “podem por em movimento a ordem jurídica”. E, conquanto essa faculdade, que cria o direito subjetivo, seja reconhecida aos indivíduos sobretudo na esfera do Direito Privado, ela depende da concessão pelo Estado da personalidade, da específica capacidade para que o indivíduo, no seu interesse pessoal, possa mobilizar a ordem jurídica. Isso determinaria a vinculação da personalidade ao Direito Público: ela é a “condição do Direito Privado e de todo ordem jurídica em geral, e tal condição, por esta razão vai intimamente associada com a existência dos direitos públicos individuais”.337

335 Cf. GERBER, Carl. Diritto Pubblico, pp. 67-82. Gerber falava em direitos do “súdito” e não do “cidadão”, por

considerar esse último conceito essencialmente político, sem significação jurídica (cf. GERBER, Carl. Diritto

Pubblico, p. 66).

336 Cf. GERBER, Carl. Diritto Pubblico, p. 67.

167 Com respeito à posição que defende uma equivalência estrutural entre direitos subjetivos de natureza pública e aqueles de natureza privada, Jellinek considera que ela não dá a devida atenção à absoluta diferença formal entre Direito Privado e Direito Público. Partindo da concepção do Direito Romano quanto aos distintos interesses resguardados pelo jus publicum e jus privatum, mas pretendendo superar o uniteralismo dessas duas posições, Jellinek conclui pela existência de direitos subjetivos de Direito Público, a partir de uma rigorosa diferenciação entre as diversas situações em que o ordenamento jurídico pode relacionar-se com a vontade humana.338

Em primeiro lugar, o ordenamento jurídico pode restringir a liberdade natural do indivíduo, prescrevendo uma determinada conduta. Ele pode também simplesmente reconhecer essa liberdade natural. Ele pode ainda acrescentar a essa liberdade — à “capacidade natural de agir” — algo que ela não possua por natureza. Finalmente, o ordenamento jurídico pode recusar-se a acrescentar alguma coisa à liberdade natural ou mesmo pode retirar esse plus, após concedê-la.339

Quando o ordenamento jurídico restringe a liberdade natural, impondo ou impedindo uma conduta, ele firma obrigações ou proibições para o indivíduo.

338 Na formulação tradicional, “jus publicum est, quod ad utilitatem rei publicae espectat, jus privatum est, quod ad utilitatem privatorum espectat”. Kelsen critica com contundência essa tradicional distinção, argumentando

que é impossível estremar-se o interesse público do interesse privado tutelado por uma norma (cf. KELSEN, Hans. Problemas Capitales de la Teoría Jurídica del Estado - Desarrollados com base em la doctrina de la

proposición jurídica, pp. 550-551), já que, da ótica subjetiva, qualquer direito persegue um interesse

individual (inclusive o interesse individual do Estado como sujeito de uma relação jurídica), e, da ótica objetiva, todos os direitos são protegidos no interesse geral e, nesse sentido, no interesse público, razão pela qual mesmo a aplicação do Direito Privado é cometida aos órgãos do Estado (cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 206). Kelsen também impugna os outros critérios mencionados na doutrina para

distinguir o Direito Público do Direito Privado (sujeitos envolvidos na relação jurídica; posição de igualdade ou superioridade do Estado na relação jurídica; e existência de autonomia ou heteronomia na criação de obrigações para o indivíduo); cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 201-206.

339 Cf. JELLINEK, Georg. Sistema dei Diritti Pubblici Subiettivi, p. 50. Na mesma passagem, lê-se: “Ordens,

proibições, permissões, concessões, denegações e revogações são as formas que assumem as relações do ordenamento jurídico com o indivíduo. As quatro últimas formas devem aqui ser objeto de uma ampla abordagem”.

168 Quando reconhece a liberdade natural do indivíduo, permitindo uma determinada conduta, o ordenamento jurídico estabelece uma faculdade, um âmbito de “licitude” (Dürfen) para o indivíduo. Finalmente, quando agrega algo à liberdade natural do indivíduo, concedendo-lhe a permissão para adotar determinada conduta, o ordenamento jurídico outorga ao indivíduo um poder (Können). Portanto, para efeito de diferenciação, é importante distinguir as situações em que os direitos subjetivos têm por conteúdo apenas um poder (Können), e as situações em que os direitos subjetivos agregariam a esse poder também uma faculdade, uma esfera de licitude (Dürfen). No primeiro caso, teríamos direitos subjetivos de Direito Público; no segundo caso, direitos subjetivos de Direito Privado.340