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A POLÍTICA DOS DIREITOS COMO HISTÓRIA

2. A linguagem pré-moderna dos direitos

2.1 A linguagem dos jura et libertates na política europeia entre os séculos X e

Em um conjunto impressionante de trabalhos, Michel Villey defendeu a

tese que a ideia de direito subjetivo era desconhecida no direito natural clássico e na

jurisprudentia romana, tendo se originado apenas no século XIV como uma

contribuição revolucionária do nominalismo, particularmente, de Guilherme de Ockham. No tópico seguinte, tomando por referência a influente tese de Villey, eu localizarei a origem da linguagem dos direitos subjetivos nos discursos políticos dos

98 séculos XIII e XIV subjacentes à querela teológica acerca da existência de dominium no uso dos bens por parte dos franciscanos. Por ora, impõe-se dizer alguma palavra sobre o vocabulário utilizado pela sociedade medieval para dar conta dos seus conflitos políticos no momento histórico imediatamente anterior, em que ainda não se reconhecia um uso articulado de uma linguagem de direitos subjetivos.

Não se negligencia aqui a dificuldade que se oferece ao intento de reconduzir-se a uma construção unitária uma experiência histórica tão complexa quanto o Medievo, o que se explica já mesmo pelo largo período a que diz respeito. Não obstante, tendo em conta o propósito que se persegue ao referir-se a este ponto na tese, afigura-se suficiente dizer alguma coisa sobre o arranjo social que prevaleceu na Europa medieval na chamada época clássica do sistema feudal, entre o século X e aproximadamente a metade do século XIII, quando a redescoberta da linguagem do

politikos transformaria radicalmente a experiência política e jurídica do continente.203

O cerne desse arranjo é uma complexa constelação de núcleos de poder de base econômica configurados em torno de privilégios e obrigações, fundados no critério da propriedade ou não da terra (feudum). Com efeito, seguindo-se à desagregação do imperium romano, consolidam-se na Europa diversos centros políticos marcados pelo dualismo entre as pretensões de autoridade do dominus e as pretensões fundadas no status atribuído a determinados indivíduos e formações sociais. É certo que a Idade Média não conheceu um poder soberano incontrastável, e isso em face da inexistência de uma dominação política delimitada seja nacionalmente seja territorialmente, de sorte que ao poder político do rei ou do barão opunha-se não

203 Para essa delimitação temporal, cf. BRUNNER, Otto. “Feudalesimo: un contributo alla storia del concetto”,

p. 75. Brunner adverte que “não é possível equiparar simplesmente o Medievo europeu ao feudalismo neste sentido restrito, como pretende uma difundida opinião popular”, in BRUNNER, Otto. “Feudalesimo: un contributo alla storia del concetto”, p. 76.

99 uma suprema potestas, mas já o verdadeiro “dominus mundi, o imperador, a cuja autoridade submetia-se qualquer outra autoridade temporal”.204 Tornando ainda mais

complexa essa constelação de poderes, não deve ser esquecida a preeminência do poder universal da igreja, que mais ainda estreitava a autoridade do rei (Non est

potestas nisi a Deo). Como acentuou Brunner numa obra de referência sobre a Idade

Média, os primeiros reis, “não querendo questionar o princípio que assegurava o direito de propriedade da igreja”, vislumbraram uma forma de legitimar o seu uso dessa propriedade mediante a sua concessão “aos vassalos na forma do beneficium”.205

Como configurado no momento de apogeu do sistema feudal, esse dualismo significava concretamente que, por efeito de uma progressiva expansão do

beneficium que ao vassus inicialmente era conferido pelas cláusulas do negócio

jurídico-privado do feudo, determinados estamentos haviam logrado atribuir-se uma difusa rede de privilégios e imunidades (jura et libertates) que efetivamente impunham limitações aos poderes políticos. Por efeito das lutas travadas entre o

dominus e o vassus, operou-se um progressivo desenvolvimento no conteúdo do

contrato privado do feudum, por força do qual o beneficium — a terra que o vassalo recebia ad nutum regis como contrapartida da sua fidelidade ao dominus — foi sendo enriquecido com a concessão ao vassalo também de títulos, prerrogativas e imunidades, convertendo-se, de fato, em um officium, ou seja, num poder político local cada vez mais resistente ao dominus.206

204 Cf. ZOLO, Danilo. “La sovranitá: nascita, sviluppo e crisi di un paradigma político moderno”, p. 110. 205 BRUNNER, Otto. Storia Sociale dell’Europa nel Medioevo, p. 75.

206 Como afirmava já no século XIII Beaumanoir nos seus Livres des coutumes et de usages de Beauvaisis,

“chascuns barons est souverain en sa baronie”. Para essa questão, cf. ROCHA JÚNIOR, José Jardim. “O futuro da soberania e dos direitos dos povos na communitas orbis vitoriana”, pp. 193-194.

100 Esse processo de fragmentação da relação dominus vs. vassus, decorrente da formação das imunidades e das correspectivas obrigações, é que está na origem dos poderes públicos cada vez mais independentes que levam à constituição na Europa de cidades revestidas de alguma “soberania”. Weber chega mesmo a identificar aqui uma “divisão de poderes” motivada pela “concorrência entre direitos (sic) subjetivos (privilégios ou pretensões feudais)”,207 qualificando as primeiras cidades medievais

como o lugar em que, a partir de políticas estamentais, procurava-se conscientemente a “ascensão da servidão à liberdade”.208

Paradigmáticos desses jura et libertates medievais são os privilégios enunciados na Magna Charta Libertatum, de 1215. Ali declara-se que “a Igreja da Inglaterra será livre” (art. 1º), que “a cidade de Londres conservará suas antigas liberdades e usos próprios” (art. 13) e que “nenhuma cidade será obrigada a construir pontes e diques, salvo se for isso de costume e de direito” (art. 23), assim como se assegura que “não serão aplicadas multas aos condes e barões, a não ser pelos seus pares e de harmonia com a gravidade do delito” (art. 21). E quanto ao catálogo de liberdades nela asseguradas — contemplando, entre outras, a proibição de cobrança de tributos sem o consentimento do conselho do reino (art. 12), a garantia de que ninguém será obrigado a prestar serviço algum além do que for devido pelo seu feudo (art. 26), e a proibição de prisão, perda do patrimônio, exílio ou injúria sem um julgamento de acordo com as leis do reino (art. 39) —, foram elas concedidas para serem gozadas apenas “pelos homens livres do reino e por seus herdeiros, para todo o sempre” (art. 2º). Com isso, acolhe-se o entendimento segundo o qual a experiência medieval inglesa não se afastou no essencial do modelo feudal que caracterizava o

207 WEBER, Max. Economia e Sociedade, v. 2, p. 10.

101 continente àquele momento. Como assentou Canotilho, a Magna Charta foi a mais célebre “das cartas de franquias medievais dadas pelos reis aos vassalos”; ela ”era um documento de garantia e franquia dos cidadãos, semelhantes aos que foram concedidos em Espanha, Portugal, Hungria, Polônia, Suécia, na altura da transição do estado feudal pessoal da alta Idade Média para o estado territorial da baixa Idade Média”. 209

Em suma, a existência desse feixe de privilégios e imunidades oponíveis ao dominus jamais foi articulado como um direito, no sentido em que mesmo a mais modesta expressão do moderno constitucionalismo (rectius, a liberal) sempre proclamou: a existência de um status libertatis protegido pelo direito, a liberdade formal de todos os indivíduos. Ainda que progressivamente esvaziada ao longo da história do feudalismo, o fato é que jamais se logrou romper definitivamente essa estrutura negocial privada com base na qual o vassus jurava fidelidade ao dominus em troca da garantia da sua segurança (tuition). A superação desse negócio de Direito Privado (dominium) pelo pacto de Direito Público ínsito ao contrato social (imperium), quer na linha hobbesiana (autorictas, non veritas, facit legem), quer na lockeana (lex

facit regem), quer na rousseauniana (populus superanus facit regem et legem), já

pressuporia uma compreensão da política e do direito que não poderia ser articulada com a linguagem disponível no Medievo.

Ademais, ainda quando reforçados os jura et libertates com elementos outros para além da obrigação contratual que apontavam para uma limitação do poder

209 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 502. Em sentido contrário, cf. a influente

posição de Kriele, argumentando que o art. 39 da Magna Charta já contemplava o que não apenas historicamente, mas também substancialmente, é a “mãe de todos os direitos fundamentais” (KRIELE, Martín.

Introducción a la Teoría del Estado — Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático, p. 209).

102 político, esses elementos configuravam-se como meras reivindicações morais e religiosas, com raízes na tradição, também sem qualquer institucionalização jurídica. Portanto, não há como acolher o argumento sustentado por alguns doutrinadores no sentido de que, em face da existência de uma jurisdição tutelando os “privilégios de todos contra todos”, seria o caso de se falar aqui em um Estado de Justiça.210 Em

primeiro lugar, a cláusula de jurisdição porventura existente continuaria sendo uma cláusula de um negócio jurídico-privado, sem a possibilidade de submissão a um verdadeiro tribunal na hipótese de se fazer necessário dirimir algum conflito; depois mesmo essa “jurisdição” não protegia “todos contra todos”, mas apenas os estamentos que lograram afirmar o seu estatuto de privilégios.

Finalmente, não há aqui privilégios extensíveis a todos os indivíduos,211

mas apenas privilégios particulares concretamente concedidos a alguns grupos e instituições como expressão de seu status perante o dominus. Considerando que sem a titularidade desses privilégios ficavam não apenas os camponeses e artesãos, mas ainda a incipiente burguesia mercantil que, ao depois, sob a forma e com a garantia do direito engendrará um Estado para a tutela efetiva dos seus interesses até aqui descurados, a experiência medieval fará com que alienado da política esteja um contingente de pessoas ainda mais numeroso do que havia ocorrido na experiência da Antiguidade.

Para firmar essa conclusão com o exemplo da experiência inglesa, note- se que será apenas com a afirmação do princípio da igualdade formal que se operará a

210 Para a discussão desse ponto, cf. por todos NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: do Estado de Direito liberal ao Estado social e democrático de Direito, p. 25.

211 O problema da existência do indivíduo, no sentido de um ser moral autônomo capaz de ser sujeito desses

privilégios, na sociedade medieval, uma sociedade de traços holísticos, é analisado por Louis Dumont; cf. DUMONT, Louis. Ensaios sobre o individualismo: uma perspectiva antropológica sobre a ideologia moderna, pp. 69-80.

103 extensão dos privilégios da Magna Charta desses estamentos para os homens livres — de início, pela interpretação de Sir Edward Coke; depois pela sua recepção na Petition

of Rights¸ de 1628. Dessa forma, como o próprio Kriele reconheceu, a afirmação de que

o direito fundamental à proteção contra a detenção arbitrária já estava presente na

Magna Charta só é correta no tocante à sua dimensão negativa — “o rei não possui um

direito a detenções arbitrárias” —, eis que na sua dimensão positiva — “esse proteção pode ser invocada como direito perante os tribunais” — ele tinha um âmbito sobremaneira restrito, incompatível com a liberdade dos modernos. 212

2.2 A pobreza franciscana e o dominium: o debate sobre a origem da linguagem