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3.1 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

3.1.4 A formação dos professores de português

Depois de discorrermos sobre os processos de formação de professores de uma maneira geral, pretendemos nesta seção enfocar mais diretamente a formação dos professores de línguas, porque é o que, afinal, diz respeito mais diretamente aos sujeitos de nossa investigação. Logicamente, a formação dos professores de línguas materna e estrangeira passou pelas situações apresentadas nas seções anteriores, mas resolvemos afinar um pouco mais o olhar sobre esse grupo de profissionais em especial.

Enquanto os estudos sobre formação se desenvolviam no campo da Educação de maneira ampla, a Linguística Aplicada se consolidava como área de pesquisa a partir dos anos do pós-guerra e começava a se preocupar com a formação dos professores de línguas. Segundo Miller (2013), num primeiro momento, o foco dos linguistas aplicados recaiu sobre a busca de melhores e mais eficazes métodos de ensino de língua estrangeira, mas, com o desenvolvimento da área aplicada, seus postulados tornaram-se mais abrangentes, envolvendo também as questões relativas às línguas maternas e afastando-se do paradigma da racionalidade técnica. A autora salienta que, apesar dos muitos avanços que já se fazem sentir, ainda se encontram alguns empecilhos contra avanços na questão da formação, como o desejo de muitos acadêmicos de aprenderem técnicas de ensino (na formação inicial) ou mesmo a demanda dos gestores por formações que deem resultados rápidos novamente em termos de técnicas (formação continuada).

Outra importante questão levantada por Miller (2013) é a que diz respeito às emoções e ao sofrimento humanos33, que deveriam ser levados

33 A autora cita exemplos de sofrimento humano estudados por outros

pesquisadores: a. do aluno: ansiedade no aprendizado de uma língua estrangeira, dificuldade de produção do gênero “plano de aula”; b. do professor: os problemas vivenciados nas escolas e a dificuldade em pesquisar a própria prática; c. dos

em conta nos processos de formação inicial e continuada de profissionais. Ela salienta que as pesquisas e as propostas da área da Linguística Aplicada, que aceitam, por exemplo, narrativas autobiográficas, olhando- as de maneira crítica e reflexiva, podem se constituir num campo rico para a transformação dos processos de formação rumo ao distanciamento da racionalidade técnica que em muitos aspectos já provou sua ineficiência em Ciências Humanas. A autora apresenta algumas iniciativas que, na sua opinião, têm tido impacto nos processos de formação inicial de professores para a prática da pesquisa ou para constituírem-se os licenciandos como profissionais “reflexivos, críticos e éticos” (MILLER, 2013, p. 103). No âmbito institucional, ela cita o lançamento em 2007 do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), além da divulgação em espaços especializados dos resultados das pesquisas realizadas na área específica da formação de professores de línguas: revistas como D.E.L.T.A; Linguagem e Ensino; Revista Brasileira de Linguística Aplicada etc.; congressos como o Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada; Congresso Latino-americano de Formação de Professores de Línguas; entre outros; e própria atuação da ALAB – Associação de Linguística Aplicada do Brasil). No campo metodológico, a autora propõe a prática exploratória

Acredito que essa proposta seja um dos caminhos disponíveis para reinventar a formação inicial de professores, pois consideramos formadores, (futuros) professores e seus (futuros) alunos como praticantes produtores de conhecimentos em desenvolvimento (Allwright e Hanks, 2009) e como intelectuais transformadores (Giroux, 1997) em busca de transformação social (Gimenez e Góes, 2010). (MILLER, 2013, p. 117-118).

Como se vê, a proposta da autora refere-se a uma mudança de visão acerca das relações entre formadores e formandos e entre esses formados e seus próprios alunos; uma mudança de postura segundo a qual todos os saberes são respeitados no momento da construção de metarreflexões e de diálogos nos locais de formação e de trabalho. Dessa forma, na sua proposta, há a transformação da racionalidade técnica para a reflexividade

técnica.

Machado (2009 [2004]) preocupa-se com a formação contínua dos próprios professores/formadores. A autora busca na opção pelas

pesquisadores: busca constante de credibilidade para as pesquisas em contextos pedagógicos. (MILLER, 2013, p. 116).

sequências didáticas meios para dar aos professores um recurso para elaborarem materiais didáticos ancorados nas reais necessidades dos alunos dos cursos de graduação, usando como exemplo, o trabalho realizado na elaboração das sequências com enfoque no gênero resenha

crítica. A autora, em seu artigo, descreve as atividades elaboradas e

propostas para serem realizadas junto a diferentes cursos universitários, para depois concluir que as parcerias criadas entre professores e assessores renderam uma produção que foi além da mera transposição de conhecimentos científicos ou de teorias que lhes serviram de base. O trabalho realizado procurou ainda sugerir uma forma de sistematizar a avaliação das propostas realizadas, de modo que essa prática passe a ser ponto importante na prática dos formadores de professores e resume dizendo que espera ter demonstrado que “o processo de formação contínua de professores é um processo dialético em que, ao mesmo tempo em que nos servimos de conhecimentos já estabelecidos, podemos e devemos construir novos conhecimentos” (MACHADO, 2009 [2004], p.178).

Outra reflexão, agora centrada na questão da transposição didática34 como meio de a universidade contribuir mais efetivamente na formação dos professores de línguas que atuarão no ensino básico, é a de Cristovão (2009 [2004]). A autora considera a Linguística Aplicada uma área propícia para a realização de pesquisas colaborativas dentro da perspectiva do interacionismo sócio-discursivo, devido a sua relação direta com a aplicação em sala de aula dos conceitos teóricos. A contribuição desse tipo de proposta está na proposição de diálogos que, realizados entre sujeitos de diferentes posições de poder e de lugar de onde falam, possam ressignificar as práticas até então realizadas, problematizando o que não deu certo e corroborando o que deu, tanto da academia quanto da escola. O exercício do diálogo leva, segundo a autora, à constituição do profissional autorreflexivo. A autora vê na transposição didática uma opção para que se efetive uma real aproximação entre a teoria (trazida pelos teóricos da academia) e a prática (vinda dos professores), mas adverte que é preciso tomar cuidado para que o

34 Não problematizaremos os pressupostos teórico-metodológicos que

fundamentam tais propostas de formação, tendo em vista que nosso objetivo nesse momento é conhecer algumas propostas de formação implementadas. Vale ressaltar, entretanto, que é de nosso conhecimento que a noção de elaboração didática, cunhada por Halté (2008), apresenta avanços em relação à noção de transposição didática e constitui-se uma perspectiva diferente também em relação às sequências didáticas.

conhecimento científico não se perca nessa transposição, tornando o conhecimento que é de fato trabalhado com os alunos raso e baseado no senso comum. Também salienta que o apoio irrefletido no livro didático pode causar esse dano.

Cristovão (2009 [2004]) acredita que o trabalho com sequências didáticas sobre os gêneros do discurso possa ser um caminho viável para que cada professor adapte o conhecimento científico para a realidade concreta de sua sala de aula. O grupo de formadores responsáveis pelo curso de capacitação do qual se originou o artigo em questão reconhece que o fato de levarem prontas as sequências didáticas para que os professores as conhecessem e utilizassem com seus alunos é um limitador no processo de formação desses professores, no entanto, entendem como uma iniciativa positiva no sentido de corresponder ao que era possível no contexto institucional em que se deu a formação, permitindo que vissem a possibilidade de o professor, a partir dessa experiência, continuar no caminho proposto. A autora acredita ser possível co-construções de materiais e novas sequências a partir das experiências propostas pelos formadores, mas salienta que isso somente será possível

se as condições mínimas forem dadas: disponibilidade de tempo para o professor, formação continuada através de cursos de desenvolvimento profissional e acadêmico, bem como mudanças nas instituições de ensino e currículos. (CRISTOVÃO, 2009 [2004], p. 189). Pode-se perceber, assim, que algumas iniciativas até são tomadas por parte das instituições em relação aos processos de formação continuada de professores, mas elas ainda são pontuais e muito tímidas, como já dissemos anteriormente.

Kleiman e Martins (2009 [2004]) preocupam-se com o papel das instâncias administrativas na formação continuada de professores, uma vez que estas podem atuar tanto na conservação quanto na transformação das práticas docentes que existem na sociedade contemporânea. A reflexão que trazem relata algumas das experiências que o grupo de pesquisa “Letramento do professor” tem realizado desde o ano de 1991 e as autoras determinam as premissas que orientam esse trabalho:

A formação envolve prioritariamente o letramento do próprio professor para a atividade profissional; as práticas de letramento são contextual e culturalmente determinadas e, portanto, os usos da escrita dependem das funções que a escrita tem na

vida do professor; e, por último, a formação profissional envolve reposicionamentos sociais que dão forma a uma nova identidade profissional. (KLEIMAN; MARTINS, 2009 [2004], p. 275). Nesse trabalho, as pesquisadoras propõem a comparação entre as práticas discursivas de que participam os professores alfabetizadores, professores de língua que atuam com a disciplina de Português e os educadores sociais que também trabalham com alfabetização. Ao analisarem os dados gerados, as autoras obervaram que os professores, após passarem pela educação formal, acabam como “sujeitos submissos à cultura dos grupos dominantes”, enquanto os educadores populares apresentam uma postura muito mais de “resistência a hierarquias culturais, baseadas na valorização da cultura popular, e que assumem a posição de sujeitos letrados, interlocutores legítimos dos grupos dominantes” (KLEIMAN; MARTINS, 2009 [2004], p. 276). Essa diferença de perfil se deve, segundo a análise dos dados, devido à presença do fator político de liderança comunitária que perpassa a formação destes e não daqueles.

Na sequência, as autoras retomam a tese, defendida em Kleiman (2003), de que é preciso mudar o letramento do professor de maneira a que ele, ampliando seu repertório textual – na esfera profissional, mas também na literária - possa contrapor sua palavra aos discursos de autoridade a que normalmente é submetido pelas instâncias gestoras e até formadoras. Elas, no entanto, consideram pouco razoável esperar que os professores consigam libertar-se, se

uma mesma concepção de leitura é reforçada pela escolha de temas e de textos pertencentes a gêneros cuja função na situação social é a de regular o comportamento, controlar e prescrever formas de ação, constituindo, em última análise, gêneros de dominação: elementos de uma interconexão que exerce dominação sobre os educadores e, através de uma corrente ou uma rede de ação social, também em seus educandos. (KLEIMAN; MARTINS, 2009 [2004], p. 290).

Esse estudo não discute a necessidade nem a importância de iniciativas por parte dos agentes administrativos no sentido de proporcionar espaços e tempos de formação continuada para os

professores35, contudo alerta para certas contradições que podem ocorrer como a assunção de uma determinada linha epistemológica e a proposição de leituras avessas à linha escolhida. Isso é claramente exemplificado pelas autoras ao relatarem que o curso de formação, que acompanharam, se dizia filiado à pedagogia freireana, mas oferecia como material de leitura textos da esfera da autoajuda; sendo contraditório “adotar” uma pedagogia libertadora e, ao mesmo tempo, usar textos tais que reforçam o discurso autoritário e de manutenção do estado de coisas preexistente.

Outro aspecto da formação de professores de Português é apresentado por Signorini (2009 [2004]), quando fala das relações de poder que se estabelecem entre formadores e formandos, entre os que sabem e os que não sabem; relações essas que se reproduzem nos espaços escolares entre os gestores e os professores efetivos, entre esses e os não efetivos e entre todos e os alunos. Essas relações geram “tensões e conflitos [...], mas que não chegam a comprometer uma ordem institucional que está sempre se acomodando para permanecer a mesma.” (SIGNORINI, 2009 [2004], p. 322).

A autora chama a atenção para a diferença de concepção de letramento escolar que se tem na escola e a que se trabalha nos cursos de formação de professores, para estes cursos o letramento tem relação com a aquisição de bens simbólicos, enquanto para aquela “é um emaranhado de ações individuais e de grupo, fundamentalmente vinculadas a aparatos institucionais de diversos tipos, desde o mobiliário e aparelhos de apoio, até regimentos internos e programas de ensino [...]” (SIGNORINI, 2009 [2004], p. 323).

Signorini (2009 [2004]) discute o fato de que a formação de professores, assim como as demais práticas sociais, não é totalmente fixa; pelo contrário, lida também com transformações (“fluxos”) ao longo do tempo e das circunstâncias. A autora acredita que o trabalho de formação inicial e continuada deva passar pelo desenvolvimento da capacidade de enunciação dos professores, a fim de que eles possam dialogar verdadeiramente com seus pares e “superiores” para efetivamente problematizarem as dificuldades reais existentes nas escolas, isso, independentemente de uns serem efetivos e outros não, de uma escola ser central e outra de periferia etc. Nesse diálogo, o importante não é a acomodação das diferenças e sim, o enfrentamento dos discursos

35 No caso específico, refere-se às formações proporcionadas aos professores

atuantes no projeto MOVA de alfabetização de adultos em uma cidade paulista, onde as pesquisas da autora se realizaram través do Projeto Teias do Saber (2003).

prefixados de fracasso, por exemplo. O esperado dos processos de formação, segundo ela,

não é a neutralização da diferença, da tensão e do conflito, mas antes o seu enfrentamento e transformação pela configuração de um espaço de trabalho que promova uma cena ou lugar de enunciação e de experiência comum, em que a controvérsia, a ruptura e o dissenso, conforme Rancière (1995), funcionem como vetores de dinamização e transformação de condições de inteligibilidade e objetivos compartilhados. (SIGNORINI, 2009 [2004], p. 332)

E acima de tudo, esse espaço deve propiciar a ruptura com os esquemas rotineiros de planejamento e de repasse de conhecimentos em prol da construção de conhecimentos através da experiência comum vivida pelos grupos. Signorini, nesse texto, enfatiza a importância do desenvolvimento da subjetivação política, através da qual os sujeitos passam a se enunciar e a reconfigurar seu próprio campo de experiência, isso passa pelo domínio de gêneros institucionalmente valorizados. Como exemplo, a autora destaca que é preciso que o professor saiba escrever um projeto de ensino, conforme exigido pela burocracia, para, a partir daí, passar a intervir também em outras esferas do gerenciamento do ensino. De acordo com essa proposta, o professor passa de passivo repetidor de esquemas prefigurados a ativo promotor de práticas escolares significativas para o processo educativo.

Em outra reflexão, Rojo (2009 [2004]) preocupa-se com a questão do gênero aula, chamando a atenção para o fato de que os professores reconstroem os objetos de ensino através da linguagem ao efetivarem uma aula. Para exemplificar suas teses, ela toma como exemplo de análise uma aula de História para uma 5ª série (hoje 6º ano) sobre a relação homem indígena versus homem branco, a partir do qual vai apresentando contribuições de autores como Vygotsky, Bakhtin, Schneuwly, Cordeiro e Dolz a respeito dos processos discursivos que ocorrem efetivamente numa sala de aula. A autora recorre aos conceitos bakhtinianos de palavra autoritária e de palavra internamente persuasiva para apontar a existência dessas duas maneiras de se construir o dialogismo no processo de ensino- aprendizagem, resultando em diferentes estilos de docência (grifo da autora). Quanto a isso, afirma que, conforme os autores neo- vygotskyanos, o estilo internamente persuasivo seria o mais favorável para a ocorrência de apropriações e aprendizagens realmente significativas. E, então, ela conclui que

No que concerne ao ensino-aprendizagem, uma abordagem que, conjuntamente, dê conta de como se dá a interação e o fluxo dos discursos e significações em sala de aula; de quais estilos (de autoridade, internamente persuasivo) adotados nas interações e de seus efeitos no processo didático e de como o professor decompõe, elementariza e seleciona facetas do conhecimento para reconstruir os objetos de ensino na aula [...]. (ROJO, 2009 [2004], p. 355).

A partir disso, a autora procura mostrar que os projetos de formação docente deveriam levar em conta (ou trabalhar no sentido de desenvolver) o modo como os professores realizam essas interações. Em outras palavras, para ela, seria parte importante da formação o trazer para a consciência dos professores que o uso desta ou daquela palavra, deste ou daquele modo de reenunciar os discursos, por exemplo, dos materiais didáticos, não se dá sem uma acentuação ideológica e que, se o seu próprio discurso se deixar permear pelas palavras alheias de maneira persuasiva, haverá maiores chances de êxito em seu projeto de ensino.

Todas essas são ainda tentativas da universidade em trazer para o espaço da teoria – os cursos de formação universitária – um pouco dos saberes práticos necessários ao trabalho docente no mundo do trabalho escolar. Retomando o que constataram Rodrigues e Hentz (2011), ao refletirem sobre as práticas como componente curricular, ainda há muito o quê ajustar para que, então, se efetive a verdadeira aproximação da universidade com a escola, a teoria com a prática.

Paralelamente ao interesse sobre como formar professores, desenvolveram-se as questões acerca da visão da docência como um trabalho e não mais como muitas vezes já se ouviu “um sacerdócio”. Ao longo do tempo, a figura daquele que ensina passou de mestre para professor, de professor para professorinha, daí para “tia”, depois para educador e novamente para professor. É sobre a instituição/constituição da carreira docente que discutiremos na próxima seção.