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Os conceitos discutidos acima de linguagem, axiologia e ideologia, por exemplo, não teriam sentido sem a concepção bakhtiniana de língua como discurso. Como já vimos em subseção anterior, entretanto, o Círculo vai se deter na compreensão do discurso como um plano mais completo (complexo) a que é elevado o plano da língua, Bakhtin percebe que o estudo da língua, tal como era feito pela Linguística até aquele início do século XX, deixa de fora os aspectos por ele considerados fundamentais no estudo desse objeto: a situação social e os interlocutores. Ele propõe que esse novo objeto deva ser estudado num campo que denominou “metalinguística” ou, melhor dizendo, “translinguística”.18

E justifica-se, dizendo: “Temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso.” (BAKHTIN, 2002 [1929], p. 181).

18 Rodrigues (2005, p. 156), também em nota de rodapé, esclarece que hoje em

dia o termo “translinguística” seria mais apropriado, devido ao significado que se atribui à metalinguagem, e que ao grupo das disciplinas, que integrariam esse ramo de estudos, poderiam ser incluídos os estudos da análise do discurso, da teoria da enunciação e da própria Linguística Aplicada.

O discurso se tece na alternância dos enunciados, por isso o enunciado e não mais a frase passa a ser o ponto central da abordagem da língua(gem), pois, segundo os pensadores do Círculo, “Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas)”. (BAKHTIN, 2015 [1930], p. 283). Outra característica importante do discurso, para Bakhtin, é que ele é sempre orientado em direção a outrem, sendo assim, sempre dialógico, como já se demonstrou na seção sobre alteridade.

Um elemento interessante na visão que o Círculo passa a pontuar no cenário dos estudos linguísticos (literários, a princípio) é a noção de que a situação social constitui elemento interno do enunciado e não se encontra fora dele como se fosse um invólucro. Para explicar essa questão, Volochínov ([1926]), dá como exemplo o enunciado “Bem”19 e mostra

como o contexto extraverbal apoia a compreensão de um enunciado, dizendo que para isso três elementos deverão estar presentes: o horizonte espacial comum entre os interlocutores, o conhecimento e a compreensão comum que eles têm de dada situação e a avaliação comum que fazem da situação vivida. Em Rodrigues (2005), esses mesmos elementos são considerados como: horizonte espacial e temporal, horizonte temático e horizonte axiológico.

De acordo com Bakhtin (2015 [1930]) o enunciado (“unidade da comunicação discursiva”) apresenta as seguintes peculiaridades constitutivas, que o distinguem da frase/oração: a. a alternância dos sujeitos; b. conclusibilidade e c. relação do enunciado com o próprio falante e com os outros participantes. As frases e orações se diferem dos enunciados por serem, se tomadas fora de um ato enunciativo, neutras; enquanto que uma mesma palavra ou oração se torna um enunciado a partir do momento que um falante imprime a elas um valor apreciativo.

O enunciado tem dupla orientação uma vez que, ao ser constituído, seu locutor sempre considera os já-ditos e se orienta para os prefigurados, em outras palavras, os enunciados /constituem-se respondendo a alguém e já antecipando a reação-resposta do interlocutor para quem está endereçado. Quanto a isso, encontra-se em Rodrigues (2005) o seguinte: O enunciado desde o seu início (projeto discursivo), objetiva a reação-resposta ativa (imediata ou não, verbal ou não, exterior ou interior [discurso

19 Esse exemplo é retomado por Brait (2007) e serve para mostrar como mesmo

um enunciado simples se se faz entender, ou é passível de atribuição de sentido, graças à situação social.

interior]) daquele a quem é destinado e constrói-se em função dessa eventual reação-resposta. Os enunciados já-ditos e os enunciados pré-figurados (reação-resposta antecipada do outro) “determinam” a construção do enunciado, tornando-o como já dito, uma unidade multiplanar, sulcado por esses enunciados. Assim, se os enunciados, pelo seu papel e lugar, representam unidades concretas e únicas da comunicação discursiva, por outro, pela sua natureza dialógica (o dialogismo é constitutivo), não podem deixar de se tocar nessa cadeia, estando vinculados uns aos outros por relações dialógicas, que são relações de sentido. (RODRIGUES, 2005, p. 160).

Isso significa que a todo o momento, diante do contexto sócio- histórico que se apresenta a dado sujeito (cada um de nós), ele organiza seu projeto de dizer e quando o faz, inconscientemente, “desenha” esse projeto considerando o interlocutor e esperando dele uma resposta, já que ninguém, ainda que estando sozinho, fala para o nada, sem nenhum objetivo. Além disso, esse sujeito vai buscar em seu repertório elementos, seja da própria estrutura da língua, seja da cultura, que possam constituir esse enunciado. Nesse fluxo enunciativo em que um sujeito no momento presente retoma elementos do passado e ao mesmo tempo projeta um futuro é que podemos compreender a noção proposta pelo Círculo de que “Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2015 [1930], p. 289), pois

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos. (BAKHTIN, 2015 [1930], p. 294- 295).

Assim, é possível entender que o termo empregado por Faraco (2009), quando diz haver um caldo da heteroglossia no qual o sujeito se constitui, é pertinente para explicitar melhor o conceito de enunciado do Círculo, porque traz consigo a ideia de que essas vozes alheias estão por todo o lado na sua consciência, não sendo possível ao sujeito delas se esquivar. E o autor ainda reforça:

Nossos enunciados emergem – como respostas ativas que são no diálogo social – da multidão de vozes interiorizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal, já que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que percebamos sua alteridade. (FARACO, 2009, p. 85).

Em mais de um momento, Bakhtin afirma que é impossível haver relações dialógicas entre os elementos do sistema da língua, por exemplo, entre as palavras tal como aparecem num dicionário, ou mesmo entre os elementos de um texto se visto puramente pelo enfoque linguístico. Ele explica que:

As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto- semânticas mas não são irredutíveis a estas e têm especificidade própria.

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa.[...]o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou seja, se ouvimos nela a voz do outro. (BAKHTIN, 2002 [1929], p.184).

Ao longo das seções acima, pretendemos dar visibilidade a alguns dos princípios basilares do pensamento desenvolvido amplamente pelo Círculo de Bakhtin, no entanto, temos clareza de que esses mesmos conceitos hora ou outra se imbricam de tal forma que foi difícil abordar cada um separadamente.

Além da revisão dessas noções teóricas cunhadas pelo Círculo de Bakhtin, na constituição deste nosso trabalho, consideramos relevante uma incursão pelas discussões relativas à área de formação de professores, por algumas questões sobre currículo, pelo conteúdo e significado dos documentos parametrizadores oficiais e pela constituição histórica da

própria disciplina de Português. Isso é o que passamos a fazer no capítulo a seguir.

3 OS PROFESSORES COMO SUJEITOS NO PROCESSO EDUCATIVO

O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador, como uma mercadoria e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.

Karl Marx A grandeza da tarefa de ser professor não está em ser aquele profissional que “cuida das crianças” ou “prepara as novas gerações”, como, muitas vezes, se propaga através do senso comum. Longe disso, a grandeza desta profissão vem das dificuldades que enfrentam os professores diante de um complexo emaranhado de dúvidas o qual nos faz questionar: o professor é apenas um profissional técnico, engessado na prática? Ou ele é um intelectual crítico, perdido no mundo das teorias acadêmicas? Ele é um agente transformador da sociedade? Ou, como funcionário público, é quem acaba reforçando as ideologias hegemônicas? Não há uma resposta fácil para tais questionamentos, porque, na prática, o professor é tudo isso num só profissional.

Na realidade brasileira, não há ensino formal fora das escolas e não há escolas em que a figura central de trabalhador não seja a do professor. Por isso, considerou-se relevante trazer neste capítulo não só as características atribuídas a esse profissional, seus saberes e condições de trabalho, mas também um pouco do que se tem pesquisado a respeito dos processos de formação que o habilitam e o “qualificam” para o exercício profissional. Além disso, na intenção de construirmos um panorama dos estudos sobre a questão da docência, acabamos por recorrer a conceitos bastante difundidos, que, inclusive, já têm sido revistos; por exemplo, revisitamos os autores adeptos das teorias do professor reflexivo e também os que as criticam. Isso foi feito na tentativa de criar inteligibilidades para o papel que o docente tem ocupado na pesquisa educacional.

Com a finalidade de compreendermos a situação em que se encontra a carreira docente trazemos, também, aspectos históricos relativos à profissionalização dos professores e a questão da autonomia

dos professores no fazer pedagógico. Também abordaremos questões sobre currículo, documentos oficiais parametrizadores e desenvolvimento da disciplina de Língua Portuguesa.

Assim, passamos a seguir a uma problematização no intuito de refletir acerca de algumas questões que têm nos inquietado: Quem é o professor que está nas salas de aula desempenhando essa tarefa hoje? Como esse profissional se constitui? Que saberes estão na sua formação inicial e continuada? Que saberes são exigidos/desenvolvidos na prática docente?