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3.1 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

3.1.1 Os saberes docentes

Para falarmos dos saberes que são próprios da formação docente, usaremos muitas das questões levantadas por Tardif (2010), começando, por exemplo, com a definição de ‘professor’ que esse autor traz e que ele mesmo considera quase óbvia: “professor é, antes de tudo, alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber a outros” (TARDIF, 2010, p. 31).

Entendido dessa maneira, qualquer pessoa mais experiente em um assunto, de modo geral, e que soubesse ler e escrever, de modo específico, a qual se propusesse a ensinar aos outros seria um professor. E, de fato, foi assim no início e é esse o princípio. No entanto, se nos detivermos na palavra ‘função’, começaremos por excluir desse conceito os familiares mais velhos, os anciões das comunidades e passaremos a pensar em pessoas que realizam a tarefa de ensinar como um trabalho e, então, a definição de quem seja esse professor se complexifica enormemente. Como um trabalhador, o professor é ao mesmo tempo um indivíduo único, que enfrenta sozinho o desafio de, em cada sala de aula, interagir com cada aluno a cada dia, e é também parte de um todo, constitui um corpo, que, como lembra Tardif (2010), historicamente já foi da Igreja e do Estado, trabalhando a serviço de causas e finalidades maiores do que ele.

Por outro lado, devemos considerar, ainda, que o profissional professor, por ter o ensino como um trabalho, realiza uma atividade através da qual ele não só faz alguma coisa ou transforma alguma coisa em outra, mas também transforma a si mesmo nesse e por esse fazer, como destaca Tardif (2010). Também, Ghedin (2002) fala sobre o trabalho do professor, afirmando que:

O resultado do conhecimento fundado na reflexividade situa-se, por um lado, nas condições históricas e objetivas do sujeito que reflete e, por outro, diríamos, no trabalho, como ação fundante do humano e de sua condição. Com isto se quer dizer que o ser humano se faz num movimento contínuo e permanente através do trabalho. Somos muito mais o resultado deste fazer que as possibilidades de nosso pensar sobre ele. Mais que isto, esta dialética entre fazer e pensar possibilitou no humano, a instituição de seu ser.

O ser humano é fundado neste movimento contínuo, permanente e duradouro de pensar fazendo-se e ao fazer-se pensante fundamentar-se historicamente no tempo e só esta historicidade possibilita e condiciona toda a emergência de seu vir-a-ser. Assim, o trabalho é um processo contínuo e permanente de auto-construção que se faz pela abstração e concretização do mesmo. Ele institui uma dialética do fazer-se e do fazer ser. (GHEDIN, 2002, p. 149-150).

Outra questão que nos parece igualmente importante é a definição a respeito da origem dos diferentes saberes que compõem o conjunto

plural de saberes que os professores têm. “Esses saberes são os saberes disciplinares, curriculares, profissionais (incluindo os das ciências da educação e pedagogia) e experienciais.” 20 (TARDIF, 2010, p. 33).

Apropriando-nos livremente da máxima de Simone de Beauvoir e submetendo-a a nossos propósitos, diríamos que “ninguém se gradua professor, só se torna professor”. Ou, aproximando-nos das palavras dos autores referenciados neste trabalho, “[...] com o passar do tempo, ela (a pessoa que trabalha no magistério) tornou-se – aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros – um professor, com sua cultura, seu éthos, suas ideias, suas funções, seus interesses etc.” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 210, grifos dos autores); “Nós nos formamos professores ao longo de alguns anos de estudos de certos conteúdos que adquirimos, que

encorpamos, e que nos remodelam, nos tornam a pessoa que não éramos.

[...] talvez , isto apenas nos forme, mas não nos torna professores.” (GERALDI, 2010, p. 82, grifo do autor). E o tornar-se professor é um processo constante; ninguém sai pronto de uma graduação, não há uma fórmula de enquadramento, uma fôrma. Igualmente, não se pode falar em dom, apesar de considerarmos alguma aptidão pessoal, talvez, um pendor pelo trabalho com seres humanos.

Silva, Assis e Matêncio (2001) defendem que, para trabalhar no ensino, os professores têm que ter, no mínimo, dois tipos de saberes: os saberes historicamente constituídos e os saberes do saber-fazer21. Isso

significa que um professor de Português une os conhecimentos sobre a língua(gem) com o conhecimento pedagógico (teorias da aprendizagem; o que esperar dos alunos em cada etapa escolar e de seu desenvolvimento; propor e organizar as atividades de ensino; coordenar a sala de aula; lidar com a burocracia da escola etc.). O primeiro conjunto de conhecimentos é adquirido basicamente numa graduação e o segundo, em tese, também; mas, na verdade, o saber-fazer se aprende fazendo, na prática. É na sala de aula, com alunos reais e no tempo presente, que todo professor aprende, por tentativa e erro, a resolver problemas, porque no dia-a-dia as situações de sala de aula são sempre inéditas e, por mais que haja planejamento, inesperadas; também, é com a experiência prática dentro da escola que se aprende a trabalhar, já que o trabalho do professor não se restringe a atividades didáticas. Muitas vezes, é no contato com colegas mais

20 Essa gama de saberes, oriundos de diferentes ordens, contribui para a

complexidade da carreira docente, mas, em contrapartida, abre espaços para as fragilidades de sua formação.

21 Para Silva, Assis e Matêncio (2001), os primeiros seriam os objetos de estudo

experientes e na observação de seus saberes-fazer que começamos a entender e a dominar o funcionamento próprio das escolas. E os estudos de Tardif (2010) mostram, por exemplo, que, ao longo da carreira, o segundo conjunto de saberes vai se tornando mais importante que o primeiro.

Esses dois domínios, entretanto, não abrangem todos os saberes dos professores, há muitas outras variáveis a serem levadas em consideração na tentativa de entendermos a docência.

Em seu trabalho de 2010, Tardif traz o resultado de pesquisas feitas nos Estados Unidos e das realizadas por ele próprio, em que se determinam as características que os saberes profissionais dos professores têm. Assim, para o autor, tais saberes: 1) são temporais, adquiridos através do tempo, durante toda a vida e o que aprendem em dois momentos marcadamente importantes de sua trajetória – o período como aluno22 e o

período inicial da carreira – levam para sempre, marcando suas decisões diante de situações no espaço profissional. Além disso, são temporais também porque são adquiridos ao longo de uma carreira, que é um processo de socialização, no qual se precisa aprender como viver numa escola; 2) são plurais e heterogêneos, porque, primeiro, provêm tanto de sua própria história e cultura escolar, quanto dos conhecimentos adquiridos na graduação e através de programas e guias escolares e, ainda, pela observação de outros professores e de sua própria experiência; segundo, se apoiam em diversas concepções e diferentes teorias ao mesmo tempo, uma vez que lançam mão de quaisquer recursos que possam auxiliá-los no alcance de diferentes objetivos durante o trabalho; terceiro, são heterogêneos e variados, porque a própria prática em sala de aula é heterogênea, uma vez que naquele momento é necessário ensinar conteúdos, gerir tempos e conflitos, fazer adaptações etc. - o autor chega a comparar esses saberes às ferramentas de um artesão que ficam guardadas numa mesma caixa até serem necessárias ao trabalho em questão, mantendo entre si, portanto, não uma unidade teórica ou conceitual, mas pragmática (TARDIF, 2010, p. 264) -; 3) são personalizados e situados, porque têm relação direta com as características pessoais de cada trabalhador, sua personalidade, sua cultura, suas emoções; no trabalho com seres humanos, o trabalhador só pode contar

22 O autor chama a atenção para o fato de que o professor é o único profissional

que, ao iniciar na profissão, já esteve imerso em seu local de trabalho – a escola – por pelo menos, uns dezesseis anos, tendo vivenciado muitas experiências em relação ao ser professor, pois, enquanto aluno, já construiu imagens positivas ou negativas a respeito desse profissional. (TARDIF, 2010, p. 261).

com seus próprios recursos, a sua experiência e capacidades pessoais, até seu próprio corpo é exigido no ato educativo; a situacionalidade ou “contextualidade” (GIDDENS, 1987, apud TARDIF, 2010, p. 266) vêm do fato de esses saberes serem construídos no momento do trabalho, na interação concreta entre cada professor e cada grupo de alunos a cada momento único e irrepetível; 4) são carregados das marcas do ser humano, porque, apesar de trabalhar com turmas, o professor convive com a individualidade de cada um dos alunos e, ao longo do tempo, os vai conhecendo com sensibilidade e discernimento; além disso, o trabalho com seres humanos requer sempre um componente ético e emocional, pois não só essa relação diária com os alunos suscita no professor reflexões constantes sobre si mesmo, sobre suas emoções, sobre seus valores como também conduz a um esforço constante em motivar os alunos para aprender, assentir e cooperar com o trabalho, a aula é o encontro das subjetividades do professor com a dos alunos. (TARDIF, 2010).

Ainda que muito do que fazem os professores em seu trabalho docente venha de suas vivências de antes da graduação - não só de suas vivências familiares e culturais, mas, sobretudo, das experiências vividas quando alunos (TARDIF; RAYMOND, 2000) - hoje em dia, pelo menos aqui no Brasil, um professor tem de passar por um curso formal para se habilitar a lecionar. Por isso, discutiremos a respeito dessa fase específica da formação docente na próxima subseção.