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Raríssimos homens conseguem viver isolados de tudo e de todos; a verdadeira natureza humana é voltada para o social, para o outro e “A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014 [1930], p. 36). De maneira que a palavra faz parte indissociável de nossa vida cotidiana. As palavras de cada um de nós, no entanto, não são inteiramente nossas, não surgem de um ato original, Bakhtin (1990 [1934-1935]) chega a afirmar que praticamente a metade do que dizemos vem de outrem. Muitas vezes, em nosso discurso cotidiano, essa proveniência é marcada na fala através de expressões como “ele disse”, “falaram”, “saiu no jornal” (e na escrita pelas aspas ou mesmo pela representação do discurso direto), mas em muitas outras o falante já nem sente que está retomando palavras alheias,

16 Segundo Faraco (2009), a bivocalidade ocorre quando nossos enunciados

expressam ao mesmo tempo a palavra de outrem e a nossa apreciação axiológica sobre ela.

tal é o grau de interpenetração dos discursos no cotidiano. Essa retomada das palavras de outrem pode se dar literalmente, como recém mostramos, ou pela deturpação feita, por exemplo, nas paródias. A apropriação das palavras de outrem, cabe destacar, traz também um elemento de individualidade por conta da reacentuação que cada um faz na hora de se enunciar e ainda pela própria situação de interação (enquadramento) em que um novo diálogo se concretiza, uma vez que leva em consideração o novo interlocutor a quem se dirige17 e não só ele, a própria figura do falante influi decisivamente na compreensão do que está sendo reenunciado. Bakhtin (1990) adverte-nos, ainda, de que ao trazermos para nosso discurso as palavras de outrem não devemos tirar-lhes, dissolver- lhes a originalidade. Por isso é que se pode dizer que nossos discursos são, quase sempre, bivocais.

Essas retomadas das palavras já ditas, de acordo com Bakhtin, ocorrem naturalmente tanto na vida cotidiana quanto “nas esferas mais elevadas e organizadas das relações sociais” (BAKHTIN, 1990 [1934- 1935], p. 139), podendo se dar de duas maneiras: “de cor” e “com as nossas próprias palavras”.

Aprofundando essa questão da assimilação da palavra alheia, Bakhtin (1990 [1934-1935]) diz:

O objetivo da assimilação da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta não mais na qualidade de informações, indicações, regras, modelos, etc., - ela procura definir as próprias bases da nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra interiormente persuasiva. (BAKHTIN, 1990 [1934-1935], p. 142).

O autor salienta que esses dois tipos de palavra de outrem, apesar de muito diferentes, podem, ainda que raramente, estar unidos em uma única palavra, que se torna, então, simultaneamente autoritária e interiormente persuasiva. O mais comum, no entanto, é que haja um embate entre essas duas categorias que “determinam frequentemente a

17 Esse novo interlocutor, ainda que seja a mesma pessoa ou até o próprio ser

história da consciência ideológica individual.” (BAKHTIN, 1990 [1934- 1935], p. 143).

A palavra autoritária é aquela que não admite ser alterada pela acentuação ou pela criatividade de quem fala; é um discurso que nos chega compacto, nas palavras do autor, e então só nos cabe aceitá-lo ou refutá- lo integralmente. Na vida cotidiana, a palavra autoritária costuma ser colocada, mesmo, por quem tem autoridade, como os pais, a Igreja e o Governo. Além dessas instâncias, nos dias de hoje, o discurso da mídia poderia ser considerado como palavra autoritária, muito embora nasça de uma autoridade autoconferida, que nem sempre possui legitimidade.

Também é autoritária a palavra que se distancia, não se constrói no presente, chega até ele já pronta, não permitindo discussão com ela, ela é e ponto final.

Ao contrário disso, a palavra interiormente persuasiva “é uma palavra contemporânea, nascida numa zona de contato com o presente inacabado, ou tornado contemporâneo; ela se orienta para um homem contemporâneo e para um descendente, como se fosse um contemporâneo.” (BAKHTIN, 1990 [1934-1935], p. 146). Além do mais, a palavra interiormente persuasiva é responsável pelo grau de criatividade com que equilibramos em nosso interior o conjunto de palavras nossas com as palavras dos outros. É como se ela se opusesse à imobilidade própria da palavra autoritária. Ainda, de acordo com o autor, o caráter da palavra interiormente persuasiva também permite que haja um embate de diferentes pontos de vista dentro do sujeito, onde várias posições “lutam” por um maior espaço no discurso. (BAKHTIN, 1990 [1934-1935]).

É como se a palavra interiormente persuasiva fosse responsável pela vida do diálogo que existe em nossa consciência ideológica. É ela a responsável por manter ativas as diferentes vozes que compõem nosso discurso, permitindo que palavras mesmas ressurjam reacentuadas em diferentes situações interativas. Isso ocorre em todos os campos ideológicos, até mesmo no discurso científico (que seria mais afeito à palavra autoritária). Outro exemplo dessa assimilação da palavra do outro como palavra interiormente persuasiva, trazido pela mesma obra do Círculo, é a incorporação ao nosso discurso de palavras estrangeiras.

Além disso tudo, é relevante acrescentar que, quando a palavra do outro é desprovida de seu caráter enunciativo ela deixa de ser uma enunciação dirigida a alguém e passa a ser somente um comportamento e o que era uma resposta passa a ser uma mera reação, conforme nos coloca Amorim (2004).

Esperamos que a tentativa de discutirmos separadamente os diferentes conceitos desenvolvidos nos estudos do Círculo de Bakhtin

com relação à linguagem não interfira na compreensão de que concretamente todos eles estão intimamente imbricados; como alíás, o próprio Geraldi (2010) esclarece:

Ao associarem a noção de constitutividade à de interação, escolhendo esta como o lugar de sua realização, as concepções bakhtinianas de linguagem e de sujeito trazem, ao mesmo tempo, para o processo de formação da subjetividade o outro, alteridade necessária, e o fluxo do movimento, cuja energia não está nos extremos, mas no trabalho que se faz cotidianamente (GERALDI, 2010, p. 32).

Considerando que, na presente pesquisa, nosso foco recai sobre a escuta da reação-resposta dos professores em um processo de formação, na sequência abordaremos as noções de enunciado e discurso, as quais são importantes para situarmos o modo como serão entendidas as falas dos/as professores/as.