• Nenhum resultado encontrado

professores, especificamente professores de Português, consideramos oportuno trazer a evolução histórica dessa disciplina curricular, porque, de toda forma, o lugar de onde se enunciam hoje traz resquícios do momento de formação inicial em que se graduaram e também das condições da disciplina que encontraram no mundo do trabalho. Além disso, consideramos que a História pode nos oferecer uma visão ampliada - social, econômica e cultural - dos contextos que influenciam o trabalho docente.

Segundo estudos de Soares (2001; 2002), o status do português como disciplina curricular só ocorreu no final do século XIX, no fim do período imperial brasileiro. Isso porque, até aquele momento, a língua trazida para o Brasil pelos colonizadores portugueses representava, apesar de ser a língua oficial, apenas a terceira língua usada no território nacional. A chamada língua geral, resultante das línguas usadas pelos indígenas, resolvia problemas práticos de comunicação cotidiana e acabou sendo, por isso mesmo, sistematizada pelos jesuítas. Os mesmos jesuítas, detentores da prerrogativa de ensinar no Brasil, usavam para isso, em suas escolas de nível secundário e superior, o latim.

Até que o Marquês de Pombal, na metade do séc. XVIII, considerasse a língua geral usada na colônia como uma “invenção verdadeiramente abominável e diabólica” e determinasse que a língua do Príncipe é que deveria ser aprendida nas escolas do império49, o português

não se constituiu em uma disciplina escolar. No entanto, foi somente no ano de 1871, que se criou no país o cargo de professor de português e

48 Conforme será problematizado na seção 5.1.

49 Referência ao Diretório de 3 de maio de 1757, Cunha (1985: 79-80) apud Soares

ainda mais tarde, nos anos 30 do século XX, é que tem início o processo de formação do professor para tal disciplina específica (SOARES, 2001).

Nos primeiros tempos após as reformas pombalinas, o ensino da gramática do português serviu como instrumento para que o aluno conseguisse estudar a gramática latina, considerada, ela sim, importante objeto de ensino, juntamente com a retórica e a poética. Esse quadro permaneceu inalterado até a exclusão do latim do ensino fundamental e médio, já no século XX.

Vale destacar que as mudanças ocorridas no Brasil com a vinda da família real para cá em 1808, fizeram com que a língua portuguesa suplantasse inclusive as tentativas de reconhecimento de uma língua brasileira, a despeito da fala dos brasileiros e da produção literária (dentro de ideário romântico) realizada no Brasil de então.

De acordo com Soares (2002), até o século XIX, o componente curricular que acompanhava a gramática portuguesa no ensino era a retórica que

Inicialmente – preceitos relativos à arte de falar bem, à arte de elaboração de discursos, à arte da elocução – [a retórica] incluía também a poética – o estudo da poesia, das regras de métrica e versificação, dos gêneros literários, da avaliação da obra literária, enfim, daquilo que hoje chamaríamos literatura ou teoria da literatura; posteriormente a poética desprendeu-se da retórica, tornando-se um componente curricular independente. (SOARES, 2002, p. 148).

No final do Império, essas três disciplinas foram fundidas em uma única disciplina: o Português. Essa fusão, no entanto, não se deu efetivamente, uma vez que os conteúdos de cada uma continuaram sendo trabalhados isoladamente; o que correspondia tranquilamente aos objetivos daqueles a quem a escola servia: “os grupos social e economicamente privilegiados, únicos a ter acesso à escola, a quem continuavam a ser úteis e necessárias as mesmas aprendizagens [...]” (SOARES, 2002, p. 150).

A divisão interna da disciplina de Português se manteve até a metade do século XX, o que se comprova pela própria produção de diversas Gramáticas separadas dos compêndios de textos; por exemplo, citam-se as mais longevas: Gramática normativa da língua portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, Português prático, de José Marques da Cruz, Gramática metódica da língua portuguesa e Seleta nacional, de

Caldas Aulete, além da Antologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, ainda de acordo com Soares (2002). A respeito dessa última obra, inclusive, Razzini, em sua tese, esclarece que:

A Antologia Nacional (1895) nasceu logo após a Proclamação da República, quando novos ventos sopravam a favor da implantação de uma cultura nacional na escola brasileira, reservando ao ensino de Português e de Literatura o papel de representar a pátria.

A organização da Antologia Nacional (oficialmente adotada nas aulas de Português) e seu sucesso editorial refletem o momento nacionalista e a centralização do ensino secundário a partir do Colégio Pedro II, cujos programas e compêndios tornaram-se referência legal para as demais escolas secundárias, públicas e privadas. [...]

A adoção compulsória (até 1930) e as sucessivas reedições (a última, a 43ª edição, é de 1969) indicam que a Antologia Nacional foi um livro de leitura "intensiva" de várias gerações de brasileiros que passaram pela escola secundária. (RAZZINI, 2000, p. 14).

Paralelamente a essa estruturação interna da disciplina, às discussões sobre o quê ensinar, às contendas entre gramáticos e professores brasileiros e portugueses, por exemplo, a disciplina escolar continuou sua tradição, respondendo ao que Soares (2001) chamou de fatores externos (conforme referido em citação acima). A respeito disso, Geraldi (2010) fala enfaticamente:

Tudo indica que a reflexão sobre a língua, que começa a se produzir já nos começos da modernidade, rapidamente esquece o potencial de inovação que os vulgares poderiam representar em relação aos ordenamentos e às regras. Ao contrário, nenhum tempo de liberdade é admissível em matéria de língua: há sempre que encontrar normas, fixar o movimento para garantir não se sabe bem o quê, mas garantir a correção que somente tem existência pela construção de seu outro, o erro. [...] O poder não sobrevive ao riso, à desordem, à variação. Ele se exerce pela ordem. Em termos de língua, pelo ‘empoderamento’ de um dos modos de dizer – aquele da elite de plantão – como o único

correto, a fim de produzir os silenciamentos não só de outros modos de dizer, mas também de dizeres outros. (GERALDI, 2010, p.20, grifo do autor). O Movimento Modernista tenta dar espaço aos falares do povo, pois “havia no ar a necessidade de fundar uma nacionalidade e uma nacionalidade não se funda sem uma língua assumida como própria.” (GERALDI, 2010, p. 24). O momento político, porém, não acompanha esse pensamento e, passadas a ditadura de 1930 e a redemocratização iniciada em 1945, o desejo de “corrigir” a língua se recrudesce e se concretiza através da edição de mais gramáticas normativas da língua, como as de Celso Cunha, Celso Luft, Napoleão Mendes de Almeida etc.

Durante os anos de 1950 e 1960, o que se viu foi a progressiva transformação do ensino de português, uma vez que os manuais referidos acima acabaram fundidos num só, o que acarretou, a partir de então, a primazia da gramática sobre o texto. Esses manuais unificados acabaram por resultar nos conhecidos livros didáticos, a cujos autores foi outorgada a tarefa de “pensar” e organizar o currículo da disciplina de Português. A massiva e pacífica aceitação dos manuais didáticos por parte da escola brasileira encontrou terreno fértil na conjuntura de então em que se assistia, por um lado, à chegada das camadas populares a seus bancos, devido à urbanização e ao processo de democratização do acesso ao ensino básico e, por outro, a um “recrutamento mais amplo e, portanto, menos seletivo de professores, [...]” (SOARES, 2001, p. 215).

A escola e suas disciplinas, entretanto, não estão apartadas da História, por isso, sofreram diretamente os reflexos da ditadura militar que se instaurou no Brasil a partir do golpe militar de 1964. A visão de mundo e de educação do governo totalitário se viu representada na Lei 5.692/71, a nova LDB brasileira.

A Lei 5.692 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1971, decretou a falência desse modelo longevo de ensino e passou a enfatizar a função instrumental da língua, sua articulação com outras disciplinas, a influência dos meios de comunicação de massa, e seu comprometimento com a cultura brasileira, independente da origem lusitana. Encarado como “instrumento de comunicação” e articulado “com as outras matérias”, o ensino de Português passou a admitir, cada vez mais, um número maior e mais variado de textos para leitura, desde os tradicionais textos literários, consideravelmente ampliados com a

literatura contemporânea pós-1922, até todo tipo de manifestação gráfica, incluindo textos de outras disciplinas do currículo, jornais, revistas, quadrinhos, propaganda, entre outros. [...]

Este movimento testemunhou a queda definitiva da formação clássica humanista, expressa na escola secundária pela extinção do Latim, pela perda da hegemonia da leitura literária “como pedra angular da formação” e pela substituição paulatina do ensino de Francês, pelo ensino de Inglês, estabelecendo laços culturais mais fortes com a cultura dos Estados Unidos, não por acaso, portanto, o país que financiava ou avalizava os projetos desenvolvimentistas do governo militar brasileiro. (RAZZINI, 2010, p. 56-57, grifos da autora).

Essa lei não só alterou a designação da disciplina como impôs o perfil de aluno que queria ver saindo das escolas do país: um ser capacitado para se comunicar. Como confirmam Rodrigues e Cerutti- Rizzatti (2011):

Se o quadro teórico referencial para o ensino da língua portuguesa anteriormente se baseava na concepção de língua como sistema para o ensino da gramática e como expressão estética para o ensino da retórica e da poética e, posteriormente, para o estudo do texto, o quadro teórico referencial para essa proposta de ensino de língua baseava-se na concepção de língua como instrumento de comunicação. O objetivo proposto para a nova disciplina era essencialmente utilitarista: desenvolver e aperfeiçoar os comportamentos dos alunos como emissores e receptores de mensagens, através da compreensão e da utilização de códigos diversos – verbais ou não verbais (RODRIGUES & CERUTTI-RIZZATTI, 2011, p.61).

Interessante paradoxo ocorre nos anos da ditadura, conforme pontua Geraldi (2010), mostrando que foi só por imposição que os oito anos de escolarização se tornaram obrigatórios, momento em que as universidades também se abrem para o novo público, resultando, finalmente, num maior acesso da população ao mundo letrado.

Também Pietri (2010) fala do contexto de contradição que ocorreu no momento da recepção da LDB 5.692/71: o regime político era fechado,

mas promulgou-se uma lei que fomentava o acesso da maioria à escola, ainda que não propusesse “estrutura material e física para acomodar a nova ordem; em meio à falta de recursos econômicos e humanos para implementar as mudanças e realizar as novidades propostas” (PIETRI, 2010, p. 70).

Os anos de chumbo, no entanto, passaram e o país entra em um processo de redemocratização a partir da metade dos anos de 1980. Finalmente, a abertura dá voz aos acadêmicos, cujos trabalhos visam aproximar as teorias linguísticas, em expansão desde os anos 60, do ensino do português. A reflexão sobre o ensino de português recebe desde essa época grande contribuição de áreas como a História, a Sociologia e a Antropologia da leitura e da escrita50, além do desenvolvimento da própria

Linguística Aplicada. Como diz Geraldi (2010, p. 25): “Acontece que ‘aconteceu a linguística’”.

Na década seguinte, é promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), em vigor até hoje. Essa lei reflete, como não poderia deixar de ser, o pensamento da sociedade capitalista neoliberal, que, à revelia de algumas vozes de oposição isoladas, é o dominante. Nesse contexto, tem-se uma visão de educação que não se importa em, sob o véu de um discurso muito bem engendrado, desvalorizar o professor e a escola no seu papel fundamental na transformação da sociedade para o bem da maioria.

Soares encerra seu texto, dizendo que, conhecida a história da disciplina, mudanças podem ser propostas a partir da “instituição de parâmetros curriculares para o ensino de português, com a reformulação dos cursos de formação de professores de português ou com a avaliação dos livros didáticos”51

.

Já considerando os PCN, Pietri (2010) vem apontar incongruências entre o que se propõe nos documentos oficiais e a realidade.

Em relação às proposições formuladas pelos órgãos oficiais para o ensino básico em sua estrutura curricular e as relações que se estabeleceram entre essas proposições e aquelas produzidas no meio acadêmico, o período caracteriza-se pela diversidade de perspectivas presentes, tanto

50 Áreas em que, segundo lembram Rodrigues e Cerutti-Rizzatti (2011), surgem

os estudos sobre letramento.

51 A publicação do texto da Magda foi em 2002, possivelmente tenha sido escrito

um pouco antes. Assim, os PCN estavam chegando e ainda não se tinha feito discussão abrangente sobre eles, como, aliás, ocorreu nas últimas décadas.

teóricas quanto sociais e políticas. Tal diversidade se constituiu em função de o próprio momento histórico ser reconhecido por mudanças estruturais importantes, sem que houvesse muitas vezes o devido planejamento para sua realização. (PIETRI, 2010, p.75).

Na segunda metade da década de 90 do século passado, foram lançados os PCN - sobre os quais já se falou - numa tentativa governamental de normatizar o ensino escolar no Brasil. Paralelamente a isso, o trabalho de pesquisadores como João Wanderley Geraldi e Carlos Franchi, dentre outros, vem tentando redimensionar o trabalho nas aulas de Português.

Apesar de todo esse percurso, a disciplina de Português ainda vive seus dilemas, por exemplo: os documentos parametrizadores preconizam a democracia linguística, mas, apesar disso, as reações aos falares do povo estão muito contundentes, há no ar uma nova onda de purismo pela correção gramatical protagonizada não mais pelos professores e gramáticos como outrora, mas pelos jornalistas que travam batalhas diárias contra os linguistas e até contra os próprios escritores de nossa literatura. E, como num círculo vicioso, nos encontramos novamente na iminência de ver se calar a maioria, aquela que segundo a minoria “letrada” não deve falar antes de saber falar (GERALDI, 2010, p. 26-27). A tarefa que está dada aos professores de Português não é fácil, pois precisam se apropriar dos discursos normativos e dos teóricos ao mesmo tempo em que estão em sala de aula tendo que fazer acontecer de fato o que tais discursos esperam de seu trabalho e dos sujeitos que este trabalho ajuda a constituir.

Neste capítulo, procuramos cercar as questões relativas à carreira docente e os processos de formação pelos quais passam os professores. Vimos que não é possível discutirmos documentos parametrizadores sem antes entender, por exemplo, que eles são parte de uma instância de organização do currículo. Além disso, buscamos contemplar o contexto histórico em que a carreira docente se profissionalizou e mesmo em no qual se enquadram as políticas educacionais. No próximo capítulo, situamos o percurso metodológico que desenvolvemos, abordando questões sobre a pesquisa de cunho qualitativo, com quem esta pesquisa se realizou e os meios de geração dos dados utilizados.

4 UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA COM PROFESSORES [...]quando um pesquisador iniciante defronta-se com o dilema da pesquisa, é prisioneiro do desejo de ir além, de criar, de inovar, de caminhar em direção ao que ainda não é. Porém, como ainda não sabe quem é, fica impedido de transgredir seus próprios limites.

Entretanto, à medida que vai se apropriando de si mesmo, sua pesquisa experimenta o gosto pela autêntica descoberta de sua subjetividade. [...] É todo um processo de construir-se e, nesse construir-se, aos poucos, revelar-se. [...] A emoção do ato de pesquisar é como arte, única a cada contemplação.

IVANI FAZENDA Ao longo do capítulo anterior, discutimos acerca da importância de haver práticas de pesquisa no cotidiano do professor. Tentamos demonstrar que para além de atos efetivos em que um professor se lança na realização de uma pesquisa, o desenvolvimento de uma espécie de espírito pesquisador é fundamental para o desenvolvimento de novas práticas educativas e, principalmente, para a constituição de sujeitos docentes muito mais seguros de seu papel na educação e na própria sociedade, como se confirma com a epígrafe acima.

Este trabalho tornou-se ao longo de seu percurso o exemplo concreto de si mesmo, uma vez que demonstra a trajetória percorrida por uma professora de escola em sua aproximação com a pesquisa acadêmica. Ainda como uma pesquisadora iniciante, tivemos que fazer escolhas metodológicas num emaranhado de possibilidades, às vezes contraditórias outras vezes complementares; tivemos que nos aventurar na principal especificidade da pesquisa qualitativa que é a possibilidade de alterações provenientes do próprio percurso e das demandas dos sujeitos com os quais se pesquisa. O momento concreto do trabalho é o que vai ser abordado no presente e no próximo capítulo, como fechamento tanto do processo da pesquisa como da própria formação da professora- pesquisadora.

Neste capítulo, o foco recai na execução das intervenções propriamente ditas. Primeiramente começamos com uma discussão a respeito da pesquisa qualitativa enquanto instrumento de produção de conhecimento na área das Ciências Sociais e Humanas, onde se insere o campo da Educação. A seguir, delimitamos o contexto imediato no qual a

pesquisa se efetivou, situando não só aspectos da composição da Rede Municipal de Ensino de Santa Fé/RS como também trazendo características do município como um todo. Além disso, apresentamos as características dos participantes e da própria professora-pesquisadora. Depois disso, apresentamos os instrumentos usados para a geração dos dados: a observação participante, o questionário, o diário de pesquisa e a roda de conversa e o grupo focal. Na quarta e última parte deste capítulo, trazemos a proposta de formação/intervenção que se constituiu no campo em que foram gerados os dados desta investigação.