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Se o Homem é um ser social, o outro desde sempre esteve em seu horizonte, ainda que as noções de eu, tu e ele só tenham surgido no decorrer da evolução humana, somente após o surgimento da propriedade privada, de acordo com Volochínov (2013 [1930]). E ele acrescenta que “toda expressão tem uma orientação social. Em consequência, ela é determinada pelos participantes do acontecimento constituído pela enunciação [...] A interação entre os participantes desse acontecimento dá forma à enunciação” (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p.149. grifos do autor).

A alteridade assim é um dos conceitos-chave do pensamento bakhtiniano, aliás, antes mesmo da virada linguística15, Bakhtin já se

preocupava com essa questão. Para o autor, o sujeito só se constitui na relação com o outro.

Porque o outro, ao interagir com o sujeito, atua sempre como uma medida ou uma opinião que é exterior a esse mesmo sujeito – o seu horizonte social avaliativo: social, porque as opiniões, os valores e as crenças que temos não surgem do nada, eles têm suas raízes na sociedade e, de modo especial, nos grupos sociais de que participamos; avaliativo, porque estamos continuamente avaliando o outro e o seu discurso (SILVEIRA,

15 Momento, por volta de 1925/1926, em que a preocupação com a linguagem

passa a figurar no pensamento dos membros do Círculo, principalmente para Volochínov e Medvedev, conforme Faraco (2009).

ROHLING, RODRIGUES, 2012, p. 18, grifos das autoras).

Isso quer dizer que, em toda situação de interação discursiva, a presença do outro e a consciência da natureza desse outro por parte do interlocutor constituem o que será dito e como isso será dito. Na atitude responsiva do outro diante dos enunciados também está inscrita a posição de para quem será direcionada essa resposta; é como se a interação humana fosse uma espécie de dança em que o movimento de um determina a reação do parceiro, porque ambos mantêm um olhar axiológico sobre o outro (como veremos na seção 2.3), mesmo que esse outro seja o próprio eu, num fluxo de consciência, por exemplo. Nessa relação recíproca, o primeiro, ao enunciar, não teria como não levar em consideração quem é o segundo e este, ao ouvir o enunciado, também não poderia desconsiderar de onde a enunciação se originou, a fim de construir o real significado do que foi dito, e preparar uma resposta para ele. Essa resposta também exige do primeiro uma nova resposta e assim por diante num diálogo permanente através do tempo.

Geraldi (2015) assim se manifesta no que diz respeito às reflexões sobre o sujeito no pensamento bakhtiniano:

Se o sujeito é responsável, porque se faz participativamente respondente, no processo de construção do que sempre está a ser alcançado, o próprio eu e o ser-humanidade que nos abrange e que se faz o que é no que a fazemos ser no grande tempo pela nossa participação responsável, e se toda essa presença do eu se dá na correlação com a alteridade, princípio essencial de individualidade do eu, então este sujeito é um sujeito que está sempre se fazendo, está sempre inconcluso, nunca é igual a si mesmo, e não encontrará jamais integralidade que o conforte. [...] Este é um sujeito que é história junto com a história de outros. (GERALDI, 2015, p. 145, grifos do autor). O pensamento do Círculo introduz na discussão sobre a língua(gem) a posição do falante, o eu, o sujeito que dá o ‘start’ numa enunciação. Até aquele momento, os pensadores haviam se preocupado apenas com o interlocutor, o outro, aquele que “recebe” a mensagem. Bakhtin postula que a figura do eu é tão importante quanto a do outro, porque a linguagem se constrói na interação entre eles. Ao lançar uma palavra que é a ponte entre ele e seu outro, o sujeito está se modificando, se constituindo, uma vez que não lança essa palavra sem considerar quem

é esse outro. Só há um momento em que a palavra pertence unicamente ao locutor “é o instante do ato fisiológico da materialização da palavra.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014 [1930], P. 117). Parece difícil de entender, mas a visão do outro faz com que, na partida, essa palavra já se modifique e em se modificando, modifique o próprio sujeito; nas palavras do próprio autor “Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário [...]; levo em conta suas concepções e convicções, os seus preconceitos [...] tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele.” (BAKHTIN, 2015 [1930], p. 302). Geraldi (2015), depois de discutir essa inter-relação, afirma que “Temos a identidade que os outros nos dão.” (GERALDI, 2015, p. 45). Ou nas palavras de Faraco (2009): “É nessa atmosfera heterogênea que o sujeito, mergulhado nas múltiplas relações e dimensões da interação socioideológica, vai-se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas.” (FARACO, 2009, p. 84).

Então, a alteridade não se restringe a eventos factuais em que um ser está frente a outro, mas na relação que os sujeitos fazem entre o seu próprio discurso e as marcas que traz em si dos discursos alheios.

O sujeito se constitui em suas ações dialógicas e responsivas, pois a linguagem que constitui sua consciência não só responde aos já-ditos como se torna um já-dito para as ações futuras não só dos outros como desse mesmo sujeito. É por isso que Geraldi (2015, p. 141) diz que “os mecanismos de constituição social do sujeito não o fazem passivo nem determinado, mas flutuante e ininterruptamente em constituição.” O eu está sempre incompleto e é no exterior, na visão que o outro tem dele, que busca sua completude e dá a completude desse outro numa relação de alteridade constante que se dá nos atos de interação discursiva. Quanto a essa relação de reciprocidade entre o locutor e o interlocutor, em que um acaba por constituir outro, Geraldi especifica que:

Esta inacessibilidade, a mostrar sempre a incompletude fundante do homem, mobiliza o desejo de completude. Aproximamo-nos do outro, também incompletude por definição, com esperança de encontrar a fonte restauradora da totalidade perdida. É na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem. É nesta atividade que se constrói a linguagem enquanto mediação sígnica necessária. Por isso a linguagem é trabalho e produto do trabalho. (GERALDI, 2015, p. 108).

Como se depreende do pensamento acima, a busca de si mesmo através das interações com os outros não é fortuita, pelo contrário, é decorrente da necessidade que se tem de constituir-se sujeito.

Dessa forma, o eu sozinho nunca tem de si mesmo a real compreensão, ele precisa da presença do outro, que é quem lhe dá o excedente de visão, que o completa. Nas palavras de Geraldi:

A visão do outro nos vê como um todo com um “fundo” que não dominamos. Ele tem, relativamente a nós, um excedente de visão. Ele tem, portanto, uma experiência de mim que eu próprio não tenho, mas que posso, por meu turno, ter a respeito dele. (GERALDI, 2015, p. 107, grifos do autor).

A essência social da linguagem vem dessa necessidade de que o outro nos complete e da importância que a nossa própria visão sobre ele assume na consciência desse outro. No entanto, é relevante pontuar que há um outro lado na natureza humana, como pontua Faraco (2009) acerca do pensamento bakhtiniano:

Pode-se dizer que para o círculo, o sujeito é social de ponta a ponta (a origem do alimento e da lógica da consciência é externa à consciência) e singular de ponta a ponta (os modos como cada consciência responde às suas condições objetivas são sempre singulares, porque cada um é um evento único do Ser). (FARACO, 2009, p. 86-87).

Além disso, há o elemento tempo a ser considerado – “Da vida não há um autor e se estou vivendo, tenho um por-vir e portanto sou inacabado. O todo acabado de sua vida o ‘eu’ não o domina.” (GERALDI, 2015, p. 107) - , pois as interações não se dão isoladas e, como o sujeito está em constante constituição, é nas relações com os outros que busca novos dados sobre si.

As relações de interação, nas quais os sujeitos se encontram, constituindo-se diuturnamente através dos discursos e na relação com os outros, trazem em si um valor apreciativo que lhes é constitutivo. Por isso, é importante acrescentarmos a esta discussão outros dois conceitos bastante relevantes nos estudos do Círculo de Bakhtin: as concepções de ideologia e de axiologia (também elas imbricadas entre si). É o que trazemos na seguinte seção.