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A fraqueza do «capitão sem medo»

Madrid: ediclub, 1998, p 341.

III. Memórias de combatentes (excertos)

30. A fraqueza do «capitão sem medo»

Doutra vez, em fins de agosto de 1918, em Ambleteuse, à porta do Q.G. da Base, o meu espirito vacilou miseravelmente perto de uma hora e pensei no abandono imediato da França, o que era para mim a deserção moral [o autor recusou duas licenças], o afastamento do perigo, enfim a fuga vergonhosa e definitiva! Não era a metralha alemã que me atemorizava. Isso era cousa bem pouca perante o outro perigo que me não fere nunca… porque só mata e sem remissão.

Esse perigo era o temeroso espectro da afronta e da desonra, que eu sentia vir sobre nós todos, portugueses de Lá! Este espectro, esse fantasma, via-o vir sobre mim numa marcha lenta e vagarosa, mas implacável, e não só ao meu encontro mas também ao do brio dos soldados cuja honra me estava confiada, como seu comandante que era.

A testemunha desse outro quarto de hora de fraqueza foi também só uma.

Foi o capelão do C. E. P., o dr. José do Patrocínio Dias. Mas esse foi mais do que testemunha porque foi juiz.

À porta do Q. G. da Base encontramo-nos; ele ia a entrar e eu a sair. Paramos e conversamos perto de uma hora. Por outra, eu é que falei, falei e falei muito. Desabafei, raciocinei em voz alta, expandi diante do bravo e sereno capelão todo o desespero que me ia na alma.

Afirmei-lhe que previa por todo o mês de setembro graves insubordinações, gravíssimas mesmo. Eu adivinhava-as; farejava-as pelos bivaques da infantaria esse cataclismo formidável. […] Mas as pessoas a quem me dirigia pouco caso faziam das minhas previsões. […]

A rajada que pairava sobre o C. E. P. era de desespero, era de revolta íntima contra tudo e contra todos. […]

O capelão Patrocínio Dias ouviu, ouviu, ouviu, quase sempre e pouco disse, deixando correr como uma torrente irresistível e cheia de lógica tudo quanto eu dizia. Quando estava quase a acabar e, mais brando, começava a acalmar, reparei que se ele pouco me dizia, não tinha tirado os olhos da minha fisionomia e muito menos deixava de procurar o meu olhar com o seu.

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A sua incondicional amizade não lhe permitia a menor censura, mas o seu olhar era cheio de tristeza e ansioso ao mesmo tempo pela minha decisão definitiva.

Ou fugir ou continuar!

Comecei a ver esse olhar […], compreendi-o, senti uma vergonha enorme e repeli a fraqueza que me avassalava! […] Eles cairiam, era quase fatal, mas eu cairia com junto desses desgraçados soldados sempre ao serviço de quantas mentiras se tinham forjado e se continuavam a forjar! […]

Quanto a ti, capelão do C. E. P. e do 15 de Rincq, deste lugar, que eu tenho como um lugar de honra, agradeço-te, padre, o teu silêncio na hora triste e de fraqueza que tive, silêncio que para mim foi uma lição, que foi para mim um alto favor de amizade, que nunca esquecerei; para ti que és um crente, o efeito produzido por essa lição de silêncio foi talvez um milagre!

Obrigado, padre e amigo, por mim e por eles, porque, eu não caí na lama e na imundice moral e os meus soldados acabaram por ocupar, um mês depois, e mais uma vez, o lugar que em França sempre disputaram por dever e por direito! Lugar que da Infantaria Portuguesa na Flandres foi sempre o primeiro! […]

Não há dúvida: pelo cérebro deste vosso companheiro passou durante uma hora ou mais a quase decisão de vos fugir de vez, retirando com uma licença que duplamente lhe pertencia. Vocês ficariam ao abandono e eu raspar-me-ia à francesa […]

O jornal da Caserna dava-me então um louvor na sua ordem!

Mas em agosto, ou seja antes de três meses, o mesmo Jornal da Caserna punia-me severamente na sua ordem com uma dúvida, que era uma acusação tremenda! Tremenda e fundada.

Eles desconfiaram de mim nas horas em que eu, bem longe, a léguas, fraquejava!

Portanto, tu, padre, que és um crente, ministro duma religião e hoje príncipe da Igreja, D. José, regista o milagre de Deus!

Eu, a quem faltava talvez a formula que a tua religião impõe e de que há muito me apartei por causa de um soldado (olha que foi por causa de um soldado) também acredito em alguma cousa de superior, misto de grandeza e de humildade!

Acredito e muito no instinto supremo dos humildes, quando sofrem no seu isolamento moral em silêncio e desamparados!

Também acredito no milagre, quando ele representa o sentir de um povo forte, mas humilde e abatido!

Não só destas vezes, mas muitas mas, senti profundamente a dúvida em mim mesmo e a fraqueza assaltarem-me o espirito e quase dominar-me .

Reagia sempre, mas sofria sempre, como os outros, os soldados.332

Ferreira do Amaral

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31. «Para quê? Estes cadáveres…»

Entre despojos, sigo… Comovido? Triste?

Embrenho-me no trigo alto em que as bombas alargaram clareiras revoltas.

O abandono daqueles mortos, a miséria daqueles abrigos a realidade trágica e dolorosa daquela terra mal ferida, – o estupro daquela messe doirada, – pesam no meu coração, enchem- me de piedade... E penso, porque Deus o quer, – nos corações alemães que o orgulho e a cegueira da pátria alemã não puderam inutilizar para o Amor, e, a esta hora, em cada lar deserto, sem saber, na mais crua das espectativas, aguardam, cheios de temor e cheios de esperança, com a Morte e a Vida encarando-se tragicamente no seu coração.

Soldados desaparecidos... Sabem o que isso é?... Soldados sem túmulo, desfeitos ou abandonados, de quem as listas dos mortos ou prisioneiros calam os nomes, e que nem são bem chorados nem aguardados bem... Mortos vivos, fantasmas... […]

[O autor encontra um postal alemão em que lê:] "Meu querido… a tua mãe…" "O meu coração domina a guerra, passa alem do que me cerca e olho em mim como num deserto…

Para quê? Estes cadáveres múmias, este abandono, esta terra dorida, estas dores, Senhor?...

E a mágoa da vida mutilada, vendida a ódios inúteis e às mentiras que envalam os sonhos violentos das raças, – chora no meu coração... Para quê? Para quê?...

Tem o homem assim de expiar a loucura criminosa das suas vaidades? Pois Deus consente que, no espirito humano, um culto egoísta e brutal duma Pátria levante, sobre bases de violência, tão disformes construções para afronta da vida, sofrimento do mundo e punição final dos que as erguem sobre os seus corações obcecados, congestionados, esquecidos de Deus?

Que calvários rudes nos faz Deus subir para que a Vida vença e a Sua lei domine!... [...] E eu sofro, no meu coração de soldado de Deus, as dores dos meus inimigos sob o flagelo dos seus próprios crimes. Poderá sua dor redimi-los?

Mas o canhão soa, nas baterias, por trás de mim... [...]

E ao meio da messe enorme onde ficam os cadáveres dormindo, – ergo-me à aleluia da vitória próxima, adivinho a primavera nova, sei que os homens se purificam dos seus crimes, magoados dos seus arrependimentos. E que as sendas da Vida até hoje ásperas de egoísmos, secas de piedade, passarão um dia sob os arcos floridos, para levar os homens, mais amoráveis e mais puros, a uma ventura mais segura e melhor...

Olho a morte impassível e frio... porque uma razão suprema fala mais alto que todo o enternecimento ou revolta da hora, – e respiro fundo, bárbaro renascido, maxilares contraídos, olhar duro, – ansiando a hora em que, de novo, serei a par da morte lutando sob a sua perpétua ameaça, levando-a pela minha mão...

Locon, 30 de Agosto, 1918.333

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Augusto Casimiro