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A Nossa Senhora das Trincheiras

Madrid: ediclub, 1998, p 341.

III. Memórias de combatentes (excertos)

18. A Nossa Senhora das Trincheiras

[Neuve Chapelle] Era uma linda cidadezinha com o seu château, a sua brasserie, uma igreja e um belo Cristo num calvário, no cruzamento de duas estradas.

Veio a guerra. Sobre esse terreno travou-se uma das maiores batalhas, caíram aos milhares os soldados, misturados de roldão os índios e os escoceses, os franceses, os argelinos e os boches das melhores legiões das guardas mais imperiais. O terreno disputou-se palmo a palmo, e um dia as duas linhas estabeleceram-se a cento e cinquenta metros uma da outra, cavaram-se as trincheiras, consolidaram-se as posições. Então procurou-se a linda cidadezinha que ali havia. Tinha desaparecido. Não restavam senão montões de escombros e de tijolos, e de pé, incólume, com uma granada não rebentada incrustada no pé da cruz, o Cristo do cruzeiro.

Passou um Inverno, veio a Primavera, romperam ervas bravas e flores silvestres por todos os cantos, e os homens toupeiras condenados a guardar aquela meia légua quadrada, solo sagrado porque nenhum como aquele se embebeu em sangue humano, porque cada sete palmos de terra cobrem uma cova e os ossos aparecem hoje a cada golpe de picareta, foram

318 SILVA, Vicente José da — A Guerra de 14, p. 53-54. 319 MORAIS, Pina de — Ao Parapeito, p. 129.

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por vezes de rastos explorar as ruínas, para lá estabelecerem observatórios ou postos de metralhadoras. Do que fora a igreja trouxeram a Nossa Senhora, intacta como o Cristo, e, quando ali entrámos, nós os portugueses, fomos encontra-la de pé sobre uma campa humilde marcada por uma cruz e por este dístico encantador: TO AN UNKNOWN SOLDIER «A um soldado desconhecido».

E ali está, a algumas centenas de metros do seu filho crucificado, aquela imagem sobre cujos dourados pesaram três invernos de neve, três verões de sol, tremendo a toda a violência dos bombardeamentos.

Ela tem visto passar nas noites sem estrelas os soldados que partem, baioneta armada, punhal à cintura, os bolsos cheios de granadas, para as patrulhas das quais às vezes não se volta. Viu passar na hora dos contra-ataques as reservas que seguem, olhos fixos e maxilas cerradas, correndo para a primeira linha, os feridos e os mortos que sobem para o posto de socorros sobre as lonas das macas ou nos braços dos camaradas. Viu, sob os bombardeamentos, aluírem-se os abrigos, voarem as passadeiras e os taipais, obstruírem-se as trincheiras, cortarem-se os fios telefónicos e os soldados colarem-se ao chão destro das crateras ou dentro das valas, mudando, correndo ou rastejando, de esconderijos, os oficiais rabiscarem ordens á pressa no seu caderno de guerra, as estafetas partirem sob a tormenta, e a calma voltar dali a tempo, contarem-se as perdas, repararem-se os estragos, e a vida recomeçar à margem da morte, que ceifará talvez amanhã os que poupou agora. Viu passar os prisioneiros, braços erguidos, mais verdes na face que na vestimenta, convulsos do corpo-a-corpo e duvidosos ainda de estarem para sempre libertos do grande pesadelo.

E a imagem ali fica. A seus pés, em latas de comestíveis vazias, em frascos de pickles abandonados, mãos rudes de soldados põem cada dia essas flores de trincheira, cujas raízes crescem na terra adubada pelo corpo decomposto dos heróis que não houve tempo de enterrar com uma cruz e um dístico.

Por um singular acaso, poupam-na as granadas. Só o tempo, a chuva, a neve e o sol vão roendo os seus dourados, sumindo as suas cores e apodrecendo a madeira em que foi esculpida por quem não lhe cismou um destino semelhante. O seu sorriso de bondade, aquele sorriso que alumiava a capela onde outrora estava repousada e acolhia as súplicas dos corações seus devotos, vai desaparecendo da sua face carcomida, onde há salpicos de lama.

Só fica o gesto protetor dos seus braços abertos estendendo-se sobre a campa do «unknown soldier», e também sobre nós, soldados desconhecidos da grande guerra.320

André Brun

19. «Para lá de mim, a guiar-me, anda uma força divina»

A tua carta de 28 de Maio chegou assim… Escreveste-la quando eu estava em primeira linha. E a tua alma fala-me naquelas palavras tanto, […] sinto-o para lá da morte e sob os olhos

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de Deus. Releio essa carta, rezo-a, vejo a tua Alma. Como são límpidas as tuas palavras! Sim, eu sei, eu adivinho, eu creio. Tu vives a minha alegria. Sabes que, no horror do drama, há um motivo, um ideal sagrado, temperando a minha fé, alando o meu entusiasmo. Eu adoro a Vida até não temer perdê-la porque te adoro, e a nossa Vida toda está nas mãos dum filho nosso cuja herança é preciso tecer de sacrifício e dores para ser de beleza e eternidade... Sei que, um momento ou outro, a morte pode vir buscar-me. Já a senti passar ao meu lado, tocar-me quási, procurando-me. O amor da Vida fez-se em mim afeição, desejo de perigo. Mas é tamanha a minha esperança, trago tanto nas minhas mãos erguidas a esperança de que sairei incólume, mereço-o tanto, que Deus olha por mim decerto e aqueles que me querem bem. Se penso que posso enganar-me, o coração confrange-se-me. Porque me lembra de ti, por causa da tua dor. [...] Se eu não ardesse numa chama que é de além Vida e Morte e vem de Deus, em certos momentos diria: «Eis a minha expiação, o meu inútil calvário.» ... Por ter desejado à minha Pátria, à sua alma imperecível, a comunhão na grande tragédia redentora em que vão nascer mundos... E por ter esquecido... Não, para quê? E não desanimo. Se canto esta alegria orgulhosa e brutal, agressiva para todos, religiosa e íntima, – é que, para lá de mim, a guiar-me, anda uma força divina, uma luz do céu que eu mal descubro, mal enxergo, e através dos meus erros, das minhas fraquezas, das cegueiras e ausências dos outros, me ampara e me sustêm...321

Augusto Casimiro