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Diversidade de estilos e modelos de análise

2. A memória e as memórias como fonte de investigação

2.2 As memórias de guerra como género literário 1 Sob o olhar do investigador

2.2.3 Diversidade de estilos e modelos de análise

Como referimos anteriormente, um dos aspetos mais complicados na análise das memórias consiste em saber, naquelas que foram publicadas logo a seguir ao conflito, quais os textos escritos durante e após a guerra. Nuns casos, o autor fornece- nos a data e, raras vezes, até o local. Mas, frequentemente, nem uma coisa nem outra são indicadas. No caso de Augusto Casimiro, por exemplo, a situação é relativamente fácil de resolver, uma vez que este autor dedicou uma obra ao ano de 1917 e outra ao de 1918, sendo que a sua narrativa é guiada, cronologicamente, pelos sucessivos episódios que decide narrar. Deste modo, se na descrição de determinado acontecimento o autor refere, por exemplo, que na noite anterior nevou intensamente, ficamos a saber que estamos em pleno inverno, entre finais de 1917 e inícios de 1918 (neste caso, quase de certeza em 1917, visto que, nos primeiros meses do segundo ano, devido aos constantes bombardeamentos alemães, o autor pouco ou nada escreveu).

Porém, o caso mais complicado é o das memórias de Pina de Morais, onde uma narrativa assente no rigor cronológico não existe verdadeiramente. O autor, poderíamos dizer, escreve ao sabor do que lhe vem à cabeça, ou, melhor dizendo, ao modo como vai relendo e meditando nas páginas da guerra contidas na sua gaveta. É compreensível que assim seja, se tivermos em conta que todos os seus textos escritos durante os primeiros meses em que esteve na Flandres ficaram em cinzas após uma granada de artilharia ter destruído a casa que o acolhia e onde guardava as suas memórias escritas. O que restou foi o que autor escreveu após este incidente e cujos textos viria a incorporar nas suas memórias, juntamente com outros novos (estes sim escritos após o conflito), onde tentou reconstruir textualmente algumas das memórias perdidas nessa noite de bombardeamento.

Por estas razões, as obras de Pina de Morais requerem uma leitura mais exigente. É necessário ler capítulo a capítulo, procurando encontrar pequenos indícios que nos ajudem a colocar aquela narração num período cronológico concreto. Esses

86 SANTOS, Ernesto Moreira dos — Cobiça de Angola Combate de Naulila seus heróis e seus

49 indícios vão desde a neve, ao ouvir cantar os passarinhos pela primeira vez (o que nos indica que estamos nos inícios da primavera), às mais variadas expressões e informações à partida pouco relevantes para o trabalho mas que se revelam fundamentais para a organização do investigador.

Tendo em conta o que acabamos de referir, temos de compreender que cada autor tem a sua forma de escrita. Encontramos combatentes cuja familiaridade com a escrita é assinalável, não fossem eles também escritores. Mas encontramos, do mesmo modo, autores que nunca até à data da publicação das suas memórias tinham escrito um livro. Pedro de Freitas é um bom exemplo. O próprio põe-nos de sobreaviso:

O livro que tendes na mão é o fruto simples de uma árvore que produziu uma só vez em sua vida, e nada mais. É, portanto, um livro fora do vulgar, que gira à margem dos autênticos, dos que satisfazem as vossas exigências literárias; é, pois, um livro enjeitado que só o meu atrevimento imperdoável faz reter em vossas mãos. Não é um livro de literatura de guerra, da sua história, de discussão à causa do grande conflito, não! É apenas a descrição da guerra bem vivida, no ambiente da mais baixa condição, a de soldado, e escrito pelo punho daquele que a viveu sem galões nem divisas e acamaradado à massa anónima, denominada a Grande Malta, e num estilo que é muito da sua grei.87

Embora possa parecer contraditório são as obras destes autores as mais fáceis de abordar. Têm maior tendência para a narração simples, para além de que grande parte das memórias destes militares é escrita ou a meio da vida ou na sua fase final, de modo que, se, por um lado, há uma maior probabilidade de se enganarem (e a nós também), acontece que descrevem os acontecimentos com menos pormenores e mais simplicidade. É claro que isto tem as suas vantagens e as suas desvantagens, como já vimos.

Em contraponto, aparecem-nos os ditos grandes autores: Augusto Casimiro, Pina de Morais, Jaime Cortesão, António de Cértima, entre outros. O caso de Pina de Morais é singular pelos constrangimentos que as suas memórias causam ao investigador, como já abordámos. As obras destes quatro autores oferecem ao investigador relatos vivos, uma vez que são obras escritas ou compiladas logo a seguir ao conflito, contendo muitos textos escritos no decorrer do mesmo. São verdadeiramente uma mais-valia pelo facto de permitirem ver com mais detalhe os fenómenos religiosos e de compreender as vivências experienciadas pelos seus

87 FREITAS, Pedro de — As minhas recordações da Grande Guerra. Lisboa: Tipografia da Liga

50 autores. Mas os textos escritos no calor dos acontecimentos nem sempre são os melhores para nos oferecerem uma imagem clara. Falta-lhes o tempo capaz de conceder a cada coisa a sua devida importância. Para além de que, sendo estes autores mestres da escrita, possuem subtilezas nos seus textos capazes de persuadirem o investigador de personagens e acontecimentos que podem até nunca ter existido.

As memórias de Augusto Casimiro são a este respeito uma interrogação para o historiador. Terá mesmo o Alferes Turíbio (uma personagem humorística presente numa das suas obras) existido?88 E os textos respetivos são efetivamente dessa personagem

ou são pura criação literária despontada, quem sabe, por um ou outro relato de algum combatente? Ou será o alter-ego do autor? Se estamos de facto perante uma criação, por que escolheu o nosso autor uma personagem com um sentido de humor tão apurado, uma espécie de Svejk português? Neste ponto não deixa de ser interessante comparar o alferes Turíbio a essa grande personagem da literatura sobre a Grande Guerra. À semelhança de Augusto Casimiro, Joroslav Hasek apresenta-nos o dia-a-dia de Svejk, um soldado austro-húngaro, modelo perfeito de anti-herói que faz exatamente o contrário daquilo que pretende. O resultado é uma comédia «negra e satírica», onde a participação na Guerra ultrapassa o domínio do absurdo, sendo um dos casos mais estupendos da obra a representação de um capelão completamente embriagado, em plena eucaristia, a pregar um sermão às tropas89. Embora os textos e as personagens

criadas, tanto por Casimiro como por Hasek sejam diferentes, não deixa de ser curioso constatar que ambos tenham explorado o quotidiano da guerra sob a ótica do humor. Ter-se-ia tornado este uma necessidade quase de sobrevivência no contexto de uma guerra onde tantas vezes o tédio imperava? Ou será que, a determinada altura, após a derrocada de todas as ilusões e face ao sentimento de abandono e de desastre vivido entre as tropas portuguesas, nada mais restava do que rir da própria loucura, da própria tragédia? Terá o humor – tal como a fé – uma dimensão de refúgio onde homens desorientados se abrigam?

Quisemos com tudo isto dizer que cada memória, mediante o seu conteúdo e método de construção, e sofrendo as consequências do tempo em que é escrita, requer um tratamento especial.

Parece ter ficado evidente que não basta ao investigador ler uma fonte memorialística, selecionar uma determinada parte do texto e transcrevê-la para o seu trabalho. O historiador que lida com tais fontes tem de ter consciência dos seus condicionalismos e das suas vantagens. O seu olhar não pode avançar como o do

88 CASIMIRO, Augusto — Nas Trincheiras da Flandres (1917), p. 147-176.

51 «turista desatento que anota/mas não vê»90. É preciso ir mais longe. Perceber que sobra

sempre vida à história que se conta. E que aquelas memórias não o levam verdadeiramente ao passado. São a porta de entrada num outro mundo. O mundo das recordações que se entrelaçam, multiplicam e se reinventam. Cada autor tem dentro de si algo novo por explorar. O historiador tem de compreender todo isto e apontar um espaço em aberto – o espaço infinito que se vislumbra das janelas de cada casa- memória –, uma «terra de ninguém» onde os pontos de interrogação (todos eles, não apenas os que vemos a dado momento) proliferam e reinam. O investigador tem de aprender a apreciar a «porção silenciosa da narrativa»91 para chegar ao invisível.

90 MENDONÇA, José Tolentino — Que coisas são as nuvens, p. 13. 91 ANTUNES, João Lobo — Ouvir com outros olhos, p. 26.

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