Madrid: ediclub, 1998, p 341.
III. Memórias de combatentes (excertos)
23. História do Sapador
– És tu Menaita? Estás mal meu rapaz? O soldado sorri. Ajeita-se mais perto do lume elevando a axila e diz-me:
– Perdi muito sangue, mas não é nada, a Senhora da Guia há de melhorar-me… a minha Prazeres pede-lhe. E depois voltando os olhos para mim, numa confiança encantadora… […]
A noite é fria e escura, de claro só há até onde abrange a fogueira: um pedaço de caminho e um muro esburacado. Depois é a escuridão cerrada – até à franja rubra da linha de batalha, lá do lado donde vem o sol. O meu sapador tem uma alegria indefinida, num olhar que sai de olheiras escuras e grandes como duma máscara veneziana. Acomoda-se à volta do lume e estende o braço às vezes a compor a lenha que vai ardendo. Esta fogueirinha deve fazer evocar ao meu sapador coisas felizes porque no seu olhar continua uma alegria indefinida e serena. […] Muda o seu olhar de alegria serena num olhar fatal de tristeza. Para ver se o detenho nesta queda brusca, acordo-o, dizendo:
– Então, Menaita, que temos?
– Estava a lembrar-me de coisas… há! Quando a batalha começou e que tudo ardia, estava a lembrar-me que a gente arde como lenha. Reparou que um homem assim como nós – fica como um pequeno de doze anos... um chamiço?
E o meu sapador passa no olhar uma sombra de terror que me confrange. – É bem melhor um rosário de balas, diz o Menaita, ou uma caqueirada. Vejo-o sossegar pouco a pouco e depois rematar:
– O meu tenente fez bem em vir para a fogueira, este luminho aquece… e o que lá vai, lá vai…
– Parece que estou ao lume na minha terra! Monologa o soldado esquecido. […] – Foste tu um dos que fez saltar a ponte sobre o Lys? Estava cá a lembrar-me. […] – Fui! E era o último. […]
– Faz tanta pena ver cair estilhaços sobre os que já não sentem! […] Pergunto-lhe se lhe dói muito o ferimento.
– Não, não é nada, não é nada, diz o Menaita acenando com a mão.
Tem o olhar escuro fito na fogueira e os lábios cerrados escuros como os olhos. Contorce-se levando a mão à ferida da axila remexendo entre os pensos. Ouço-o chamar baixinho pela sua mãe e vejo um fio de sangue a descer pelo canto da boca até à orelha, a sumir- se na gola cinzenta…325
Pina de Moais
324 CASIMIRO, Augusto — Nas Trincheiras da Flandres, p. 86-87. 325 MORAIS, Pina de — Ao Parapeito, p. 53-58.
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24. Um enterro
À memória de José de Oliveira, 129 da 1.ª, José Maria Bêcho, 110 da 1.ª, e Serafim de Abreu, 506 da 1.ª, primeiros mortos do meu batalhão.
«Morteiro médio em M. 53 d. 80.65. Três mortos.» […]
À tarde, em três macas rodadas, vamos levá-los ao cemitério, a um daqueles cemitérios de guerra postos à beira das estradas, para que o nosso espírito se não esqueça de que é mais fácil nestas paragens ganhar a cruz de pau do que a cruz de guerra.
Saímos da trincheira e desembocamos na estrada crivada de granadas, onde a par de uma ferme em ruínas se eleva a capelinha intacta de uma encruzilhada. Não há canto destas estradas da Flandres onde se não eleve um calvário ou um modesto altar, à Senhora do Bom Socorro, à Senhora da Piedade…
Os condutores das macas seguem em silêncio. Um pouco adiante, uma bateria nossa, escondida atrás duma ruína, faz um fogo espaçado de regulação. A tarde é linda e o cabo nomeado para acompanhar os corpos, os mesmos da teima de manhã, conta a sua aventura e remata com o fatalismo, que tem de ser a nossa filosofia por estas bandas:
– Não calhou! […]
Chegamos enfim ao war cemetry, ao cemitério de guerra. Defronte há um estaminet, cuja
mademoiselle veio à porta, de súcia com alguns ingleses. Soldados portugueses dum batalhão
de apoio põem-se a caminhar atrás de nós, através das ruazinhas alinhadas, floridas de cada lado de cruzes brancas todas iguais.
E, enquanto não chega o capelão, vamos lendo os letreiros. São soldados, bastantes oficiais. Há algumas coroas, ofertas de camaradas; e sempre a rematar os dísticos das cruzes a menção: «Killed in action». Todos os que ali estão foram-se de morte súbita, duma bala desgarrada, dum estilhaço vadio, sem verem o inimigo, sem verem o inimigo, sem saberem às mãos de quem morriam.
Para um cavaleiro à porta do cemitério. Apeia-se um oficial, o capelão de brigada, e das bolsas do arreio saca um embrulho. É uma sobrepeliz de grosso pano branco, uma estola negra toda amarfanhada, e o seu livro de orações.
As covas estão abertas, bocas hiantes de terra-mãe, esperando os filhos que regressam. E, enquanto os soldados portugueses ajoelham e se persignam e nós nos descobrimos, o padre começa a sua encomendação. Mal se lhe entende o latim e, de quando em quando, interrompe- se para cruzar as mãos e rezar a Ave-maria a que responde o coro dos soldados prosternados. No meu espírito revivem os belos versos de Deroulède:
Un liceul à moi? Pourquoi faire?
C’est bom pour qui meurt dans ses draps. Le lit du soldat c’est la terre,
174 La terre rouge des combats…
O vento sacode a sobrepeliz do capelão, deixando ver as suas polainas e as suas esporas, e o murmúrio avoluma-se:
– Rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte…
Descem sucessivamente à terra de França os corpos desses soldados de Portugal. Cada um de nós vai lançar sobre os restos informes uma mão cheia de terra. O capelão está retomando o seu aspeto militar e arrecadando o seu livro; os ingleses, coveiros daquele estranho cemitério, começam enchendo as covas a grandes pazadas. As macas já lá vão de regresso e, acendendo um cigarro, sem podermos dominar uma certa melancolia, o meu companheiro e eu regressamos às trincheiras, enquanto à nossa direita a bateria continua o seu fogo espaçado de regulação.326
André Brun