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A partida: primeiras referências à religiosidade

4. A fé em tempos de guerra

4.1. A partida: primeiras referências à religiosidade

Ao lermos as memórias, os diários e as crónicas que alguns dos combatentes escreveram sobre a partida para a guerra não podemos ficar indiferentes às disparidades que observamos. Sobretudo quando comparamos aqueles que partiram para as terras de África e os que mais tarde embarcaram com destino à Flandres. Nos primeiros, está presente o sentimento de desprezo por parte do poder político, agravado pela indiferença com que a população lisboeta via partir as sucessivas expedições militares sem ao menos as saudar e encorajar. As desumanas condições a que os combatentes eram votados durante as longas semanas de viagem marítima e a completa desorganização e impreparação da administração ultramarina apenas contribuíam para acelerar a degradação, tanto psicológica como material, das tropas expedicionárias. Com um início assim, dificilmente as campanhas africanas poderiam ser levadas a bom termo.

Deste ponto de vista, parece que os combatentes portugueses que durante o mês de fevereiro de 1917 partiram para França tiveram melhor sorte. A população de Lisboa saiu em peso às ruas para saudar os batalhões que passavam pela cidade. Até mesmo as condições nos navios eram substancialmente melhores (lembremo-nos que em grande parte o transporte do CEP para França foi garantido no início pela marinha britânica). Já do ponto de vista político, poder-se-á dizer que não faltava vontade e empenho nesta matéria. O que faltava, em muitos casos, era a vontade de partir para uma guerra cujo fim muitos militares não compreendiam ou então contra o qual se opunham convictamente. Houve casos de insubordinações e deserções, chegando ao ponto de alguns militares, tendo já embarcado a bordo dos navios, mudarem de ideias e abandonarem as embarcações antes destas levantarem âncora.

Não pensemos, contudo, que todo o CEP se levantou em protesto. Os casos que acabamos de referir terão sido incidentes pontuais, mas, ainda assim, revelam problemas de indisciplina e, talvez mais importante do que isso, as divisões e a fraca moral por parte das tropas. Mas, enquanto alguns tentaram aproveitar a derradeira oportunidade de fugirem à guerra, a maioria dos seus companheiros experimentava um misto de sentimentos bem diferentes.

Entre eles estava um jovem alferes que se tinha voluntariado para combater na Flandres. Chamava-se Augusto Casimiro. A ele vieram a juntar-se o jovem médico Jaime Cortesão, seu futuro cunhado, e também os irmãos Olavo. Partiram todos com a convicção de estarem a cumprir o seu dever, mas, antes de mais, de estarem a honrar a história do seu país. Olhavam para a Alemanha como a nação maligna que era preciso

72 combater a todo o custo. No seu entender, era a derradeira oportunidade de Portugal se juntar às grandes nações que defendiam «a verdade e a liberdade». Era essa a «vontade de Deus», achava Casimiro. Ora tal perspetiva – embora existissem dentro do exército germanófilos, normalmente conotados pelos republicanos como monárquicos – estava fortemente disseminada pelos oficias mais jovens do CEP, os ditos «jovens turcos» da República. Não foi por acaso que foram exatamente estes oficiais que partiram para a Flandres e que ocuparam os postos de comando, enquanto a generalidade dos comandantes tidos como monárquicos ou simpatizantes foi destinada às campanhas africanas. Mas rumemos em direção ao nosso objetivo. O sentimento de Augusto Casimiro, por essa altura, era a alegria ilusória de um jovem prestes a cumprir o seu sonho. O sonho de combater honrando o seu país. As suas recordações sobre a noite anterior à partida são a este respeito bastante reveladoras. «Sobre o meu quarto fica o de minha mãe. Os seus gemidos não me deixaram sossegar... Chorei... Mas sou tão feliz»142.

No dia seguinte, o da partida, Casimiro marchou à frente dos seus homens pelas ruas da capital. Há homens que chegam roubados ao último abraço – conta-nos o autor. Pelas avenidas da cidade, tudo cheio de gente. Ouvem-se soluços. Vêm-se olhos rasos de lágrimas. Muita ansiedade… «Por que me pesam e me revoltam estas lágrimas?». E acrescenta: «Minha mãe de quem me não despedi, chora também, sozinha, a esta hora!... – Tenham pena de nós... deixem-nos partir alegres! Vá, não chorem!...»143 e de

cabeça alta, todo fremente, mas com os olhos embaciados Casimiro sente-se como «um estandarte ao vento», vai «cheio de amargura». De repente, em frente à estação, um enorme silêncio, e a multidão com «uma grande face pasmada». Eram rapazes que partiam, talvez para não mais voltar. Partiam para conhecer o medo.

O primeiro perigo que as tropas enfrentaram estava mesmo ali ao pé. De facto, com a guerra submarina praticada pela Alemanha existia um enorme receio de que os navios aliados fossem afundados. Daí que as sucessivas viagens de transporte do Corpo Expedicionário Português fossem muitas vezes adiadas alguns dias e que as saídas da barra fossem, quando necessário, efetuadas durante a noite com todos os navios às escuras.

Embora alguns autores evidenciem nas suas memórias uma certa euforia e alegria patriótica, aquando da partida, julgamos que um novo sentimento se veio a manifestar à medida que os homens avistavam dos navios a terra a perder-se no

142 CASIMIRO, Augusto — Nas Trincheiras da Flandres (1917). Porto: Renascença Portuguesa,

1918, p. 27.

73 horizonte. Talvez esse progressivo afastamento físico da terra e a paralela interiorização de que partiam irremediavelmente para uma outra terra desconhecida (fosse para África fosse para a Flandres), conjugados com a inevitabilidade de fazerem uma viagem perigosa em alto mar – onde qualquer ruído estranho ou mesmo os silêncios obscuros desse mar falsamente transparente –, desmascarassem essa ilusão patriótica e heroica alimentada pelos discursos que ouviram na partida. Estava-se perante o perigo eminente, perante as primeiras horas do medo.

Cremos, por isso, que este primeiro choque, o da tomada de consciência de que a qualquer momento poderiam ser afundados por um submarino alemão foi o primeiro fator com repercussões religiosas. Por outras palavras, alguns dos combatentes tendo conhecimento do perigo começaram a colocar-se sobre a proteção de Deus, da Virgem e dos santos. O combatente Carlos Selvagem, um expedicionário a Moçambique, conta como deu graças à Nossa Senhora dos Navegantes por esta ter atendido a sua prece quando o navio em que ia embarcado passou a zona perigosa, «sem ameaça de maus encontros»144. As memórias do combatente da Flandres José Vicente da Silva são

também elas reveladoras dessa religiosidade de cariz popular entre alguns soldados. Mas a sua viagem não ficou apenas pautada por essa observação. O autor realça uma particularidade ocorrida durante esses dias em alto mar que não encontramos em mais nenhuma outra memória. Trata-se, no seu entender, de algo novo e verdadeiramente comovente para quem, «faz uma viagem marítima pela primeira vez, tudo é novidade«145. Após percorrer o navio, conta-nos o memorialista:

Por fim, a minha tenção foi desviada para certos preparativos que se estavam fazendo sobre o convés, a um dos lados do navio, e perto do lugar onde me encontrava: improvisava-se um altar e, momentos depois, o padre capelão, que nos acompanhava, iniciou a missa. De repente, e como que impulsionados por uma mola, todos os que estão presentes se prostram de joelhos em frente ao altar. Ajoelho também; faz-se o silêncio e os espíritos concentram-se fervorosamente em suave recolhimento… Oh! O encanto místico de uma missa a bordo! É qualquer coisa de inédito que se sente, mas não se pode definir. Será que sentindo-se mais afastados do mundo nos encontramos mais perto de Deus?... Por cima o céu, por baixo o abismo!146

144 SELVAGEM, Carlos — Tropa de África: Jornal de Campanha de um Voluntário ao Niassa.

Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925, p. 29.

145 SILVA, Vicente José da — A Guerra de 14, p. 19. 146 SILVA, Vicente José da — A Guerra de 14, p. 21.

74 O momento em si e o silêncio que o embalava – conta-nos o autor – eram impressionantes. A solenidade daquele ato era apenas perturbada «pelo ruído monótono das máquinas e pelo marulhar das ondas batendo raivosas de encontro ao casco do navio»147.

À falta de música apropriada, esta sinfonia estranha, longe de prejudicar a solenidade da missa, mais realce lhe dava. Este conjunto de circunstâncias dava ao ato um ambiente tão particular que se nota no semblante de todos, desde o celebrante aos assistentes, uma atitude mais recolhida, como não é costume observar-se em outras ocasiões. Escusado será dizer que, durante os três dias que durou a travessia do mar Cantábrico, ninguém deixou de comparecer à missa, podendo renovar assim um prazer espiritual que, certamente, para nós, não mais se havia de repetir nas mesmas circunstâncias.148

É o único caso testemunhado nas memórias que consultámos de uma missa a bordo durante a viagem a França. Há dois aspetos que vale a pena salientar. Em primeiro lugar, a devoção dos combatentes, fossem eles soldados ou oficiais, não se podendo descurar a reflexão feita por Vicente José da Silva: «Será que sentindo-se mais afastados do mundo nos encontramos mais perto de Deus?»149. Em segundo lugar,

sabendo que os primeiros tempos de guerra não foram nada propícios a manifestações religiosas, achamos estranha esta facilidade com que se realizou a eucaristia e a aceitação e presença de tantos militares, sem que houvesse contestação por parte dos setores mais radicais. Poderá ter sido omitido no relato esse aspeto, se é que existiu. Neste sentido, devemos de ter em atenção que as suas memórias foram escritas numa fase avançada da vida em que o tempo foi depurando na sua memória o essencial, isto é, as suas melhores recordações, certamente transformadas e reconstruídas, o que não as invalida, antes realça a importância da experiência religiosa proporcionada pela Grande Guerra.