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A sorte e a indiferença face à nova realidade.

Uma das frases que mais nos chamou à atenção ao longo desta investigação foi a seguinte: «há quem consiga ser alegre e ter o espírito preso a pequenos nadas cheios de encanto»265. Encontrámo-la escrita numa das crónicas de André Brun e refere-se ao

soldado Madruga, um homem com uma história singular, segundo nos conta o humorista:

Há mesmo casos estupendos: – o do Madruga, aquele soldado da primeira, que dorme sempre nas covas que os outros desdenham e que, quando vai para as patrulhas de escuta na terra de ninguém, tem de ser acordado ao bofetão porque chega lá, instala-se numa cratera pequena, põe a espingarda para o lado e, puxando o impermeável para o nariz, só lhe falta soprar a luz antes de adormecer. Seria uma barbaridade acordá-lo, se não dependesse da sua vigilância a segurança da linha. Não se faz ideia da expressão com que ele responde a quem o agride pela sua sonolência incurável e lhe mostra os perigos a que se arrisca: – «Ora! Se calhar, não tinha de calhar». Com efeito. Se tiver de calhar, que adianta ter medo? E, se não tiver de calhar, para que serve tê-lo?266

O que nos terá para dizer esta figura caricata. Aparentemente, nada. Eis, pois, a primeira grande revelação. O soldado Madruga é para nós o reflexo palpável da indiferença. É certo que se trata de uma indiferença generalizada, por tudo e por todos, chegando mesmo ao desprezo pela própria vida. Ao meditarmos nas palavras de André

264 CASIMIRO, Augusto — Nas Trincheiras da Flandres (1917), p. 174-176. 265 BRUN, André — A Malta das Trincheiras, p. 130.

122 Brun sobre este soldado, pensamos nele como símbolo perfeito da indiferença religiosa. Um homem para quem as cerimónias religiosas e as devoções provavelmente não teriam grande significado, sendo quase sempre mais reconfortante uma boa sesta.

É claro que esta é uma visão imaginada. Jamais poderíamos descrever este homem e a sua relação com a divindade tendo apenas como base este pequeno testemunho. Mas é a frase anteriormente citada que nos inquieta e nos faz meditar num outro sentido.

Se este homem pode ser definido como um indiferente em matéria religiosa, não poderá do mesmo modo ser entendido como o símbolo perfeito da crença? «Tende a fé de Deus, não de tipo humano». Tende, isso sim, «uma fé minúscula» e «nenhum dos vossos cabelos se perderá», lê-se nas Escrituras. «Ora! Se calhar, não tinha de calhar», dizia o jovem soldado a todos os que o importunavam.

Qualquer das vias aqui apresentadas é forçada e deixa de lado o verdadeiro fator que mais determinava o comportamento do soldado: o sono, a doença do sono. No entanto, não deixa de ser interessante refletir, nesta fase final do nosso estudo, se a esmagadora maioria dos combatentes não olhou mais tarde para a sua experiência religiosa na guerra com semelhante indiferença.

É bem provável que esta tenha sido a realidade para a maioria dos combatentes. É provável que muitos viessem mais tarde a esquecer a fé desses dias. Que não mais praticassem a religiosidade e que esta se tenha dissipado, tornando-se meramente secundária ou inexistente ao longo do resto das suas vidas. Fica-nos uma pergunta para a qual não obtemos resposta. Teriam eles aprendido (como fez o soldado Madruga) a saborear os pequenos nadas cheios de encanto que de quando em vez irrompem surpreendentemente da vida?

Este episódio do soldado Madruga não é caso único. Manuel António Correia, autor das Memórias de um resistente às ditaduras, que já por mais de uma vez tinha escapado à morte (uma dessas vezes foi um capelão do CEP, Luís Lopes de Melo, quem o salvou, iniciando assim uma grande amizade entre ambos), conta-nos um desses episódios.

O combatente encontrava-se nos arredores de Lille. Foi-lhe pedido para que comandasse uma pequena força portuguesa até Neuve Chapelle, local que os portugueses bem conheciam, a fim de ajudar uma companhia de engenharia inglesa na remoção de obstáculos para a passagem de tanques, na ofensiva em preparação.

Às sete horas estava junto do cemitério daquela vila, onde virou à direita à procura do caminho que lhe tinham mandado percorrer.

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Em vez de um existiam dois, ambos entrando na floresta […] Sem hesitar, nem fazer perguntas tive a instintiva perceção de que devia meter pelo caminho em frente, à esquerda do outro que desprezei, e com a companhia formada a dois, segui em frente. […]

Nada de cavaleiro inglês! [que supostamente os levaria para junto das tropas aliadas] […]. O matraquear das metralhadoras na frente indicava que estávamos a dois passos da primeira linha. […] Pouco depois o silêncio era absoluto, pressagiando graves desgraças. Entretanto surge o cavaleiro inglês que, com uma carta topográfica na mão, me indicava o outro caminho, exatamente aquele que eu desprezara. Serenados os animais acompanhei o inglês. […]

Cheguei ao local do trabalho. A morte e a tristeza pairavam ali. A artilharia inimiga que fez fogo sobre a minha retaguarda desfizera a companhia inglesa. Dezenas de cadáveres alinhados de um e de outro lado da terraplanagem, e os bocados de membros espalhados por todo aquele terreno davam bem a ideia das proporções do desastre, do qual escapei porque instintivamente me enganei no caminho!267

Quando chegou ao batalhão relatou o episódio ao seu comandante que lhe disse: «”Você, alferes Correia, foi miraculado!”», ao qual respondeu: «Tanto não digo, mas que o destino me preservou e aos meus homens do morticínio que desfez a companhia inglesa, isso é que não oferece a menor dúvida»268.

Teria sido a fé de Manuel que o salvara da morte ou fora apenas a sorte do acaso? Manuel, «a tua fé te salvou»? O autor, que ao longo da sua obra usa várias vezes a expressão «Seria o que Deus quisesse!»269, não atribui um sentido

transcendente a este acontecimento, como parece evidente, «escapei porque instintivamente me enganei»270, mas também não o reduz a simples acaso ou sorte.

Paremos, pois, um pouco para meditar na frase: «seria o que Deus quisesse», que aparece com frequência nas memórias do autor. À semelhança do que ocorreu no episódio do soldado Madruga, também esta simples frase pode ter dois sentidos distintos. Por um lado, parece ser uma expressão banal e, por isso, sem grande significado. Será esse o verdadeiro sentido dessas palavras? Uma expressão superficial que mistura ateísmo e panteísmo?

Já na segunda abordagem podemos ver na referida frase uma confissão de fé (voluntária ou não) de um acérrimo republicano em cujas memórias (escritas na fase

267 CORREIA, Manuel António — Memórias de um Resistente às Ditaduras, p. 149-150. 268 CORREIA, Manuel António — Memórias de um Resistente às Ditaduras, p. 151. 269 CORREIA, Manuel António — Memórias de um Resistente às Ditaduras, p. 152. 270 CORREIA, Manuel António — Memórias de um Resistente às Ditaduras, p. 150.

124 final da vida) a vivência religiosa é inexistente. Mas significará realmente um ato de fé, uma crença real, ou será antes uma invocação meramente casual? Se a resposta a esta questão for a crença, então estaremos provavelmente perante uma fé que não precisa de conhecer todos os pontos da argumentação teológica ou religiosa para crer nos desígnios de algo maior. Uma fé que resulta de uma convicção que vai amadurecendo ao longo da vida. Terá sido esse o resultado da vivência da guerra em Manuel António Correia? Terá a guerra lançado a semente de Deus no coração deste homem, transformando-o num cristão anónimo cuja fé só se deixa revelar através de pequenas expressões?

Talvez a verdadeira resposta possa ser encontrada no facto de o autor não atribuir o desfecho a Deus mas ao acaso. Outros autores houve que atribuíram o facto de terem saído incólumes da guerra à providência divina. É o caso de Augusto Casimiro que, nas suas últimas memórias, refletindo sobre o facto de nada de mal lhe ter acontecido durante o conflito diz: «a morte […] não veio porque Deus me conhece»271.

Mas este pensamento faz-nos levantar algumas questões. Então Deus não conhecia igualmente os crentes ingleses que morreram no episódio narrado por Manuel António Correia ou o autor do diário272, que Casimiro diz pertencer a um oficial morto, do qual se

apropria e designa como o seu «catecismo»? Ou, de forma mais evidente, os dois combatentes de que nos fala Pina de Morais, o que foi ao Cristo e que talvez se tenha suicidado e o jovem rapaz que numa noite de neve se preocupou com os alemães do outro lado da terra de ninguém, e no rosto do qual o autor encontrou o verdadeiro cristianismo? Não os conheceria também Deus a eles? Que Deus é esse? O Deus do paradoxo? De facto, estas questões abrem diante de nós um horizonte de paradoxos. Uns vivem, outros morrem, em condições diferentes, a horas diferentes, onde menos se espera.

Talvez não seja possível responder à problemática que nos propusemos. Mas, mais do que a resposta, a interrogação poderá abrir um novo caminho, uma nova possibilidade. Talvez, até, indicar o que é realmente importante: a mudança de mentalidades. Crentes e não crentes passaram a olhar de forma diferente para os fenómenos religiosos, para a fé dos outros e, nos casos a que se aplica, para a sua própria fé. A guerra foi, assim, a principal impulsionadora desta renovação de

271 CASIMIRO, Augusto — Calvários da Flandres, p. 167.

272 Trata-se de um outro diário pertencente a um oficial falecido em combate, do qual Casimiro

125 mentalidades, ajudando a construir uma nova cultura de tolerância religiosa que antes não existia. Uma cultura assente na «certeza da dúvida» perante o mistério da morte273.