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2. A MÍMESE E O SAGRADO

2.5 A FRONTEIRA MÓVEL DO SAGRADO

Os caminhões de mudança na Grécia moderna levam ainda nos seus lados a palavra METAPHORA (QUIGNARD, 1999, p. 107).

À medida que a linguagem verbal se desenvolve como forma simbólica autônoma, a sobreposição entre gênero e espécie, bem como seus estreitos laços de contiguidade e mútua influência, cedem à luz difusa da lógica discursiva, embora esta ainda opere segundo princípios mágico-animistas e mítico-religiosos. Nesse processo, um personagem se insinua entre os vocábulos oriundos da iluminação divina, cuja destinação prática ofusca completamente outras potenciais qualidades. Estranhamente imune aos clarões fulminantes de entidades e deuses, esse personagem parece enxergar as refrações prismáticas que compõem o feixe divinatório e se encantar com o efeito que isso produz em sua própria visão. Ao mesmo tempo, seus ouvidos processam continuamente os sons em cuja fugidia permanência aqueles habitam, guardando suas ressonâncias mais significativas. E é nesse personagem, do qual a visão marcada pela luz refratada do divino alia-se a uma crescente impressão eufônica, que se conjugam as condições para a gradual emancipação do campo linguístico como forma simbólica, embora permanentemente marcada pela luz da qual se origina.

O poeta guarda uma nostalgia incurável das vibrações sensíveis que expeliram simultaneamente palavras e deuses: busca incansavelmente a “metáfora radical”, o momento em que das trevas fez-se luz. Enquanto a gradual ampliação do vocabulário denotativo assegura um domínio crescente sobre o mundo material e objetivo, o poeta se empenha em reproduzir os lampejos do clarão inicial através de combinações inusitadas entre as sonoridades que materializam os deuses e seus atributos práticos. Aos poucos, os sons ganham leveza: os próprios deuses, em consequência, também se elevam. Pela refração da luz

divina, novas imagens se integram ao clarão inicial; clareiras são abertas na escuridão circundante pelo reflexo na superfície espelhada da própria palavra. Mas enquanto o mago, o xamã, o curandeiro e, mais tarde, o sacerdote se apropriam da palavra em seu recurso denotativo, o poeta se torna o clarividente, aquele que avança imune ao ofuscamento da luz absoluta ou à cegueira da treva inominada. A palavra é ao mesmo tempo seu território e sua ferramenta, e é nessa dupla atribuição que desenvolve seu domínio próprio.

A luz refratada, refletida ou difundida cria novos campos de visão, ampliando o espectro de atuação do poeta e da linguagem. A princípio, apenas ele se aventura pelo desconhecido, criando atalhos que interligam clareiras sonoras abertas na escuridão e no silêncio ou zonas de sombreamento e ressonância em meio ao excesso de luz e ruído. Nesse tortuoso e acidentado percurso, encorajam-no as inspiradoras visões e os sons que em seu ouvido se acumulam, formulando, em seu pensamento, estranhas e sugestivas conjunções. Enquanto caminha, sente a vibração das emissões originais: no entanto, embora os deuses ainda lhe arrebatem, sente-se tomado pelas próprias formulações das quais aqueles decorrem, ou das quais se constituem. Em sua demiurgia solitária e vacilante, faz-se sua própria testemunha – e sua voz projeta-se no ar, canora e melíflua, encantando-o com sua potência imagética e por inusitada e consistente eufonia.

Entretanto, embora o clarão da luz divina já não o ofusque, permitindo-lhe enxergar além de suas fronteiras espectrais, sente-se intimamente ligado aos deuses: afinal, são feitos da mesma substância imaterial que as palavras, e ambos mantêm-se em recíproca contaminação. Aliás, é o único a intuir esse intercâmbio: para os demais, mito e palavra são indissociáveis. Habitante da fronteira, simultaneamente atraído e repelido pela luminosa interseção que obseda a potência intrínseca ao seu próprio domínio, consola sua incurável nostalgia das vibrações originais em conjurações inconsequentes e sortilégios sem propósito, guiados apenas por sugestivas associações entre sons e imagens. E nesse repertório de “inutilidades”, angariado apenas pelas sugestões de ressonância com as metáforas inaugurais, vê surgir um deus próprio, mais ágil e volátil que os pesados deuses denotativos. Esse deus chama-se logos, e seu domínio inaugural é a própria linguagem verbal e seus insuspeitados recursos.

Acompanhado de seu deus próprio – mas sem se desencantar pelos demais – o poeta percorre as clareiras abertas em seu deâmbulo solitário: à força de sua divindade, os atalhos se alargam e tornam-se caminhos cada vez mais promissores. Em cada uma de suas clareiras, o poeta evoca os deuses existentes, valendo-se de novas formulações sensíveis: isso amplia seu

repertório de conjurações e dá origem a novos deuses, ainda desconhecidos e inacessíveis aos demais homens. Para convencê-los a percorrer os caminhos abertos pelo seu deus, que, embora transitáveis, inspiram suspeitas por ultrapassarem os domínios iluminados e conhecidos, o poeta se vale dos recursos de sua voz, através da qual seu deus se manifesta. E é dessa forma que a fusão inicial entre palavras, deuses e atributos práticos, é gradualmente convertida pela força do logos, que refrata o clarão denotativo e o decompõe em prismas que iluminam outras zonas de construção do saber. Acessadas por procedimentos metafóricos, que, mediante sua fluidez crescente, alargam mais e mais seus próprios caminhos, estas zonas serão tomadas de assalto pela lógica discursiva analítico-sintética e pelo pensamento abstrato, proporcionando, posteriormente, o advento de dogmatismos religiosos e do método científico. Mas o poeta permanecerá fiel as suas origens: mesmo quando todos se converterem a seu deus íntimo e tentarem dele se assenhorear, impondo-lhe regras e limites que correspondam a interesses de posse e domínio, seu logos preservará as raízes comuns das quais floresceram as primeiras divindades e palavras. E se o relâmpago é o indício da divindade que ilumina, o trovão é a ressonância do pensamento que formula: o poeta, assim como seu congênere, o profeta, advinha, diviniza:

Mesmo que desta maneira a linguagem e a arte se desprendam do solo nativo comum do pensar mítico, ainda assim a unidade ideacional e espiritual de ambos torna a instaurar-se em um nível mais alto. Se a linguagem deve realmente converter-se em um veículo do pensamento, moldar-se em uma expressão de conceitos e juízos, esta moldagem só pode realizar-se na medida em que renuncia cada vez mais à plenitude da intuição. Por fim, daquele conteúdo concreto de percepções e sentimentos que originariamente lhe era próprio, de seu corpo vivo, parece restar-lhe nada mais que um esqueleto. Há, porém, um reino do espírito no qual a palavra não só conserva seu poder figurador original, como, dentro deste, o renova constantemente; nele, experimenta uma espécie de palingenesia20

permanente, de renascimento a um tempo sensorial e espiritual. Esta regeneração efetua-se quando ela se transforma em expressão artística. Aqui torna a partilhar da plenitude da vida, porém, se trata não mais da vida miticamente presa e sim esteticamente liberada (CASIRRER, 1985, p. 115).

Cortázar (2006) acusa no poeta uma ambição superior a do mago: seu caminho, embora abra picadas para a lógica discursiva e seus acólitos, distancia-se continuamente das clareiras que inaugura, forçando as fronteiras de um domínio do qual, entretanto, nunca de fato se apossa. Sua palavra, embora encantada, jamais cede ao peso denotativo das divindades, mas com elas sustenta uma vinculação essencial, originada num poder de

incessante criação. Em que consistiriam a veleidade e prepotência de um personagem cujo nomadismo e desapego parecem igualá-lo aos produtos imateriais de seu ofício?

Segundo Cortázar, sua maior pretensão é justamente essa semelhança:

Magia, já o dissemos, é concepção fundamentalmente assentada na analogia, e suas manifestações técnicas apontam para um domínio, para uma posse da realidade. Da mesma forma nosso poeta, mago ontológico, lança sua poesia (ação sagrada, evocação ritual) em direção às essências que lhe são especificamente alheias, para se apropriar delas. Poesia é vontade de posse, é posse. O poeta agrega ao seu ser as essências do que canta: canta por isso e para isso. À vontade de poderio fatual do mago, sucede a vontade de posse ontológica. Ser, e ser mais que um homem (CORTÁZAR, 2006, p. 100-101).

Posse da realidade, posse ontológica: num movimento análogo ao do mago, é indo ao encontro do alheio que o poeta se apossa do seu próprio. É na possessão pelo outro, na entrega voluntária à máxima alteridade (entidades, espíritos, musas, divindades) que o poeta se assenhoreia de si mesmo e realiza seu “retorno ao pátrio” (HÖLDERLIN, 1994). No entanto, se o percurso mágico se pauta na posse interventiva da realidade, a trajetória poética ambiciona a emancipação das contingências dessa mesma realidade, ou a criação de uma realidade própria, um território suspenso, equidistante do bestial e do divino, legítima morada do humano. Se a questão das origens permanece em aberto e não se pode assegurar se o deus criou o homem ou vice-versa, ao poeta cabe uma certeza: o humano é criação do próprio humano. A tautologia expressa em tal sentença regride frente ao alargamento progressivo do campo de possibilidades humanas, numa dissolução de fronteiras que se efetua por um espelhamento recíproco entre os homens, e entre estes e seus artefatos. A esse propósito, comenta Jean-Pierre Vernant:

Marx escreve: (...) ‘O olho torna-se humano tal como seu objeto se torna um objeto social, humano, vindo do homem e terminando no homem. (...) É apenas graças ao florescimento da riqueza do ser humano (...) que se forma e se desenvolve a riqueza da sensibilidade subjetiva do homem: um ouvido musical, olhos para a beleza das formas, em suma, sentidos capazes de prazer humano. (...) Pois não só os cinco sentidos, mas também os sentidos ditos espirituais, os sentidos práticos (a vontade, o amor etc.), numa palavra, o sentido humano dos sentidos, a humanidade dos sentidos, formam-se apenas graças à existência de seu objeto (...), graças à natureza humana’. A natureza tornada humana é esse mundo de obras, particularmente obras de arte que constituem, em cada momento da história, o quadro no qual se desdobram os diversos tipos de atividades humanas (VERNANT, 2008, p. 213).

Cassirer (1985) afirma que a poesia recobra, paradoxalmente, a potência denotativa da palavra mítica original após os percalços que a reduziram a dogmatismos, signos abstratos e derivações conceituais. Livre dos deuses e demônios míticos e das armadilhas retóricas da senda discursiva, a palavra poética trafega entre eles com leveza e liberdade, servindo-se de sua condição metafórica – ou radicalmente mimética – como salvo conduto. Constrói, assim, seu domínio próprio no decalque volátil de uma fronteira móvel, cujo limite é o infinito:

Os maiores poetas verdadeiramente líricos, por exemplo Hölderlin ou Keats, são homens nos quais a visão mítica se desdobra novamente em toda a sua intensidade e em todo o seu poder objetivante. Esta objetividade desembaraçou-se, porém, de toda coação objetual. (...) O mundo da poesia separa-se de ambos os domínios, como um mundo da ilusão e jogo, mas precisamente nesta ilusão é que o universo do puro sentimento atinge a expressão e, assim, a sua plena e concreta atualidade. A palavra e a imagem míticas, que a princípio se erguiam diante do espírito como duro poder real, despojam-se agora de toda realidade e eficácia; são apenas ligeiro éter, em que o espírito se move livremente e sem obstáculos. Esta liberação não se produz porque a mente abandona a casca sensorial da palavra e da imagem, mas porque as utiliza como órgãos e, com isso, aprende a entendê-las como elas são em seu fundamento mais íntimo, como formas de sua própria autorrevelação (CASIRRER, 1985, p. 115- 116).

Da linguagem falada à escrita, o processo mimético passa por traduções que parecem afastar-se dos estímulos originais, já que, a princípio, o signo gráfico resulta de uma convenção arbitrária, consensuada para afixar e socializar registros de forma mais duradoura e precisa. Entretanto, segundo Benjamin (2010), as dimensões oral e escrita da linguagem verbal, desenvolvidas em diferentes âmbitos da sensibilidade humana, a auditiva e a visual, viram-se reunidas em determinado momento histórico e convergiram suas potencialidades miméticas específicas num campo de codificação e decodificação comuns. A arbitrariedade desse procedimento seria relativa: tanto as palavras oriundas dos sons onomatopéicos quanto o grafismo estilizado resultante (mesmo enquanto gesto ou intenção) de registros figurativos ancestrais (como as pinturas rupestres), guardariam similaridades entre seus procedimentos miméticos. Ou seja, mesmo lidando com recursos e suportes distintos, suas operações miméticas teriam a mesma origem e princípio dinâmico: a vocação inata de seus produtos reduziria a arbitrariedade de sua conjunção:

A moderna grafologia ensinou-nos a identificar na escrita manual imagens, ou antes, quebra-cabeças, que o inconsciente de seu autor nela deposita. É de supor que a faculdade mimética, assim manifestada na atividade de quem escreve, foi

escrita se originou. A escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extrassensíveis (BENJAMIN, 2010, p. 111).

A reunião dessas duas vias miméticas, com procedimentos e objetos semelhantes – mas recursos e destinações sensíveis distintas – deu início ao que se denomina oficialmente de período histórico, como se o próprio homem tomasse para si a função antes exclusiva aos deuses e heróis: os destinos humanos estavam agora tão escritos nas estrelas quanto nas superfícies sobre as quais os rudimentos de um registro, ainda restrito a poucos, desenhava signos de estranha e sugestiva potência. Benjamin relaciona esse processo aos primórdios da semiótica, como um saber que trafega entre diferentes dimensões miméticas e procura reconstruir os vestígios originais de seu enlace.

Oficiar essa dupla mímese exige, por outro lado, uma dupla leitura, na qual convivem as dimensões visuais e auditivas, mediadas pelas esferas do sensível e do extrassensível. O mago, o sacerdote, o profeta e o poeta, enquanto oficiantes da mímese, encarnaram metáforas sucessivas de uma função que derivou em diferentes ocupações e percursos, resultantes de significados distintos atribuídos a uma atividade comum. Não obstante ler os signos em sua conformação material, é preciso interpretá-los, atribuir-lhes sentido, enxergar o invisível, sempre consoante ao registro sagrado de suas ressonâncias originais. A estimulação sensorial, emocional e cognitiva provocada por ancestrais experiências de arrebatamento provocaram os primeiros procedimentos miméticos e deflagraram mímeses sucessivas, que resultaram, no decorrer da história, na reunião de algumas de suas modalidades em determinados campos da experiência humana. O consórcio entre som e imagem, através da faculdade da escrita e da leitura, talvez seja aquela que preserve a maior potência metafórica: basta pensar nas múltiplas acepções que seus termos elementares (leitura e escrita) acatam e inspiram.

Entretanto, como já mencionado, a potencial polissemia dessa convergência mimética – bem como a preservação do sagrado inerente à sua origem – ressoou de maneira distinta em seus oficiantes, discriminados pelas diferentes esferas de atuação e pelos objetivos, conscientes ou implícitos, de sua prática e conhecimento. Aqueles que enfatizaram o aspecto prático e operativo, atribuindo aos seus procedimentos uma qualidade utilitária e interventiva, seguiram a trilha do mago, do curandeiro e do sacerdote, cujo expoente máximo foi a figura do rei. Esses personagens tornaram-se legisladores da mímese e do logos, construindo sistemas operativos e explicativos supostamente autossuficientes que, metaforizando o próprio caminho percorrido, aspiram à verdade e ao domínio do “real”. Cientistas e sacerdotes

religiosos comporiam esta categoria de oficiantes miméticos, produtores de práticas e saberes que, embora difiram nos métodos e alegorias, afinam-se na vocação litúrgica e teleológica. Já aqueles que se encantaram com o próprio procedimento, os que fizeram da metáfora sua pátria por intuírem que, havendo impermanência e transitoriedade em todas as coisas, seria mais íntegro residir no próprio movimento, tornaram-se profetas e poetas, a depender de particularidades relacionadas ao grau de arrebatamento e ao campo de significação dessa experiência.

Voltando a Hölderlin, coube ao poeta, como residente da fronteira solúvel entre as dimensões miméticas, efetuar a mais potente síntese entre elas. No caso específico, da linguagem oral e escrita, do som e da imagem, ambas carregadas de sentidos cuja opulência foi dosada por novos procedimentos de tradução e metáfora, orientados pela conjugação simultânea das esferas sensível e extrassensível. Legítimo oficiante do campo mimético, o poeta efetua a tradução das ressonâncias originárias por meio de conhecimento técnico e de intuição mágica: a essa metalurgia do invisível, tão fronteiriça quanto aquele que a manipula, deu-se o nome de poética. Mas o poeta confecciona suas peças sem as esgotar ou arrematar: ao depurar e manusear os elementos do seu ofício, amplia simultaneamente a si e aos seus objetos, numa fusão que deriva de sua consciente fragilidade enquanto indivíduo, metáfora transitória de um todo que o engloba – e ele se dilui no seu objeto, restituindo, ao universo, a integridade que lhe é latente. A missão do poeta seria preservar a dimensão metafórica em seus produtos miméticos, restituindo, ao leitor, espectador ou receptor, a infinitude concêntrica de uma experiência individual, indissociavelmente ligada ao todo do qual se origina e ao qual retorna.

Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existiram elos mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas produzindo um arquivo completo de semelhanças extrassensíveis. Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um medium em que as faculdades primitivas da percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no

medium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras, a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no decorrer da história (BENJAMIN, 2010, p. 112).

Trazendo essa “experiência de fundo da existência” para o contexto contemporâneo, no qual as condições de solubilidade do indivíduo diante do fenômeno estético ou religioso encontram-se mediadas por um opressivo aparato ideológico e tecnológico, e onde a temporalidade percussiva foi assoreada pelos ritmos profanos da engrenagem pós-industrial, suas oportunidades de ocorrência parecem cada vez mais escassas. A ausência de tempo para a experiência mítica ou o tempo sagrado de suas mímese, pautadas por ressonâncias sucessivas em que cada som resulta e resguarda o som anterior, de forma harmônica ou dissonante (como no caso da tragédia), resulta na fragmentação eleática de tempos simultâneos – mas não ressoantes – pautados apenas pelo imperativo autofágico do consumo como afirmação da individualidade.

Nosso tempo parece adquirir um apetite onívoro e inconsequente e, como a serpente do Uróboro21, devora-se a si próprio. Mas enquanto o Uróboro – cuja simbologia ilustra a vivência temporal cíclica em diversas culturas há mais de três mil anos – é impregnado por poderosas forças de renovação e fertilidade e representa a fluência circular do eterno, a serpente pós-moderna, descendente bastarda do despejo edênico, substituiu os “frutos do conhecimento” pelo arbusto rasteiro e estéril da informação, sendo esta, em geral, apenas veículo e resíduo de um consumo compulsivo e sem nutrientes. Exilada de sua simbologia ritual, nossa serpente mutila-se a esmo, devorando-se em segmentos aleatórios dos quais resultam fragmentos soltos e incongruentes. Nesse despedaçamento autoimposto, a vivência do tempo é interrupta, desconectada: a mobilidade sinuosa e corrente do que gradualmente se consome para voltar a nascer, cumprindo a etapas cíclicas de sua existência, é substituída por um presente eterno e estanque – como se as águas do rio da existência, em sua imutável mobilidade, fossem represadas em inúmeras poças dispostas a esmo num terreno infértil.

Os sonhos, os mitos, os rituais, a poesia, o drama, as narrativas e artes em geral exercem um papel fundamental nesse panorama de descontinuidade, incongruência e esterilidade ao enxertarem insumos imaginários e simbólicos no “deserto do real”, tornando fértil a terra árida pela infiltração gradual que permite reconectar os segmentos dispersos e restituir-lhes alguma fluência, mesmo que subterrânea. A mímese, como tendência e recurso