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3. O ÉTICO, O ESTÉTICO E O EFÊMERO

3.7 DO TEATRO AO CINEMA: A SECULARIZAÇÃO DO SAGRADO

Pode acontecer que duvidemos da audiência escura. Pode acontecer que as quimeras de um mundo amniótico, aquático, abafado, afastado, nos pareçam dados litigiosos. Pode também acontecer que tenhamos a impressão viva de nós na lembrança. Mas a recordação é uma narração, como a que conta o sonho: essa narração ou narrativa traz tanto consigo que temos razão em desconfiar de nós mesmos. Somos apenas um conflito de narrativas endossado por um nome (QUIGNARD, 1999, p. 85).

Até meados do século XIX, quando a imprensa e a escola burguesa popularizaram a leitura, o teatro constituía um poderoso instrumento de ritualização social. De sua criação até a década de 70 do século XX, quando a TV privatizou a dimensão coletiva da fruição audiovisual, o cinema, enquanto espaço físico, desempenhou esse mesmo papel. Hoje, funcionando quase exclusivamente em shopping centers, os cinemas foram fagocitados pelos hábitos de consumo e tornaram-se mais uma peça na engrenagem que ordena os fluxos de compra e venda – nos quais cumpre papel catalisador graças ao seu poder de persuasão e pelo reforço da “ilusão de realidade” que caracteriza os “templos comerciais” onde se localizam.

O teatro e o cinema são artes cujo nome indica simultaneamente uma linguagem e um espaço físico, como se, para além da especificidade intrínseca a seus meios, objetos e modos, uma quarta dimensão se impusesse: mesmo quando minimizadas ou abolidas as condições físicas que caracterizam sua acepção espacial, certa lógica subsiste à recepção, imposta por sua origem e natureza predominantemente contemplativa. Simultaneamente artes e lugares, o teatro e o cinema constituem, dessa forma, o espaço privilegiado para investigar as transformações inerentes à relação entre o sagrado, o ético e o estético.

A grande invenção no teatro é justamente a delimitação explícita entre oficiantes e assistência. Se nos rituais já havia uma parte encenada, denominada dromena, onde a “paixão” dos deuses e semideuses era “vivida” pelos oficiantes, estes estavam menos distintamente posicionados em relação aos demais participantes, tanto estética quanto

coletiva de celebrantes, observam-se algumas poderosas transformações na esfera das dimensões investigadas.

Se a contemplação sempre foi um componente essencial da religião grega, a clivagem entre o sagrado e o estético resulta na ampliação do ético como espaço de construção do humano: ao invés de evocar os deuses pelo sacrifício ou dar-se a ver nas disputas esportivas, a celebração, espaço privilegiado para a fusão entre ambas as dimensões, cujo ápice se dava na encenação do mito seguido do sacrifício ritual, agora conta com um espaço físico destinado à contemplação do homem pelo homem – ainda que na relação com o divino e que este se faça presente naquele, por meio de palavras e personagens. Mas a presença do divino não ultrapassa a medida humana senão pela própria medida humana: o sagrado é agora balizado pelo ético e pelo estético. Ou seja, é o próprio divino que se redimensiona a partir da medida do homem.

Se da dimensão sobre-humana das pinturas rupestres, nas paredes das cavernas onde o homem primitivo realizava seus rituais mágicos, resultam os deuses míticos que mantêm sua proporção gigantesca nos sistemas religiosos e reduzem parcialmente sua escala nos heróis das narrativas épicas, é no drama trágico, nessa imagem de um homem “projetada” na parede externa da caverna, que se manifesta a irremediável cisão entre homens e deuses. Nessa nova parede externa, as imagens não se fixam, como no movimento simulado da pintura mágica ou nos caracteres denotativos da palavra mítica. Movem-se, e seus sons, imagens e palavras, embora transportem a assistência para outro tempo e espaço, mantêm-na consciente de seu artifício, da duplicação operada sob seus olhos e ouvidos. Como numa conversa entre humanos – mas dirigida aos deuses –, o drama trágico revela a solidão e o desamparo do homem diante de si próprio: ao homem cabe, a partir da constatação de sua solidão essencial, construir-se no espaço vago entre a bestialidade e o divino, como um ser indefinido e transitório, que vaga incessantemente em busca de si próprio. Como uma metáfora, em suma.

O cinema virá atribuir, à dimensão da imagem humana destacada da massa coletiva e individuada na figura do ator – esse simultâneo “ninguém” e “alguém” situado na fronteira entre a natureza indistinta do dionisíaco aórgico e o delineio civilizado da máscara apolínea, expressa pelo drama e pelo personagem – a proporção sobre-humana das pinturas rupestres, dos panteões mitológicos e das narrativas épicas. Se no drama trágico (e no teatro em geral) a medida humana é uma delimitação natural de sua própria constituição física, no cinema a extrapolação dessa medida constitui uma prerrogativa imposta por seu aparato tecnológico. O cinema não apenas mantém o homem no centro, mas maximiza o entorno humano desse

homem centralizado (pelas exigências de seu dispositivo técnico) e amplia sua escala ao nível imaginário de remotos heróis e divindades. O que parece se operar nesse retorno à caverna dos primeiros humanos, em sua relação com a máxima alteridade, é a substituição de forças invisíveis e entidades ou divindades tecno, zoo, e antropomórficas – bem como dos semideuses e heróis épicos, sempre algumas polegadas acima do humano – pelo próprio homem, alçado ao posto do que, simultaneamente, reflete e refrata, define e extrapola a si mesmo. Nesse entronamento do semelhante como alteridade, a ilusão mimética proporcionada pelo dispositivo cinematográfico desempenha uma função enzimática e conjuntiva.

A íntima relação entre ritual e teatro, proposta por Victor Turner (1982), pode aplicar- se também ao cinema, observadas algumas diferenças nos recursos e linguagens de cada meio. Classificando o ritual religioso e as manifestações artísticas como “experiências liminares”, onde a expressão da subjetividade é convertida através do arrebatamento ou do êxtase poético – em contraste com a racionalidade dos problemas imediatos da vida –, a recepção cinematográfica ofereceria o que Turner chama de uma “experiência liminóide”, resultante da fusão entre a liminaridade e o lazer. O espaço “livre e experimental da cultura (...) onde não apenas novos elementos, mas também novas regras de combinação podem ser introduzidas” é atravessado pelo tempo regrado das sociedades industriais, que inviabiliza experiências prolongadas de retirada ou suspensão da rotina. Dessa forma, a experiência liminóide se caracteriza por ser mais diversificada e crítica da própria cultura, além de mais subjetiva e divertida “que as celebrações comunais e rituais prescritas nas sociedades pré-industriais” (SILVERSTONE apud WHITE, 1995, p. 71).

A “recepção pela distração”, preconizada por Benjamin (2010) em suas reflexões sobre a arte cinematográfica, encontra seu correlato ritual na experiência liminóide das sociedades industriais. A tarefa de atribuir sentidos à experiência humana, outrora exclusiva aos rituais mítico-religiosos, à enlevação proporcionada pela aura singular das obras de arte e a instituições formativas como a escola e a família, é gradualmente assumida pelos meios de comunicação em massa, como o jornal, o cinema, o rádio e, posteriormente, a TV. Dentre estes, o cinema ocupa um lugar destacado na ocorrência de experiências liminóides, tanto por ser uma síntese de diferentes linguagens, quanto pelo espaço imersivo que o caracteriza. Expressão máxima da linguagem audiovisual, o cinema desbanca o lugar privilegiado da palavra na construção e atribuição de sentidos ao resgatar a força da imagem e do som, como num retorno ao manancial do qual a própria palavra se origina.

A ilusão mimética ou “de realidade” é, portanto, a síntese e o ponto de culminância, em termos históricos, da trajetória da mímese aqui proposta. Proporcionando concomitante semelhança e alteridade entre o homem e sua imagem projetada – antes nas forças do invisível, agora na visibilidade extrema –, a tela torna-se o espelho fusional no qual o embrião humano pode especular a si próprio, como num sonho.

A analogia entre o dispositivo cinematográfico e o contexto do sonho, comum a inúmeros estudos teóricos e ao próprio senso comum, serve de ponte entre a dimensão mítica exercida nos rituais primevos e a que se expressa na imersão hipnótica da sala escura. Em sua origem, o cinema caracterizava-se justamente por atender a demandas psíquicas cuja correspondência só pode ser encontrada no universo onírico, ou do delírio. Segundo Arlindo Machado (2007), “Certamente, o que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de reconhecimento, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário” (p. 19). Dos mais remotos ancestrais do dispositivo cinematográfico aos primeiros anos do aparato desenvolvido pelos Lumière, o prazer proporcionado pela projeção de imagens irreais e fantasmagóricas, mesmo retratando aspectos da realidade cotidiana, parece diretamente relacionado a fantasias arcaicas de ordem instintiva e inconsciente, associadas à saciação parcial da pulsão escópica.

Em Freud (1996), o conceito de “pulsão” demarca a transição epistemológica do corpo biológico, seara dos instintos, para o corpo erógeno, onde as pulsões constituem e resultam das fases do desenvolvimento sexual e da construção subjetiva do indivíduo, mediada por tensões internas, relações afetivas e estímulos ou recursos do ambiente. Classificadas a princípio em autopreservativas e sexuais e posteriormente em pulsão de vida e de morte, distinguem-se dos instintos por incluir a dimensão do prazer; a libido é a manifestação de sua energia e o desejo, sua expressão estruturante. Ao longo de sua obra, Freud constrói uma distinção entre “ver”, como derivado da função do aparato sensorial, e “olhar”, no que se insinuaria o prazer subjacente a esta atividade, a partir da eleição de um objeto primário, o órgão genital. No decorrer das fases de desenvolvimento, o binômio olhar/ser olhado é investido das interdições culturais que o transformam e deslocam esse primeiro objeto:

Ao contrário do instinto, a pulsão pode se satisfazer fora de seu objeto (é a sublimação) ou até mesmo prescindir dele (é que se chama de recalque). (...) A pulsão escópica supõe uma distância entre o sujeito e o objeto do olhar, ela está na base do voyeurismo. Esse desejo está no centro do dispositivo cinematográfico. Ele

repousa na ausência do objeto percebido, daí o caráter “imaginário” de seu significante (que não passa de uma miragem perceptiva) (AUMONT & MARIE, 2003, p. 247-248).

Aqui cabe assinalar uma distinção operacional entre o inconsciente junguiano e o freudiano: a moeda do inconsciente coletivo é o arquétipo; a do inconsciente individual é o complexo. Enquanto o inconsciente coletivo (Jung) resulta na formulação do mito, através de uma construção narrativa que modela, metaforiza e “civiliza” a potência instintiva do arquétipo, o inconsciente individual (Freud) resulta na apropriação do mito (e de suas camadas constitutivas sucessivas, ou seja, o instinto e o arquétipo) enquanto denotação narrativa, ou seja, calcada numa ordenação significante de desejos e interdições. Aliás, é em torno de um dos mitos mais recorrentes nos dramas trágicos que sobreviveram até a atualidade, o mito de Édipo, que a psicanálise desenvolve seu principal axioma, proporcionando ao sujeito psicanalítico, a partir de um esquema mítico de papéis e funções definidos, a elaboração de seu próprio drama familiar. Em ambos os casos, no entanto, nota-se a poderosa incidência de experiências ancestrais e da elaboração narrativa como veículo e atenuante da potência do arquétipo, ou do mito.

Dessa forma, é possível arriscar um paralelo entre o cinema e a estruturação arquetípica do psiquismo em sonhos ou narrativas: em sua etapa inicial, tanto a mente quanto o cinema se configuram de forma mais bruta, na emissão arquetípica e imagética do sonho. A etapa seguinte é o desenvolvimento de narrativas que componham um universo significativo a partir da potência extrema e indomável do arquétipo e, por conseguinte, das energias instintivas. O mito é a configuração narrativa, contextual e consciente dos elementos arquetípicos. Da mesma forma, o cinema narrativo constitui a formulação civilizada de sua inicial selvageria imagética, domada pela incorporação da estrutura romanesca, herdada do século XIX, que por sua vez tem como ancestral mais remoto os poemas épicos que deram aos mitos primevos sua primeira formatação estética.

Produto oficioso de uma civilização fértil de legislações sobre o inconsciente, o cinema aprendeu a domar as pulsões com uma espécie de moldura cultural por meio da qual ele sublima, corrige, “civiliza” as narrativas caóticas forjadas no inconsciente. No seu trabalho duplo de ativamento e dissimulação do desejo, ele vai buscar modelos construtivos em formas simbólicas reputadas pela sociedade como superiores e civilizadas, como é o caso do romance e do drama oitocentistas. (...) Máquina de moldar o imaginário, o cinema funciona executando, por conta do espectador, parte do seu trabalho psíquico. Essa talvez seja uma das motivações

percepções socialmente disciplinadas, que se fazem passar por representações de um mundo interior (MACHADO, 2007, p. 55).

As narrativas parecem cumprir ambas as qualidades da atividade mimética: ao tempo em que sua elaboração ou recepção exige uma atividade especulativa e reflexiva, nos oferecem o espelho em que podemos contemplar uma face possível – a face humana, com tudo que pode comportar de reconhecível e espantoso. A construção do humano pelo próprio humano, alargando as fronteiras de sua expressão para além dos imperativos da sobrevivência, tem nas narrativas seu mais eficiente instrumento, tanto pelo registro da ancestralidade remota quanto pelo delineio contínuo do que não tem arremate ou conclusão. Enquanto houver um homem sobre a terra ele necessitará atribuir algum sentido para sua existência, e as narrativas fornecem o mais potente arsenal para essa tarefa.

No artigo A Poética e Nós, Umberto Eco (2011) ressalta a importância da obra de Aristóteles no pensamento moderno sobre narrativa. Segundo ele, embora o drama trágico seja o objeto explícito de sua análise, as reflexões do estagirita alcançam uma amplitude bem maior, sobrevivendo aos séculos justamente por essa qualidade:

Estou de acordo com Ricouer quando diz que, na Poética, a narração fundada no enredo, esta capacidade de compor um conto e ton pragmaton sustasis, torna-se como que o gênero comum, do qual a epopéia se reduz a espécie. O gênero de que fala a poética é a representação de uma ação (pragma) através de um mythos (quer o chamemos de plot ou de enredo), do qual a diegese épica e a mimese dramática são apenas espécies (ECO, 2011, p. 236).

Eco parte da prerrogativa de que “contar e ouvir histórias é uma função biológica”, razão pela qual a narratividade, campo de conhecimento proposto pelos formalistas russos no início do século XX, se converte em assunto de interesse crescente em nosso tempo:

Não é fácil subtrair-se ao fascínio dos enredos em seu estado puro. (...) Mesmo a recusa, por parte do Nouveau Roman, de levar-nos a experimentar piedade ou terror, faz-se excitante sobre o pano de fundo de nossa profunda persuasão de que um conto deve produzir tais paixões. A biologia se vinga. Quando a literatura se recusou a nos dar enredos, fomos buscá-los nos filmes ou nas reportagens jornalísticas (ECO, 2011, p. 238).

Segundo ele, é a ideia de conflito – subjacente a todo enredo – que nos toca a nível orgânico, como uma necessidade originada da própria dinâmica celular. Recorrendo às

definições de arquétipo – nódulo seminal de todo mythos – cunhadas por Jung e Campbell, que remontam sua origem à convivência pouca pacífica entre nossos órgãos internos ou entre os instintos e a consciência ou as imposições da cultura, é possível estabelecer uma correlação que aproxima ainda mais a ocorrência involuntária dos sonhos e uma deliberada busca por narrativas.

Dessa forma, ao concentrar-se sobre o enredo (ou mythos) na construção da narrativa, exemplificada pela excelência do drama trágico e da épica homérica, Aristóteles estabelece os alicerces de toda narratividade, em cuja fundação encontram-se os procedimentos miméticos que proporcionaram desde a “imitação” e reverência às forças do invisível até sua estilização gradual em registros que, partindo da pintura rupestre e aportando na arbitrariedade aparente dos signos linguísticos, encontra sua potência mais expressiva nas obras de caráter narrativo.

Para além da acepção convencional de enredo e conflito, Eco (2011) recorre a estudos de Greimas e Lakoff para afirmar que “todo discurso tem uma estrutura profunda que é narrativa e que pode ser desenvolvida em termos narrativos” (p. 239), seja um texto científico acadêmico ou a proposição de uma semântica desenvolvida na forma de uma sequência de ações, em lugar da semântica atomista e imobilista. Mesmo os elementos químicos, nomeados e alocados de forma aparentemente pacífica na tabela periódica, guardariam algo das comoventes paixões que animaram seus predecessores mitológicos, a saber, os deuses e heróis que povoaram as mentes e corações de nossos antepassados. Voltando à expressão dessa incoercível vocação de nossas glândulas no tempo atual, Eco afirma:

A Poética é certamente a teoria, entre outras coisas, do western à maneira de John Ford – e não por que Aristóteles fosse um profeta, mas porque quem quer que deseje encenar uma ação através de um enredo (o que o western faz sem outros resíduos) não pode agir diversamente daquilo que Aristóteles entreviu. Se contar histórias é uma função biológica, sobre esta biologia da narratividade Aristóteles já compreendera o que se passava (ECO, 2011, p. 241).

Da magia simpática às narrativas, a mímese parece proporcionar ao homem um espelho no qual se reconheça, seja pela própria imagem refletida ou pelo recorte expressivo da realidade, material ou imaginária, que o cerca e constitui. A possível similaridade do dispositivo tecnológico cinematográfico com os mais antigos espaços de imersão ritualizada e a estrutura narrativa da qual sua linguagem resulta reúnem os dois extremos de uma mesma

experiência, conjugando, simultaneamente, sua ancestralidade mais remota e seu derivado mais atual.

Anestesiamento do espírito vigilante, suspensão de todo interesse pelo ambiente circundante, projeção da personalidade num sujeito emprestado, adesão à impressão de realidade, desligamento, passividade, desejo de sonhar: eis algumas das disposições regressivas do espectador acorrentado à sua poltrona na gruta escura, simulação do ventre materno (MACHADO, 2007, p. 55-56).