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3. O ÉTICO, O ESTÉTICO E O EFÊMERO

3.5 O DESENVOLVIMENTO DA POLIS E MÍMESE LÍRICA

Do mito à historiografia – e por meio das trilhas abertas pela poesia e pela filosofia –, a difusão da escrita proporcionou a criação de um campo fértil para o fortalecimento do logos na elaboração de novos valores, resultantes do embate entre a tradição e as exigências provocadas pelas transformações sociopolíticas que configuraram as cidades-estados, estágio máximo da organização coletiva centrada no Homem:

(...) no melhor período da Grécia era tão inconcebível um espírito alheio ao Estado como um Estado alheio ao espírito. As maiores obras do helenismo são monumentos de uma concepção do Estado de grandiosidade sem par, cuja cadeia se desenrola numa série ininterrupta, desde a idade heróica de Homero até o Estado autoritário de

Platão, dominado pelos filósofos, e no qual o indivíduo e a comunidade social travam a sua última batalha no terreno da filosofia. Todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o fato fundamental de toda a educação grega, a saber: que a humanidade, o “ser do Homem” se encontrava essencialmente ligado às características do Homem como ser político. (...) A trindade grega do poeta, do Homem de Estado e do sábio encarna a mais alta direção da nação (JAEGER, 1995, p. 16-17).

A formação das cidades-estado gregas, ou polis, resultante de distintos processos de organização sociopolítica, econômica e geográfica, teve como elemento comum a língua, a poesia e a tradição mítico-religiosa difundida pelos aedos, o que não abolia conflitos e disputas internas. Atenas e Esparta foram as mais importantes e poderosas, e competiam entre si pelo domínio de toda a Hélade. Enquanto Esparta, de origem dória, desenvolveu principalmente sua potência militar como prerrogativa para o fortalecimento do estado, Atenas tornou-se o centro jônio da atividade intelectual, cultural e artística. Destacando a importância da polis no processo formativo do homem grego, Jaeger afirma:

Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura. No período primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade. (...) Em relação a ela que temos de situar todas as obras da “literatura”, até o fim do período ático (JAEGER, 1995, p. 107).

Fundada em homenagem à deusa da sabedoria, Atenas foi inicialmente um estado monárquico regulado por uma classe aristocrática. As leis eram de conhecimento exclusivo dos governantes, o que gerava revolta na população. Por esse motivo, em 620 a.C. as leis foram escritas por Drácon (um aristocrata), mas a rigidez de sua legislação, na qual a pena de morte era imputada a todos os crimes, fez com que Sólon (outro “bem nascido”) as suavizasse anistiando dívidas, repartindo terras e incentivando a educação para todos os cidadãos. Considerado uma das pedras basilares da cultura ática, Sólon representa a passagem do homem heróico da era antiga, encarnação da nobre virtude guerreira (areté), para o homem político da era clássica (JAEGER, 1995).

Sólon aparece-nos, em primeiro lugar, como poeta. A sua poesia revela os motivos dos seus atos políticos, que pela sublimidade da sua consciência ética elevam-se muito acima do nível partidário. (...) Tem para nós o valor excepcional de mostrar, por trás da universalidade impessoal da lei, a imagem espiritual do legislador, em

É nesse contexto de aprimoramento das noções de estado, de indivíduo, de cidadão e da própria noção de Homem que se configuram novas expressões da mímese poética. Se a poesia épica e a prosa histórica serviam ao estado e aos anseios da coletividade, instituindo regras de convivência e embrionando a noção de direito, a poesia lírica emerge como campo de enunciação das questões do sujeito individual, embora, entre os gregos, a individualidade constitua parte do coletivo, seja social ou natural. Poetas como Píndaro, Arquíloco e Safo proporcionaram ao homem grego cantar não apenas as glórias e virtudes de heróis e deuses, mas sua própria intimidade pessoal, além de sinalizar a decadência da épica homérica e da poesia aristocrática como referências de formação política e espiritual (JAEGER, 1995). Sobre a especificidade do poeta lírico em contraponto ao épico, Nietzsche afirma:

O gênio lírico sente brotar, da mística autoalienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico. Enquanto este último vive no meio dessas imagens, e somente nelas, com jubilosa satisfação e não se cansa de contemplá-las amorosamente em seus menores traços, enquanto até mesmo a imagem de Aquiles enraivecido é para ele apenas uma imagem cuja raivosa expressão desfruta com aquele seu prazer onírico na aparência – de tal modo que, graças a esse espelho da aparência, fica protegido da unificação e da fusão com suas figuras – as imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio (NIETZSCHE, 2008, p 42).

Antes da radicação plena da democracia ateniense, a tirania, forma de governo “intermediária entre a entre a realeza patriarcal dos tempos primitivos e a demagogia do período democrático”, cumpre um papel essencial para a estruturação de “estados incapazes de estabelecer por si próprios uma ordem eficaz ou legal, de acordo com a vontade da comunidade ou de uma grande maioria”, e que “só podiam ser governadas por uma minoria armada”. (JAEGER, 1995, p. 275) É no período da tirania que a relação constitutiva entre ética e estética, poesia e política – incluídos os valores da areté guerreira, da prosa historiográfica, das leis escritas e do lirismo individual – encontra condições favoráveis para o apogeu da era clássica. Destituídos da nobreza eletiva de seus antecessores, os tiranos proporcionaram a efetiva organização e estatização das práticas religiosas, culturais e artísticas como política compensatória à centralização arbitrária do poder. “A tirania é da maior importância, não só como força espiritual do tempo, mas ainda como força impulsionadora do profundo processo educativo que se inicia com a derrocada do domínio

dos nobres e com o aparecimento, no séc. VI, do poder político da burguesia” (JAEGER, 1995, p. 272).

Obviamente, o fomento e controle dessas atividades tinham como pano de fundo a manutenção do próprio estado tirânico, sendo cuidadosamente filtradas segundo sua conveniência. Mas, segundo Jaeger, “o interesse do estado pela cultura é um sinal inequívoco do amor dos tiranos pelo povo”, ainda que expresso “na glorificação da religião pela arte” e no mecenato estatal proporcionado aos poetas líricos, cujas temáticas não pareciam interferir nos assuntos de estado (p. 278). De qualquer forma, a intervenção dos tiranos nas manifestações culturais, religiosas e artísticas da polis, atribuindo ao estado a responsabilidade pelo estímulo e ordenamento, proporcionaram condições para que, no século V a.C., com a instituição da democracia ateniense, a cultura grega atingisse sua máxima expressão:

A cultura desses homens era como a sua vida. Podia entreter e divertir um povo inteligente e amante da beleza, como o atenienese, mas era incapaz de lhe penetrar no mais íntimo da alma. (...) Eles encheram o ar dos germes artísticos e da riqueza de pensamento de todas as estirpes gregas e assim criaram a atmosfera em que os grandes poetas áticos puderam desabrochar, para orientarem o gênio do seu povo na hora do destino (JAEGER, 1995, p. 280).

Segundo Brandão (1986), dentre os cultos proibidos na era aristocrática e sancionados pelo regime tirânico, os Mistérios de Elêusis eram os mais populares, convivendo pacificamente com a religião oficial dos deuses olímpicos. Uma das razões para sua popularidade era a admissão quase irrestrita de adeptos: “Do governante ao escravo, da mãe- de-família à prostituta, do ancião à criança, todos podiam ser Iniciados, desde que falassem grego, para que pudessem compreender e repetir certas fórmulas secretas” (BRANDÃO, 1986, vol. I, p. 296). O culto a Dioniso, embora menos pacífico e conciliável com o panteão olímpico – mas por força de sua incontornável filiação aos “Mistérios” – foi gradualmente incorporado ao calendário de rituais religiosos, a despeito de sua natureza digressora. Como bons populistas, os tiranos reconheciam a empatia do deus da embriaguez junto a diversas camadas da população, principalmente as oriundas do campo ou das classes menos abastadas, que viam nas celebrações eleusinas e dionisíacas uma promessa de imortalidade, redenção, liberação sexual, quebra de interditos e transformação, mesmo que restrita aos momentos de pretensa liberdade vigiada, proporcionados pelo estado (BRANDÃO, 1987).

Em 534 a.C., em meio às festividades votadas ao deus Dioniso conhecidas como Grandes Dionísias, o tirano Psístrato instituiu um concurso no qual uma modalidade artística fundia elementos rituais, estéticos e narrativos de forma inovadora. As representações trágicas significaram o nascimento de uma nova forma poética, cuja mímese verbal era não apenas expressa por meio de uma voz inédita, mas que encarnava, aos olhos e ouvidos da assistência, os personagens aos quais essas vozes eram atribuídas, como na materialização de sua origem remota e, até então, apenas imaginária.