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2. A MÍMESE E O SAGRADO

2.3 VIOLÊNCIA E SAGRADO

O antropólogo René Girard alega que os etnólogos pretendiam construir para as religiões o mesmo percurso evolucionista que Darwin fez com as espécies animais: não tendo alcançado este objetivo, as questões envolvendo traços comuns de suas origens foram não apenas abandonadas, mas rejeitadas. O estruturalismo, fruto do encontro de Claude Lévi- Strauss com a linguística de Roman Jakobson, teria construído redes de significados internas a cada cultura, cuja trama específica abole a possibilidade de questões universais no campo simbólico e nos obriga a recair em seu plano de significação particular. Segundo Girard, os avanços epistemológicos proporcionados pela reflexão estruturalista conduzem apenas a investigações sobre as origens desses mesmos sistemas significantes (GIRARD, 2008).

Dessa forma, a obra de Girard é tributária da de Frazer no tocante à busca dos componentes universais que interligam as diversas culturas, recuperando seu método de investigação por similaridades e contiguidades. No entanto, Girard refuta a ciência como coroação evolutiva da espiritualidade humana, por acreditar que a dimensão religiosa não pode ser abolida, sob o risco de um enorme retrocesso em mecanismos que asseguram certa estabilidade nas relações sociais e que, segundo ele, teriam percorrido um longo caminho até atingir o ponto de sofisticação atual. Se estes mecanismos não vêm cumprindo seu papel, a solução não é sua destituição ou substituição pelo pensamento filosófico ou científico. Afinal, trata-se da esfera situada aquém e além do raciocínio lógico ou da instrumentalização tecnológica: o ponto equidistante em que se tocam o animal que somos e os deuses que nos habitam.

Na abordagem de Girard, a mímese efetua não apenas um elo entre o mundo visível e o invisível, acessado mediante a repetição ritualizada de sortilégios homeopáticos e contagiosos ou na evocação de entidades e divindades que metaforizam os ciclos e potências da natureza, ou mesmo as paixões humanas: constitui a força de simultânea coesão e ruptura do grupo social, cujo controle e equilíbrio dependem tanto da interdição (ou do tabu) quanto de mecanismos rituais que aliviem a tensão interna advinda da rivalidade que a disputa por objetos comuns proporciona.

Sua teoria ressalta o papel da mímese no processo de aprendizagem social, enfatizando sua importância na aquisição de comportamentos e valores e na construção e manutenção da própria cultura, sendo um mecanismo sem o qual esta não seria possível. Nesse ponto, aprendemos não apenas a nos comportar, mas a desejar pelo modelo do outro: aprendemos a desejar o seu desejo, ou o objeto de seus desejos. Essa mímese de apropriação do desejo, denominada “desejo mimético”, se organiza de forma triangular, na qual se situam o objeto e

os dois sujeitos que competem e reforçam mutuamente o desejo por esse objeto. A decorrência do desejo mimético é a rivalidade, onde os objetos desejados (bens, gestos, aparência, relações etc.), tendo adquirido valor a partir dessa atribuição mutuamente reforçada, são disputados pelos indivíduos de um mesmo coletivo:

Criamos rivalidade na mímesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos de nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é (...) muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? (GIRARD, 2009, p.32).

Quando a rivalidade chega ao seu ápice é deflagrada uma crise mimética onde a animosidade recíproca gera o caos social e um estado de indiferenciação entre os indivíduos, que passam a espelhar os gestos violentos uns dos outros e engendram um ciclo mimético de violência:

(...) no estágio de vingança do sangue trata-se sempre do mesmo ato, o assassinato, executado do mesmo modo e pelas mesmas razões, em imitação vingativa de um assassinato anterior. E essa imitação propaga-se de próximo em próximo; ela é imposta como um dever a parentes afastados alheios ao ato original, isso quando ainda é possível identificar tal ato; ela transpõe as barreiras do espaço e do tempo, espalhando destruição por onde passa, transmitindo-se de geração a geração. A vingança em cadeia aparece como o paroxismo e a perfeição da mímesis. Ela reduz os homens à repetição monótona do mesmo gesto assassino. Ela os transforma em duplos (GIRARD, 2008, p. 33).

As investigações de René Girard destacam, pois, a violência subjacente ao processo de construção e manutenção das relações grupais como componente basilar na constituição da própria cultura: junto com a sexualidade, a violência compõe o espectro instintivo (sobrevivência e reprodução) ou pulsional (morte e vida) a ser domado pelas imposições da própria coletividade. O dispositivo necessário para interromper a violência mimética e o ciclo de vinganças é o mecanismo vitimário, onde um bode expiatório é sacrificado em nome da coletividade, canalizando a violência acumulada. Consoante ao papel fundante da constatação da inexorabilidade da morte e da necessidade de matar para sobreviver, Girard aponta para uma estreita relação entre a violência intrínseca ao ser humano, os rituais que dão origem aos sistemas religiosos e algumas práticas artísticas, destacadamente a arte dramática. Segundo o

autor, a violência está presente no próprio ato fundador da sociedade, o que se reflete em sua irrestrita ocorrência nos mitos originais.

O número extraordinário de comemorações rituais que consistem em uma morte faz pensar que o acontecimento original seria normalmente um assassinato. (...) A unidade notável dos sacrifícios sugere que se trataria do mesmo tipo de assassinato em todas as sociedades (GIRARD, 1990, p. 121).

Girard atribui à rivalidade mimética a explicação para a construção dos sistemas religiosos: em sua base estaria a interdição do desejo mimético e da violência. A primeira estaria associada ao temor do duplo e da magia simpática ou imitativa; a segunda teria como base a carga instintiva ou pulsional pretensamente domada pelos mecanismos miméticos de aquisição de comportamentos, mas parcialmente convertida na rivalidade que a semelhança impõe. Destaca que ambos os interditos tem uma origem em comum, já que a violência oriunda da rivalidade e da concorrência decorre da própria imitação:

Quando olhamos de perto os termos que nós próprios utilizamos, concorrência rivalidade, emulação etc., constatamos que essa perspectiva primitiva permanece na linguagem. Os concorrentes correm juntos, os rivais são ribeirinhos, em posições simétricas em cada margem do curso d’água etc. (GIRARD, 2008, p. 32).

Da interdição mimética decorreriam alguns desdobramentos peculiares, como o medo de espelhos e o tabu dos gêmeos, existentes em algumas culturas. Quanto ao significado atribuído à ocorrência de catástrofes naturais, estas seriam o resultado da “degradação interna das relações humanas no interior da comunidade”:

O fato de que o dilúvio e a peste sirvam de metáfora para a violência mimética não significa absolutamente que as verdadeiras inundações e as epidemias reais não sejam objeto de uma interpretação religiosa: mas elas são percebidas em primeiro lugar como transgressão de interditos referentes ao mimético, seja pelos homens, seja pela própria divindade, que também transgride, muitas vezes para punir os homens por terem transgredido em primeiro lugar (GIRARD, 2008, p. 34).

A importância desse fator nos mitos cosmogônicos é atestada pela sua ritualização, que atualiza e eterniza a violência como gesto mítico fundador, ao tempo em que apazigua sua irrupção fora do contexto ritual. O sacrifício de uma vítima (humana ou animal) geria

processos de sociabilidade e amenizava as tensões resultantes das interdições que tornam possível a vida em grupo. O sacrifício ritualizado proporcionaria uma catarse coletiva e renovaria os laços entre os membros desta coletividade, constantemente ameaçados pelas tensões internas e pelo medo de serem vítimas dessa mesma violência – ou de fatalidades advindas de uma ordem divina, invisível ou superior (GIRARD, 1990).

A rivalidade mimética seria a principal responsável não apenas pela violência iminente nas relações internas dos coletivos humanos, mas também por avanços que permitem a sobrevivência desses mesmos grupos e da própria espécie. Haja vista tratar-se de um elemento essencial para a sobrevivência, essa violência não poderia ser suprimida. Dessa forma, um sacrifício ritual restituiria o sentimento de coesão pactuada que, pela canalização da violência por um bode expiatório, manteria sob controle os conflitos constitutivos do próprio tecido social. A identificação e destruição deste “inimigo” resultam na positivação de um sentimento potencialmente desagregador, mas imprescindível enquanto força motriz na luta pela sobrevivência e no aprimoramento das condições gerais de existência.

O mito fundador, segundo Girard (1990), comportaria a dupla dimensão de ritual e narrativa: em seu aspecto ritual, proporciona a catarse dos impulsos violentos, remontando o sacrifício da primeira vítima expiatória através de um novo sacrifício; enquanto narrativa, oferece subsídios simbólicos para a elaboração de significados para este mesmo sacrifício. Victor Turner (1982) cita a tragédia como exemplo de sofisticação destas narrativas que, pela introdução do elemento dramático na encenação ritualizada dos mitos fundantes, desenvolveu-se a partir da gradual substituição do sacrifício material (ou real) pelo artifício simbólico, mantido o efeito catártico das celebrações coletivas ancestrais. A respeito desse aspecto na Poética, Etienne Souriau comenta:

Para Aristóteles, a arte, sobretudo a trágica, exerce uma função, de certa forma, socialmente higiênica. Os homens têm necessidades passionais. Têm sede de emoções violentas. Ora, uma comunidade próspera e bem organizada não pode nem deve satisfazer-lhes tais necessidades. Mas a arte as satisfaz, de maneira socialmente benéfica, porque purifica as paixões, as enobrece e as harmoniza. Funciona como uma espécie de purgação, isto é, como um remédio, expele os maus humores, liberta as almas dos anseios perigosos (SOURIAU, 1973. p. 5).

Já a mitologia judaico-cristã e suas narrativas do Antigo e Novo Testamento representam, para Girard, um grande marco divisor na celebração ritualística dos mitos

a prática do holocausto ou do sacrifício ritual é utilizada como meio de aplacar a ira ou demonstrar a fé por Jeová. Sua culminância, em termos de recorrência dessa prática, se dá quando Jeová exige de Abraão, como prova de fé, o sacrifício de seu filho Isaac. No momento em que se consumaria o holocausto, Jeová detém Abraão, afirmando ter atestado sua devoção e fidelidade. Por fim, Abraão sacrifica um carneiro para sacralizar o episódio (GÊNESIS 22:11-18). A história de Caim e Abel seria uma parábola fundamental para a compreensão da importância do rito sacrificial na manutenção do equilíbrio interno e da paz coletiva. Abel é o preferido por Jeová justamente por sacrificar-lhe cordeiros, enquanto Caim, por ser agricultor, oferece apenas os frutos da terra. A eleição de Abel comporta duas dimensões complementares: a da exigência do próprio Deus e a do escape da violência pelo sacrifício ritual. Caim mata seu irmão por não canalizar a violência através do dispositivo sacrificial, o que já o tornara malquisto aos olhos do Senhor (GIRARD, 1990).

Para Girard (2009) o papel conciliatório de Jesus Cristo na história das religiões é justamente o de colocar fim ao mecanismo vitimário ou sacrificial – embora o Novo Testamento pareça registrar a substituição do sacrifício real pelo simbólico, fixado eternamente na imagem do cristo crucificado. De acordo com a leitura sacrificial dos Evangelhos, enquanto o deus do Antigo Testamento apresentava-se implacável, sanguinário e pleno de ira, o deus da Nova Aliança expressa seu amor pela humanidade oferecendo-lhe o próprio filho em holocausto. Este sacrifício invertido, que aplaca a ira de Jeová e, por conseguinte, dos homens feitos a sua imagem e semelhança, abole a necessidade de novos sacrifícios justamente por seu caráter absoluto. A crucificação celebra uma aliança na qual o ritual é realizado a “quatro mãos”, visto que, se deus ofereceu o filho à humanidade, foi esta quem lho devolveu, eternizado pelo sacrifício.

As palavras sacrifício, sacri-ficar possuem o sentido preciso de tornar sagrado, de produzir o sagrado. O que sacri-fica a vítima é o golpe desferido pelo sacrificador, é a violência que mata essa vítima, que a aniquila, e que ao mesmo tempo coloca-a acima de tudo, tornando-a, de certo modo, imortal. O sacrifício é produzido quando a violência sagrada apodera-se da vítima; é a morte que produz a vida, assim como a vida produz a morte, no círculo ininterrupto do eterno retorno comum a todas as grandes reflexões teológicas diretamente implantadas na prática sacrificial, aquelas que nada devem à desmistificação judaico-cristã (GIRARD, 2009, p. 273).

Girard discorda haver no texto bíblico, qualquer menção a um “sacrifício” de Jesus: segundo ele, sua morte resulta da impossibilidade dos homens “se reconciliarem sem se matar”, e que a crucificação não se relaciona com a “cólera ou vingança de qualquer

divindade” (p. 260). Jesus morre por não querer se submeter à violência maior que seria recuar de seus próprios ensinamentos: um exemplo é quando diz a Pedro que recolha a espada, no momento de sua prisão no Jardim de Getsêmani: “mete no seu lugar a tua espada, pois todos que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (Mateus, 26:52).

Não vendo que a comunidade humana é dominada pela violência, os homens não compreendem que aquele entre eles que for puro de violência, não mantendo com ela nenhuma cumplicidade, tornar-se-á necessariamente sua vítima. Todos dizem que o mundo é mau, violento, mas não enxergam que não há compromisso possível entre matar e ser morto. É esse dilema que a tragédia ressalta, mas a maioria dos homens não acredita que ele seja realmente representativo da “condição humana”. (...) esses homens não compreendem que devem à violência a paz relativa da qual desfrutam (GIRARD, 2009, p. 257).

Em Frazer e Girard, algumas semelhanças e contiguidades permitem efetuar uma análise “simpática” entre suas obras: em ambos, o princípio mimético é uma prerrogativa para a construção de sistemas religiosos, embora sua função seja mágica em Frazer e “educativa” em Girard. Em Frazer, o mecanismo vitimário decorre da evolução da magia simpática, que atinge o seu ápice no sacrifício do próprio deus, encarnado no rei-sacerdote, como recurso para a restituição das condições naturais e sobrenaturais que asseguram a sobrevivência coletiva. Já Girard situa esse mecanismo em meio à crise mimética, decorrente do processo de apropriação do desejo do outro e da rivalidade resultante da disputa por um mesmo objeto. A resolução do conflito só se dá com a eleição arbitrária e o sacrifício de um bode expiatório, a quem é destinada a violência acumulada. A restituição da paz e da ordem instrui um sentido de coletividade antes inexistente, fornecendo as bases para a organização social e para a construção de sistemas religiosos, através da ritualização deste sacrifício inaugural e da interdição do ato que o provocou.

No processo de sofisticação simbólica dos rituais, é possível identificar um percurso que parte da mímese, sob a forma de magia simpática (com a repetição de sortilégios homeopáticos ou contagiosos) ou da aquisição de comportamentos e desejos miméticos; passa por uma crise, com a instabilidade das condições de sobrevivência ou pelo acirramento da rivalidade mimética; culmina num sacrifício, com vistas a confirmar o pacto entre as forças miméticas visíveis e invisíveis ou canalizar a violência pela morte do bode expiatório; e resulta na criação de tabus (comportamentos que prejudicaram ou corromperam o pacto mimético) ou em interdições (do desejo mimético e da violência que dele resulta). O passo

temas arquetípicos que o caracterizam. Mas enquanto Frazer enfatizava o aspecto da subsistência material, Girard enfoca a ritualização da violência como meio de pacificação e alívio de tensões subjetivas. Veremos mais à frente como isso se relaciona com o nosso tema de pesquisa.