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3. O ÉTICO, O ESTÉTICO E O EFÊMERO

3.1 O EXEMPLO GREGO

Há um ponto em que é preciso insistir, porque é da maior importância para a compreensão da estrutura espiritual do ideal pedagógico da nobreza. Trata-se do significado pedagógico do exemplo (JAEGER, 1995, p. 57).

Outros povos possuem santos, enquanto que os gregos, por sua vez, têm sábios. (NIETZSCHE, 2008, p. 36)

Ao abordar a importância de Homero como educador na Grécia Antiga, Werner Jaeger (1995) enfatiza a indissociabilidade entre os componentes éticos e estéticos na poesia dos gregos da era antiga e clássica. Destaca a “riqueza de sua substância humana” e a “força de sua forma artística” (p. 64), embora identifique, na sucessão entre cantos heróicos e narrativas épicas, elementos semelhantes aos do processo formativo de povos em estágio similar de desenvolvimento social, notadamente na distinção entre camadas populares e nobreza. Para

Jaeger, o elemento peculiar dos habitantes da Hélade advinha de sua constitutiva preocupação com aquilo que viria a lastrear e nortear a formação de sua cultura e espiritualidade: o “sentido universal de destino e a verdade permanente da vida” (p. 65).

Os gregos tomaram para si uma tarefa que ultrapassou as acidentadas fronteiras de seu território e as incipientes especificidades de sua nação: erigir as bases universais da noção de Homem, acima das contingências de tempo e espaço. Este elevado escopo se impôs pela natureza peculiar de sua história e formação, na qual a construção de valores constitui-se uma prerrogativa para sua organização e fortalecimento. À medida que amalgamavam elementos de outros povos com seus próprios traços peculiares, sua equação os aproximava de um denominador comum:

Desde as primeiras notícias que temos deles, encontramos o homem no centro do seu pensamento. A forma humana dos deuses, o predomínio evidente dos problemas da forma humana na sua escultura e na pintura, o movimento consequente da filosofia desde o problema do cosmos até o problema do homem, que culmina em Sócrates, Platão e Aristóteles; a sua poesia, cujo tema inesgotável desde Homero até os últimos séculos é o homem e o seu duro destino no sentido pleno da palavra; e, finalmente, o estado grego, cuja essência só pode ser compreendida sob o ponto de vista da formação do homem e da sua vida inteira: tudo são raios de uma única e mesma luz, expressões de um sentimento vital antropocêntrico que não pode ser explicado nem derivado de nenhuma outra coisa e que penetra todas as formas do espírito grego (JAEGER, 1995, p. 14).

De acordo com Hölderlin (1994), a vocação formativa e a pretensão universal do pensamento grego advêm da necessidade de domar sua própria natureza “oriental e arrebatada”. Ao delinear os traços essenciais da noção de homem, o grego pretendia erguer uma morada para seu espírito, permeável ao estranho e ao caótico, como se disso dependesse sua própria sobrevivência. As linhas duráveis de suas construções expressam o empenho com que se entregaram a essa tarefa: sua arte e cultura refletem o processo de plasmação e depuração de sua própria espiritualidade, embora as irradiações e refrações de seu esplendoroso apogeu tenham se lançado para muito além de seu tempo e espaço.

Podemos agora precisar com maior precisão a particularidade do povo grego frente aos povos orientais. A sua descoberta do Homem não é a do eu subjetivo, mas a consciência gradual das leis gerais que determinam a essência humana. O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o “humanismo”, para usar a palavra no seu sentido clássico e originário. (...) Acima do homem como ser gregário ou como suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como idéia. A ela

Homem, considerado na sua idéia, significa a imagem do Homem genérico na sua validade universal e normativa (JAEGER, 1995, p. 14-15).

A complexidade e profundidade crescentes de seu pensamento e modo de vida, nos quais valores espirituais, políticos e estéticos eram tramados conjuntamente pela ação formativa do logos, impuseram procedimentos que assegurassem seu desenvolvimento e transmissão. Para além da reverência aos deuses por meio de rituais e sacrifícios e da manutenção de costumes e tradições arcaicas, novas necessidades derivavam do desabrochar de suas próprias potencialidades, tornando imperativa a instituição de espaços e práticas educativas que formulassem, simultânea e integradamente, o indivíduo e o coletivo, o cidadão e a polis.

A posição específica do Helenismo na história da educação humana depende da mesma particularidade de sua organização íntima – a aspiração à forma que domina tanto os empreendimentos artísticos como todas as coisa da vida – e, além disso, do seu sentido filosófico do universal, da percepção das leis profundas que governam a natureza humana e das quais derivam as normas que regem a vida individual e a estrutura da sociedade. Na profunda intuição de Heráclito, o universal, o logos, é o comum na essência do espírito, como a lei é o comum na cidade. No que se refere ao problema da educação, a consciência clara dos princípios naturais da vida humana e das leis imanentes que regem as suas forças corporais e espirituais tinha de adquirir a mais alta importância (JAEGER, 1995, p. 13).

Se na história de outras civilizações, mitos, cantos heróicos e narrativas épicas originaram e foram posteriormente cooptados pelas instituições da monarquia e do sacerdócio, dando origem a leis e escrituras que reforçaram e fortaleceram a atuação consorciada dessas formas de poder, na Grécia a vocação estética desenvolveu-se de forma tão indissociável da dimensão espiritual que ambas ultrapassaram as contingências dogmáticas e se tornaram uma expressão da incansável atividade do logos. Como princípio criativo e legislador, sua área de atuação expandia-se à medida que tradições milenares, sustentadas nos alicerces denotativos da palavra mítico-religiosa, eram minadas pela emoliente infiltração da palavra poética, cuja força expressiva transformava mitos, sortilégios e interdições em sentenças conotativas, passíveis de interpretações e reformulações e promotoras de renovados e inesgotáveis arrebatamentos. Ao humanizar suas divindades, os gregos atribuíam-lhes qualidades que espelhavam suas próprias vocações, fossem harmônicas, dissonantes ou especulativas.

Lastro incontestável da trajetória espiritual da cultura e do povo grego, as narrativas épicas atribuídas a Homero ilustram a contiguidade entre atuações diversas da mímese na formação de diferentes coletivos humanos: a luta pela subsistência material, a violência intrínseca ao processo e o fortalecimento dos laços sociais através da elaboração simbólica. Para os estudiosos, essas similaridades podem ocorrer por dois motivos: traços comuns do psiquismo humano, cujas necessidades e vocações assinalam um fator biológico do qual o arquétipo e o inconsciente coletivo seriam a expressão simbólica, ou difusão, quando fluxos migratórios e contatos entre povos e tribos permitem o intercâmbio tanto de costumes e adventos tecnológicos quanto dos conteúdos simbólicos e imaginários associados (CAMPBELL, 1990).

Em Armas, Germes e Aço (2002), o geógrafo Jared Diamond remonta ao fim da última glaciação, há onze mil anos, pra compreender as origens do desenvolvimento socioeconômico e tecnológico das sociedades. Nesse retrospecto, Diamond localiza o fator fundante das atuais potências econômicas na passagem da prática de caça e coleta para a agricultura e o pastoreio, num processo que decorre da sedentarização e criação de técnicas a partir da observação das condições climáticas e da utilização dos recursos disponíveis. Obviamente, os fatores climáticos específicos e a disponibilidade de recursos em diferentes pontos do planeta foram responsáveis por oportunizar graus variados de desenvolvimento socioeconômico entre os coletivos humanos. A Eurásia, por sua vasta dimensão latitudinal e geografia característica, foi o bloco continental mais favorecido no tocante a recursos naturais, variáveis climáticas e fluxos migratórios, ocasionando maior desenvolvimento econômico e variedade sociopolítica pelo intercâmbio e disputas entre diferentes povos. A difusão das novas formas de sobrevivência e organização social do bloco eurasiano teria se originado na Crescente Fértil (Oriente Médio), região favorecida pela proximidade de fontes de água (os rios Tigre, Eufrates, Nilo e Jordão) e de terras férteis, sendo a área pioneira na prática da agricultura e do pastoreio (DIAMOND, 2002).

Com a sedentarização e a produção de alimentos, se fez possível o desenvolvimento de tecnologias que geraram uma produção de excedentes, desonerando parte da população do trabalho braçal. Isso proporcionou tempo livre para aprimorar determinados conhecimentos e técnicas inicialmente voltadas para a melhoria das condições de sobrevivência, como a criação de ferramentas e armas ou a domesticação de espécies vegetais e animais. Os administradores e os guerreiros foram algumas das funções originadas do excedente da

poderio bélico. Pela facilidade de deslocamento no eixo leste-oeste, onde as condições climáticas eram semelhantes, tornou-se possível migrar quando havia declínio da produção pelo enfraquecimento do solo, como ocorreu na Crescente Fértil. Essas condições proporcionaram ao bloco eurasiano não apenas desenvolver sociedades e tecnologias mais complexas, mas intercambiar esses conhecimentos em movimentos migratórios ou de expansão e conquista (DIAMOND, 2002).

Se as “armas” e o “aço” foram oriundos da necessidade, da observação e da criatividade, os “germes” resultaram do convívio com os animais domesticados, o que provocou epidemias que dizimaram, ao longo do tempo, grandes parcelas da população, mas tornaram as gerações seguintes gradualmente mais resistentes. Nesse percurso, a escrita foi também uma das principais aquisições: iniciando o chamado período histórico, a princípio era utilizada apenas para fins de registro administrativo e organização dos meios de produção. Aos poucos, assumiu grande importância não apenas como ferramenta de transmissão de informações, mas constituindo seu campo próprio de conhecimento e efetuação. O registro e transmissão de informações pela escrita tiveram um papel crucial na evolução e difusão de conhecimentos entre povos e gerações (DIAMOND, 2002).

O desenvolvimento da escrita foi, portanto, um dos maiores avanços tecnológicos da história, transformando a relação entre o homem, sua ancestralidade e a experiência imediata. Em relação aos mitos, cuja condição maior de perpetuação estava ligada justamente a sua oralização ritual e aos elementos que compunham suas demais dimensões (imagética, sonora, performática etc.), bem como a algumas estratégias de fixação mnemônica (como a métrica e a rima), houve uma gradual substituição de seu papel de depositário da memória coletiva, perdendo, nessa passagem, parte de sua força religiosa original. Nessa transição, os mitos desenvolvem-se enquanto narrativas nas quais a condição humana se impõe como elemento de construção e reflexão. A fábula, célula essencial de qualquer narrativa, seria o correlato narratológico do mito: sua unidade mínima, a ressonância original e culturalmente circunscrita de arquétipos ancestrais a serem tramados pelos recursos e talentos dos narradores, com vistas a atingir seu público por meio da elaboração estética de temas ancestrais.

Embora situada na latitude privilegiada por coordenadas climáticas e fluxos humanos, a Grécia possuía (e possui) uma geografia acidentada e pouco fértil. Ainda assim, constitui um dos melhores exemplos da forma como os intercâmbios, aliado a características similares de diferentes culturas, colaboraram para o desenvolvimento tecnológico e, consequentemente,

para transformações no pensamento e no campo social, político, religioso e estético. A história da formação da cultura grega é marcada por sua fragmentação geográfica e pela variedade de culturas que coabitaram, de forma pouco pacífica, seu acidentado território. Resultado de intercursos migratórios e ocupações sucessivas, em que se destacam povos como os jônios, os aqueus, os eólios e os dórios, a civilização grega tem sua gênese histórico- mitológica em meados da chamada Idade do Bronze, entre 1600 e 1050 a.C., período em que floresceu a civilização micênica. Foi nesse período que Homero situou os fatos narrados na

Ilíada e na Odisseia, obras que serviram de guia ético e espiritual para o alinhavo de uma cultura23 cujas origens remontam a uma longa e poderosa plasmação de elementos de origens diversas, e que nela encontraram sua configuração mais brilhante e duradoura (BRANDÃO, 1986).

(...) a história da educação grega coincide substancialmente com a da literatura. Esta é, no sentido originário que lhe deram os seus criadores, a expressão do processo de autoformação do homem grego. Independentemente disto, não possuímos nenhuma tradição escrita dos séculos anteriores à idade clássica além do que nos resta dos seus poemas. Assim, mesmo tomando a história no seu mais amplo sentido, uma só coisa nos torna acessível a compreensão daquele período: a evolução e a formação do Homem na poesia e na arte. A História determinou que só isto ficasse da existência inteira do Homem. Não podemos traçar o processo de formação dos Gregos daquele tempo senão a partir do ideal de Homem que forjaram (JAEGER, 1995, p. 18-19).