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A função de símbolo e a relação com o pensar e o perceber

4.1 FUNÇAO E VIDA IMAGINÁRIA

4.1.1 A função de símbolo e a relação com o pensar e o perceber

Afirmou-se, repetidamente, com Sartre, que a imagem é uma consciência. Disso resultou, dentre as várias conseqüências já descritas, que “a imagem não desempenha nem o papel de ilustração nem o de suporte do pensamento” (Im, p.187). Ora, “pensar é uma consciência que afirma esta ou aquela qualidade do objeto, mas sem realizá-la nele” (Im, p.188, grifo do autor), ou seja, a caracterização do objeto é feita a posteriori, o predicado é colocado depois, é acrescentado de fora, pois esta consciência não é imediata e sim mediada. Já a

imagem, ao contrário, é uma consciência que visa produzir seu objeto;

portanto, é constituída por um certo modo de julgar e de sentir, do qual não tomamos consciência enquanto tal, mas que apreendemos sobre o objeto intencional como esta ou aquela qualidade. Para expressarmos isso numa palavra, a função da imagem é simbólica (Im, p.188-189, grifo do autor). A função de símbolo (função simbólica) é constitutiva de toda consciência imaginante e permite que toda imagem remeta “a alguma coisa para além dela” (SCHNEIDER, 2002, p.247). Deste modo, é a própria imagem que produz seu objeto e realiza nele sua função de símbolo. A função simbólica é, portanto, elemento constituinte desta consciência e não algo externo à imagem que seria adicionado depois. Para o existencialista, “a imagem é simbólica

por essência e em sua própria estrutura” (Im, p.189) e retirar o seu papel de símbolo é o mesmo que dissolver a imagem enquanto tal.

A importância dos processos imaginários para o psiquismo enquanto realizadores desta função simbólica e as possibilidades de complicação psicológica serão descritos a seguir43. No entanto, cabe ressaltar, por ora, que essa possibilidade de lançar-se para além do presente, fazendo uso do passado, permite que o sujeito humano vislumbre seu futuro e assim se projete para algo novo, para uma situação diferente daquela que está dada. Esta, aliás, uma característica essencialmente humana, já que “todo fato humano é, por essência, significativo [e] se lhe retirarmos a significação lhe tiramos sua natureza de fato humano” (ETE, p.25). Em suma, afirmar que a imagem é simbólica é dizer que ela é significativa, que ela tem um sentido próprio que não pode ser acrescido a ela de fora, mas, ao contrário, é parte de sua estrutura enquanto imagem. Isso demonstra, em última instância, que sua aparição desempenha um papel.

Na relação com o pensar, longe de servir de suporte, como vimos, “a imagem é como uma encarnação do pensamento irrefletido. A consciência imaginante representa um certo tipo de pensamento: um pensamento que se constitui em e por seu objeto” (Im, p.216). Daí a razão de Sartre afirmar que o “conceito” pode aparecer de duas formas distintas: como puro pensamento (terreno reflexivo) ou como imagem (terreno irrefletido). É importante notar que isso não significa que a imagem auxilia o pensamento e/ou vice-versa; ambas são consciências autônomas, com características próprias. O que pode ocorrer, contudo, é o pensamento tomar a forma de imagem quando quer “fundar suas afirmações sobre a visão de um objeto. Neste caso, ele tenta fazer aparecer o objeto diante dele, para vê-lo, ou melhor, para possuí-lo” (Im, p.235, grifo do autor). Sim, pois “o pensamento irrefletido é uma possessão” (Im, p.224, grifo do autor); e isso quer dizer que pensar irrefletidamente uma essência ou uma relação é o mesmo que produzir tais elementos “em carne e osso”, ou seja, “constituí-los em sua realidade viva (e naturalmente sob a ‘categoria de ausente’)” (Im, p.224). E justamente aí reside o motivo do “fracasso” dessa tentativa de possuir o objeto, pois na medida em que este se dá como ausente, ele é “afetado por um caráter de irrealidade” (Im, p.235). Ora, na relação com a percepção, a imagem não deixará de afirmar sua independência, pois percepção e imaginação “representam as duas grandes atitudes irredutíveis da consciência” (Im, p.231). Disso resulta que uma exclui a outra, aniquila a outra: quando se imagina Pierre através de um quadro, deixa-se de perceber o quadro. Há na percepção sempre

mais do que se pode ver, pois é característico das coisas exceder a consciência perceptiva. Agora, ao representar o papel de parede atrás do armário - cuja parte visível se percebia – os atos perceptivos cessam para dar lugar aos atos imaginantes, ou seja, tal desenho atrás do armário constitui-se como objeto autônomo para uma consciência também autônoma, a consciência imaginante.

Pode-se dizer, então, que imaginar é “uma atitude global e sui generis que tem um sentido e uma utilidade” (Im, p.235); não é um ato gratuito, mas, ao contrário, “o imaginário é uma certa forma do psiquismo se organizar” (SCHNEIDER, 2002, p.248). A imaginação enquanto um fenômeno psicológico envolve uma personalidade estruturada psicofisicamente e situada dentro de um contexto. O sujeito que imagina está inserido em uma dada materialidade com a qual se relaciona e que vai lhe servir de base para produzir suas experiências de imaginação. Um trecho do conto “O Muro”, publicado no livro de mesmo título, Le Mur de 1939 (CONTAT & RYBALKA, 1970), e que trata das últimas horas de dois prisioneiros de guerra condenados à morte em meio às tentativas de compreender o que vai lhes ocorrer, pode ajudar no entendimento da função característica de uma produção imaginária, ou melhor, de sua utilidade para o psiquismo:

digo para mim mesmo: depois, não haverá nada. Não compreendo, porém, o que isso quer dizer. Há momentos em que quase chego a decifrar... e depois isso me escapa, recomeço a pensar nas dores, nas balas, nas detonações. Sou materialista: juro-lhe; e não estou ficando louco. Há alguma coisa, porém, que está destoando. Vejo meu cadáver; isso não é difícil, mas sou eu que o vejo, com meus olhos. Seria preciso que eu chegasse a pensar... a pensar que não verei mais nada, que não ouvirei mais nada e que o mundo continuará para os outros (Mu, p.20, grifo do autor).

O drama vivido pelos prisioneiros é tal que sua reflexão não dá conta de explicar, não os convence. Frente ao imponderável, ao episódio de sua própria morte, eles lançam-se a imaginar seu cadáver, seu corpo inerte, sua consciência apagada. Mas isso não os acalma, os deixa, ao contrário, mais perplexos; pois sabem (reflexivamente) que não poderiam ver seu corpo sem vida. Sim, pois, ao mesmo tempo em que a materialidade da situação em que se encontram – estar à espera do seu fuzilamento – os lança no imaginário, eles mantêm-se conectados com a realidade; o que, certamente, torna o contraste entre o real e o irreal ainda mais marcante: ao imaginar seu corpo morto, eles sabem que isso não é, de fato, possível. E tal circunstância revela ainda mais seu desespero frente à morte inevitável: o prisioneiro afirma que algo “está destoando”, algo não está certo, algo não corresponde ao que poderia ocorrer de ato. No entanto, tais imagens formadas têm por função saciar a ânsia de compreender o que lhes acontecerá no futuro, como irão morrer, se irão sofrer e como é estar

morto, mesmo isso sendo impossível de vivenciar. Assim, é porque estão vivos, porque estão “no mundo” que podem lançar-se a imaginar tais acontecimentos. De um modo geral, pode-se afirmar que tais são as características constitutivas de um processo imaginário de qualquer sujeito humano.